Boicote evangélico à novela “Babilônia” remete à censura da ditadura militar

Quando os autores Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga decidiram colocar logo no primeiro capítulo da novela Babilônia uma cena de beijo entre as personagens de Fernanda Montenegro (Teresa) e Nathalia Timberg (Estela), a intenção era acabar com a expectativa que todo personagem LGBT desperta na audiência. Afinal, vai ter beijo ou não vai? Vai. E vai ter dois. E depois vai ter casamento. Aceitem. Sim, elas são família sim, elas podem adotar filhos sim. O STF já reconheceu. Hoje.

João Ximenes inclusive fez um comentário bem direto sobre isso à coluna de Bruno Astuto, na revista Época.

“Vai ter gay na novela nova. Vai ter gay, muito gay. Mas relaxa, também vai ter muito imbecil retrógrado homofóbico. Sorria, você vai se sentir representado”.

Mas se o objetivo era desmistificar o assunto, fazê-lo se esgotar logo de cara e, assim, o público encarar a coisa com naturalidade, não deu certo. Segundo reportagem do jornal O Dia desta quinta-feira (19), textos anônimos nas redes sociais acusam a novela de “afrontar” a família e propõem um boicote de 35 dias contra o folhetim com o objetivo de tirá-la do ar (alguma semelhança com a censura?). O movimento é encabeçado pela bancada evangélica do Congresso.

O indicativo dessa histeria em torno da novela, além do beijo entre Teresa e Estela, está no título. Uma prima minha escreveu em sua timeline do Facebook o seguinte comentário: “A palavra Babilônia é usada na Bíblia, principalmente no livro do Apocalipse, como símbolo de perversão e abominação, e de tudo aquilo que se opõe contra (sic) os princípios estabelecidos por Deus. Dá pra imaginar os motivos para ser escolhida para a novela da Globo.”

A postagem vinha em seguida a uma outra do pastor Marco Feliciano, com o mesmo teor. Além disso, circulou pela internet um texto de um pastor chamado Antonio Junior cujo título é “A Verdade por Trás da Novela”.

Ali, Junior constrói uma teoria conspiratória satânica que estaria por trás do folhetim, já que, nas chamadas pré-estreia, a Globo chamava a novela de “o seu novo conflito das nove”. Segundo o pastor, a palavra conflito indica luta, disputa, confusão. E que “é isso que Satanás quer trazer [para sua casa] com esta novela”.

Para quem leu a Bíblia, o nome Babilônia deriva de Babel, que significa confusão. No contexto bíblico, Babel era uma cidade cujos homens resolveram construir uma torre tão alta que pudesse chegar aos céus e, assim, fazerem-se conhecidos pelo mundo todo. Ainda de acordo com o Velho Testamento, a soberba desse povo desagradou a Deus, que resolveu puni-los fazendo com que cada um falasse uma língua e, assim, não pudessem se entender para concluir a obra e, assim, se espalharem pela Terra. Por isso, Babel é símbolo de confusão, conflito.

Assim como a Babilônia bíblica, a Babilônia da novela – que no caso é o morro da Babilônia, locação da trama onde vive a heroína Regina (Camila Pitanga) – também discute a soberba e a corrupção, tanto política quanto moral. Ou, como aparecia nas chamadas, a ambição das três protagonistas: Regina, Beatriz (Glória Pires) e Inês (Adriana Esteves). A primeira tem ambição de vencer na vida, estudar, ter uma profissão e abandonar a barraca onde vende coco na praia. As duas últimas são motivadas pela inveja e pelo egoísmo. São as vilãs da trama.

Na tentativa de transformar o folhetim em uma obra de fundo satânico que objetiva destruir a família brasileira, o pastor Antonio Junior, no entanto, vale-se exatamente do recurso da confusão. Em uma interpretação “babilônica” da trama, ele suprime um trecho do mote da heroína e desqualifica sua busca por uma vida melhor.

Quando Regina era apresentada antes da estreia, a chamada dizia o seguinte: “Eu aprendi desde pequena que ambição não é pecado. Mas eu luto pelos meus sonhos de maneira digna… honesta. Ninguém vai mudar o que eu acredito. E é assim que eu vou vencer. Essa é minha ambição.” No outro extremo, Inês e Beatriz dizem e mostram que sua ambição é motivada pela inveja e pelo egoísmo.

Convenientemente, ao analisar a trama em seu texto, o pastor suprime o trecho em que Regina diz que luta de maneira digna e honesta, e coloca as três personagens no mesmo balaio semântico, dizendo que todas se assemelham aos habitantes da Babilônia bíblica porque perseguem a ambição a qualquer preço. Pode parecer bobagem, mas o trecho é fundamental para entender o conflito de valores da novela e mantê-lo destruiria a tese do pastor, que também se vale dos seguintes versículos bíblicos para justificar sua tese.

“O Senhor não deixa o justo passar fome, mas frustra a ambição dos ímpios” (Provérbios 10:3)

“Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos” (Filipenses 2:3)

“Contudo, se vocês abrigam no coração inveja amarga e ambição egoísta, não se gloriem disso, nem neguem a verdade. (…) Pois onde há inveja e ambição egoísta, aí há confusão e toda espécie de males” (Tiago 3:14,16)

É possível concluir que a Bíblia condena a ambição com base nesses escritos? Ou é possível concluir que Deus condena apenas a ambição egoísta motivada pela inveja dos ímpios – que são as características de Inês (a invejosa) e de Beatriz (a egoísta). E se Regina (a idealista), que é quem irá se opor à maldade e que irá por em perspectiva os métodos para vencer na vida em uma sociedade em que a corrupção virou um valor a se buscar, isso não é algo positivo?

Quem tem medo de novela?

Muito já se discutiu (e ainda se discute) sobre o papel e a influência das telenovelas na sociedade brasileira. A USP, inclusive, tem um núcleo de estudos sobre isso, que analisa os efeitos tanto positivos quanto negativos dos folhetins. Durante a ditadura militar, a novela sofreu censura porque os governantes sabiam o quanto ela era capaz de influenciar a população a pensar e a questionar o regime. Por isso, obrigavam as narrativas a sempre reforçarem o modelo de sociedade e comportamento que era conveniente a quem estava no poder.

Durante a série sobre a censura às novelas que escrevi para o UOL, percebi ao pesquisar os documentos que a maior parte dos textos e cenas censurados eram relacionados à moral e ao comportamento. Outra semelhança com o que ocorre hoje.

A bancada evangélica não é diferente dos censores do regime militar neste sentido. Toda vez que uma novela mostra algo que lhes desagrada, eles propõem boicotes. Se pudessem, censuravam. Porque a novela ameaça seu poder. Uma novela que ensine que ser ambicioso é algo bom, mesmo que por meio da honestidade, fere diretamente o poder econômico e político desses grupos, que pregam o despredimento econômico, cujo efeito final é o dízimo.

Uma novela que mostre que homossexuais podem ser pessoas como quaisquer outras (com desejos corriqueiros como se casar, celebrar o amor, criar filhos, também na base da honestidade), coloca em evidência que deputados e senadores da bancada evangélica não concentram seu trabalho em pautas que de fato melhorem as condições de vida de toda a população do país, mas que perseguem pessoas que sofrem todo tipo de violência apenas por serem quem são.

Mas se pode boicotar a grife Dolce & Gabbana por suas declarações contra o casamento, a adoção de crianças e a fertilização in vitro para casais do mesmo gênero, por que os evangélicos não podem boicotar Babilônia? Eles podem. Para isso existe o controle remoto. Mas quando isso vai para a esfera da política, com deputados e senadores encabeçando uma ação que tem como objetivo tirar o folhetim do ar, remete à censura, porque sua raiz é o poder.

“Mas novela tem que ter papel educativo! TV é uma concessão pública!” Sim e não. Mostrar por meio da ficção como funciona a corrupção no país é educativo. Diminuir o preconceito contra minorias é educativo, mas também temos que ter em mente que a função de educar é da escola e dos pais. Só pensa que novela tem que educar seu filho quem foi educado pelo Xou da Xuxa. Além do mais, gerações e gerações de gays, lésbicas e transgêneros existiram e continuarão a existir mesmo sem terem assistido a nenhuma uma novela a vida toda, com ou sem personagens LGBTs. Mesmo sendo filhos de casais heterossexuais de famílias ditas tradicionais.

Portanto, se sua fé é frágil, se seus valores são frágeis, se a educação que você dá a seu filho é frágil, se a sua sexualidade é frágil, não culpe a TV. Tirar os gays e as lésbicas e as trans das TV não os fará desaparecer.

P.S.: E se você ainda tá com esse mimimi de “o que vou dizer pro meu filho?”, aqui vai um post do Guy Franco, bem didático, sobre como falar de “beijo gay” em casa.