Scorpius e Albus em Harry Potter e a criança amaldiçoada

“Criança Amaldiçoada” evidencia a falta de diversidade sexual do universo Harry Potter

J.K. Rowling não parece ser capaz de criar os personagens LGBT que seus leitores desejam. Esse descompasso começa a afastar os leitores que tanto amam a mensagem de tolerância da série

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Aja Romano para o site Vox.com

Em outubro de 2007, durante uma rara aparição no teatro Carnegie Hall, diante de uma plateia lotada, a autora de Harry Potter, J.K. Rowling, despretenciosamente fez uma das maiores revelações na história do fenômeno literário que criou: Dumbledore, o mentor de Harry e o maior mago do mundo até sua morte dramática no sexto livro da série, era gay.

O público imediatamente deu um salto de alegria e rugiu com aprovação. Rowling parecia surpresa. “Se eu soubesse que vocês iam ficar felizes assim”, ela disse, “eu teria dito isso há anos.”

No ano de 2016, no entanto, quase uma década depois de tirar Dumbledore do armário e quase 20 anos depois da publicação do primeiro livro da franquia Harry Potter, o mundo que Rowling criou ainda tem a aparência e o jeito que tinha quando Harry entrou em Hogwarts pela primeira vez: quase completamente branco, e rigidamente heteronormativo. Depois do lançamento do mais recente título da franquia, Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, os fãs intensificaram as críticas de que Rowling e seus colaboradores não estão fazendo o suficiente para trazer as representações progressistas de hoje para o vasto mundo mágico de Harry Potter.

Harry Potter e os fãs que tornaram-se adultos

O universo Harry Potter gerou um legado internacional de fãs que já atravessa três gerações: os fãs adultos que apreciaram os livros e os filmes conforme eram lançados, as crianças que tornaram-se adultos ao lado de Harry e seus amigos, e fãs mais novos, que estão hoje descobrindo a série.

Mas, para muitos desses fãs, a estagnação do mundo de Harry Potter torna-se cada vez mais difícil de ignorar. Os milhões de crianças que cresceram com os livros, e deles aprenderam uma doutrina de amor, gentileza e tolerância, agora são adultos que tentam aplicar essa doutrina para um mundo cada vez mais complexo: um estudo recente descobriu que leitores de Harry Potter tendem a votar menos para Donald Trump nas próximas eleições presidenciais dos EUA. Enquanto isso, os fãs adolescentes prosperam numa realidade diversa e imbuída de tecnologia, que cada vez mais diverge daquela descrita por Rowling.

Nos últimos anos Rowling começou a expandir ativa e regularmente o universo Harry Potter por meio de factoides que publica em sua conta no Twitter, novas histórias que lança no site Pottermore, os filmes da nova série Monstros Fantásticos e a nova peça Harry Potter e a Criança Amaldiçoada (escrita por Jack Thorne e dirigida por John Tiffany, que também colaborou com a história). Mas esse retorno feliz ao mundo dos bruxos não parece, no entanto, realmente diversificá-lo ou torná-lo mais complexo – e o resultado é um distanciamento cada vez maior entre os fãs do trabalho de Rowling e sua obra.

O abalo mais recente nesse cisma vem do relacionamento central da Criança Amaldiçoada. A amizade na peça entre o filho de Harry, Albus, e o filho de Draco Malfoy, Scorpius, atraiu vários comentários na mídia daqueles que não medem palavras para criticar a maneira como o roteiro investe muito tempo acumulando indícios do que seria um relacionamento queer entre dois garotos, apenas para descartá-lo brutalmente ao final da peça com uma desculpa deslavada. de heterossexualidade. Gavia Baker-Whitelaw, repórter do site Daily Dot, utilizou essa lógica para rejeitar as comparações entre a peça e os contos escritos por fãs, apontando que, se verdadeiros fãs de Harry Potter houvessem escrevido essa história, Albus e Scorpius seriam LGBTs e se apaixonariam um pelo outro.

A ira que os fãs sentem pela maneira como se desenrola o relacionamento entre Albus e Scorpius é especialmente forte agora, pois os leitores já passaram anos revoltados com a maneira que Rowling tratou outros personagens queer em seus livros. A essa altura, a heterossexualidade pervasiva do mundo dos bruxos é o indício mais incriminador de como o universo Harry Potter não consegue evoluir.

Os fãs de Harry Potter e o mundo imutável dos bruxos

A atenção recente dedicada à relação LGBT entre Albus e Scorpius faz parte de uma mudança cultural dos fãs, que agora esperam representação repleta de nuances e desperam personagens diversos e a construção de um mundo também diverso.

Os fãs online de Harry Potter – o ramo transformador, crítico, notadamente progressista dos fãs – já passou anos adaptando a realidade de Harry a sua própria. Isso tomou várias formas, dentre elas enviadecer alguns personagens, expandir o universo por meio de histórias e filmes feitos por fãs, e, especialmente nos últimos dois anos, um movimento dentre grande parte dos fãs ilustradores de se interpretar Harry e Hermione como pessoas negras ou latinas. Essa última interpretação tornou-se tão pervasiva nos desenhos feitos por fãs colocados no Tumblr que em algumas comunidades descrições de Harry como alguém negro ou latino são quase tão frequentes quanto as descrições dele escritas de acordo com o cânone.

Fãs de Harry Potter apropriam-se dos personagens e os reinterpretam em diferentes etnias.

Fãs de Harry Potter apropriam-se dos personagens e os reinterpretam em diferentes etnias.

Em contraste, apenas no último ano, Rowling teve que encarar repercussões negativas por causa da maneira errônea como tratou os indígenas em sua nova história sobre a sociedade mágica dos Estados Unidos; por causa do elenco gritantemente caucasiano de Animais Fantásticos e Onde Habitam (a escolha de uma mulher negra como líder do ministério da magia norte-americano foi anunciado e enfatizado apenas depois que a controvérsia surgiu entre os fãs); e por tentar, como veem muitos fãs, “colher os louros” de se fazer com que Hermione fosse oficialmente negra, apesar de explicitamente descrever Hermione como uma personagem branca várias vezes em seus livros.

A sequência de tuítes mostrada acima é bastante reveladora. O leitor responde a Rowling: “há registros de você ter aprovado a escolha de Emma Watson [para interpretar Hermione], e há sim descrições do tom de pele da personagem, duas”. Apesar de haver muitos fãs que celebram sem questionar o fato de que Rowling comprou a ideia de uma Hermione negra, há muitos outros mais que desafiam sua posição, vista como uma mistura de hipocrisia e más intenções. Repetidas vezes os fãs de Harry Potter rejeitam agressivamente as tentativas da autora de se posicionar, e posicionar sua visão do mundo de Harry Potter, como progressista.

Hermione negra criada por fãs de Harry Potter

Os fãs foram os primeiros a reimaginar Hermione como uma personagem negra

Em 2014 Rowling revelou que pelo menos um personagem – Anthony Goldstein, um estudante da Grifinória que mal aparece em Ordem da FênixRelíquias da Morte – é judeu, e Animais Fantásticos promete pelo menos mais um. E, sim, há uma Hermione negra no palco de Criança Amaldiçoada. Mas esses gestos, independente de quaisquer indicações de que o mundo dos bruxos como um todo está se tornando mais diverso, cada vez mais dão a sensação de serem prêmio de consolação.

O mais estranho é que Rowling já demonstrou ser capaz de utilizar uma consciência social afiada e incisiva em seus outros trabalhos de ficção, especificamente nos romances de mistério de Cormoran Strike, escritos sob o pseudônimo de Robert Galbraith, assim como seu romance The Casual Vacancy. Esses livros, escritos para o público adulto, contêm elencos diversos e comentários sociais mordazes em questões que vão de disputas de classes a moradores de rua a homofobia.

Ainda mais exasperante quando o assunto é a identidade queer é que em uma entrevista concedida em 2007, a própria Rowling deixou claro que não pensa que ser gay no mundo dos bruxos seja uma grande questão:

Se estamos falando das pessoas preconceituosas do mundo dos bruxos, o que mais importa para eles é a questão do sangue. Acho que pode-se ser gay e sangue-puro e não receber qualquer tipo de crítica dos Lucius Malfoys do mundo. Não acho que isso lhe despertaria o menor interesse. Mas eu não posso falar por todos os bruxos e bruxas, porque acho que, quando se trata das matérias do coração, elas seriam paralelas às do nosso mundo.

Para os leitores e aliados queer de Harry Potter, essa lógica é um paradoxo: Rowling abriu o caminho para que haja mais personagens LGBT, e sabe que isso os faria muito felizes. Então por que, mais de uma década depois de tirar Dumbledore do armário, o mundo de Harry Potter ainda é, para todos os efeitos, 100% heterossexual?

Albus/Scorpius e a roda do tempo heteronormativa

O principal relacionamento da trama cheia de viagens no tempo de A Criança Amaldiçoada é a intimidade profunda existente entre o filho de Harry, Albus, e seu melhor amigo, Scorpius, o filho do rival de Harry, Draco Malfoy.

Albus/Scorpius é um dos relacionamentos mais desejados pelos fãs de Harry Potter desde que foi lançado Harry Potter e as relíquias da morte. Thorne e Tiffany encheram o roteiro da peça com referências de um relacionamento potencialmente queer entre os dois. Na peça, os dois garotos dedicam-se um ao outro com total devoção. Eles trocam abraços longos e sensuais. Eles têm ciúmes de outros relacionamentos que possam competir com a que há entre eles, e não querem separar-se um do outro.

Quando Scorpius vê Albus conversando com uma garota, o script esclarece que “parte dele gosta, e parte não gosta”. Em certo momento, um personagem faz questão de comparar o amor que Scorpius sente por Albus aos sentimentos canonicamente românticos que Snape sentia pela mãe de Harry, Lily, e informa-se sentimentalmente a Scorpius que “vocês dois são feitos um para o outro”. É difícil interpretar isso tudo como uma recomendação para que tenham um relacionamento platônico.

E, no entanto, é exatamente assim que, dizem, devemos interpretar esses momentos. Ao longo de todo o texto de A criança amaldiçoada, o subtexto sexual paira em torno das interações entre Albus e Scorpius, conforme eles fazem tentativas desajeitadas de explorar sua sexualidade com as garotas. Repetidas vezes as mal-escritas personagens femininas da peça são utilizadas como nada mais que objetos de cena segurando os luminosos gigantes que piscam acima dos dois garotos com os dizeres “SEM VIADAGEM”. O interesse de Albus e Scorpius pelas garotas parece ter sido colocado como um adendo, enfiado ao longo da peça em momentos mal desenvolvidos e nada convincentes.

Rose Granger-Weasley, a filha de Hermione e Ron, aparece ao longo de A criança amaldiçoada para explicar detalhes da trama e servir de alvo para as investidas românticas de Scorpius. No final, sem qualquer tipo de desenvolvimento do relacionamento entre os dois, ela finalmente responde quase positivamente às tentativas frustradas do bruxinho de pedir para que saiam juntos. Por si só, é uma versão um tanto preocupante da tática de “insistir até ela cansar”; associado ao subtexto homoerótico da peça, é um desastre.

Entre os leitores há um termo muito conhecido para esse mecanismo de se provocar o público com um subtexto homossexual e em seguida negá-lo oficialmente: queerbaiting (expressão que significa “jogar a isca para LGBTs”). Como conceito e como prática, queerbaiting  é universalmente repudiado por leitores que desejam encontrar relacionamentos queer significativos, bem desenvolvidos e felizes nas narrativas que consomem.

Queerbaiting é visto como uma tática de exploração, utilizada para atrair fãs (“jogando-lhes uma isca”), para então marginalizá-los ainda mais por meio de negações oficiais daquilo que a narrativa cultivou deliberadamente. Esse processo costuma ocorrer em mídias serializadas ao longo de um bom tempo, não em uma longa peça em duas partes. Mas os fãs não sentiram qualquer receio de expressar sua revolta contra o que consideram um queerbaiting proposital em A criança amaldiçoada.

Recentemente o jornal britânico The Guardian – que, ironicamente, em 2007 argumentou que tirar Dumbledore do armário não passava de uma resposta mal-ajambrada à questão da representação queer – posicionalmente no lado diametralmente oposto com relação a A criança amaldiçoada. Em resposta às reclamações dos fãs de que haveria queerbaiting na peça, Ilana Masad argumentou que a revolta dos fãs estava mal direcionada, e que permitir que Albus e Scorpius sejam amigos héteros que mesmo assim compartilhavam uma intimidade profunda e sem amarras ainda é uma forma de progresso.

Acontece que o mundo encantado de Rowling já está repleto de amizades íntimas entre homens héteros: repetidas vezes suas tramas recorrem à camaradagem masculina, à rivalidade masculina e, frequentemente, traição entre amigos homens. Harry e Ron compartilham uma amizade profunda e íntima ao longo de sete livros. O que não há entre eles é um subtexto LGBT: não há momentos recorrentes de contato físico cheios de tensão sexual, nem discursos recorrentes de como eles se amam e não conseguem viver sem a amizade um do outro, nem ocasiões em que o interesse romântico do amigo por uma garota dispara uma onda de ciúmes. Resumindo, eles não têm nenhum dos comportamentos marcadamente homoeróticos do relacionamento entre Albus e Scorpius.

O que não significa, no entanto, que não há subtexto LGBT na série Harry Potter. Pelo contrário, ele existe, e muito.

Dumbledore e a maldição da homossexualidade fora das telas

Apesar de muitos fãs terem ficado felizes por Dumbledore ter sido tirado do armário, houve críticas de sobra por Rowling ter decidido declarar a homossexualidade do diretor de Hogwarts apenas depois do término da série (o sétimo e, ao que tudo indicava na época, último volume da série havia sido lançado vários meses antes).

Albus Dumbledore, mentor de Harry Potter

Albus Dumbledore: permissão para sair do armário só depois de morto.

Muitos leitores sentiram que a opção por esperar que a história estivesse concluída para fazer a declaração não passava de uma migalha, que de pouco servia. Ao tirá-lo do armário depois de sua morte, Rowling para todos os efeitos colocou Dumbledore na histórica e problemática “sociedade dos gays mortos”, ao invés de mostrar a identidade queer do personagem durante sua vida – ou, melhor ainda, oferecer às crianças exemplos de personagens LGBT da idade de Harry, com os quais os leitores poderiam se relacionar de maneira mais direta do que com um diretor de escola de 150 anos com apreço por meias.

Como se isso não fosse o suficiente, revelar a sexualidade de Dumbledore fora dos livros significa que há leitores que não têm acesso a esse tipo de notícia e que jamais ficarão sabendo que o diretor de Hogwarts é gay. Para esses fãs, Dumbledore jamais será o representante de nada.

Esse tipo de representação meia-boca não chega a ser novidade para muitos fãs. Na época em que Rowling contou que Dumbledore é gay em 2007, os leitores queer de Harry Potter já vinham criticando há muitos anos o subtexto LGBT dos livros – ou sua falta. Em um documentário de 2007 entitulado J.K. Rowling: A Year in the Life (“J.K. Rowling: um ano em sua vida”), Rowling responde negativamente quando um leitor lhe pergunta se Charlie Weasley é gay: “é só que ele está mais interessado em dragões que em mulheres”. Outras leituras subtextuais de personagens LGBTs nos livros feitas ao longo dos anos incluem Percy e Ginny Weasley, Dean e Seamus, e, claro, o próprio Harry.

Em geral, aqueles leitores que já estavam frustrados com a falta de representatividade real de personagens LGBT nos livros de Harry Potter também tendem a sentirem-se frustrados com a maneira como Rowling tratou Dumbledore. Os fãs já reparam e chamam a atenção para essa ausência há anos: “se entre 5 a 8% das pessoas são LGBT,  e há aproximadamente 900 personagens ao longo da série, haveria de 45 a 72 personagens queer”, escreveu um leitor frustrado em 2012. “Onde estão eles?”.

Remus, Tonks e a eliminação do subtexto queer

De longe, os maiores alvos desse tipo de inquérito feito pelos leitores queer foram Remus Lupin, Sirius Black e Tonks, a metamorfomaga. Nos livros, Rowling utilizou a condição licantrópica de Lupin propositalmente como uma metáfora para o vírus HIV e o estigma onipresente que acompanhava a Aids nos anos 1980 e no começo dos anos 1990, quando estava escrevendo os livros. Muitos fãs extrapolaram a partir dessa alegoria óbvia na história que o próprio Remus seria um personagem queer.

A natureza do relacionamento de Remus com seu melhor amigo de longa data, Siruis, parecia favorecer esse tipo de leitura. Os fãs celebraram quando souberam que o par havia dado em conjunto um presente de Natal para Harry no quarto livro; poderia haver um símbolo maior de uma parceria gay que darem juntos um presente para seu filho postiço?

Por muitos anos, os fãs de Harry Potter em sua maioria presumiram que Remus era canonicamente um personagem queer. (Essa crença era tão comum que um repositório de contos escritos por fãs, que rejeitava a formação de uma gama de casais, aceitou um conto em que Remus e Sirius ficavam juntos porque seus moderadores consideravam isso como cânone – ou seja, um elemento estabelecido textualmente dentro da série.)

Acontece que essa teoria não era compartilhada pela própria Rowling. Com a chegada do quinto livro, uma complicação surgiu sob a forma de Ninfadora Tonks, capaz de mudar de forma, cujo cabelo rosa espetado e estética punk fez com que muitos leitores a percebessem como uma lésbica caminhoneira. Junte a isso a insistência da personagem em ser chamada por seu sobrenome de gênero neutro e sua habilidade de mudar de gênero e aparência o quanto quiser, e muitos leitores a consideraram uma personagem canonicamente genderqueer ou de gênero fluido.

Tem que se admitir que essas leituras LGBT de Tonks e Remus nunca foram explicitadas em qualquer trecho dos livros de Harry Potter. Mas há décadas em que fãs queer acostumaram-se a amealhar indícios das aparições, contextos e subtextos de personagens e histórias para tentar vislumbrar ícones LGBT aonde for possível. Esses indícios intencionais oferecidos por escritores e atores surgiram dentro do contexto homofóbico do “armário de celuloide” de Hollywood, e tornou-se uma prática subterrânea de se “marcar” personagens como queer.

É essa prática em decifrar indícios na trama e na estética de obras que permitiu que espectadores queer lessem o subtexto homoerótico intencional que foi utilizado em filmes com Ben HurRebelde sem causa. Para os fãs acostumados a esse tipo de exercício, fazia todo o sentido que uma escritora hábil como Rowling inseriria pistas subtextuais para deixar seus livros infantis mais LGBT sem atrair controvérsias. E, sem desmerecer seus leitores, foi exatamente isso que Rowling fez – só que com Dumbledore, não com Remus e Tonks.

Pelo contrário, Rowling tomou uma rota totalmente diferente e discordante: fez com que Remus e Tonks se apaixonassem um pelo outro. Ao fim do sétimo livro, Rowling havia inserido Remus e Tonks num padrão já bem estabelecido: eles haviam se casado, tido filhos, e aparentemente passado, cada um, por uma Transformação Hétero Total. Tonks, em particular, havia se tornado uma versão mais suave, mais gentil e mais feminina de Tonks, permitindo que Remus a feminilizasse chamando-a de “Dora”, um nome que antes odiava, capaz de sofre por Remus, tornando-se fisicamente mal de preocupação com sua segurança.

Lupin e Tonks: o casal heterizado da série Harry Potter?

Lupin e Tonks: o casal heterizado da série Harry Potter?

O desenvolvimento desses personagens causou uma ira profunda, amargurada (e muitas vezes misógina) entre os fãs do casal Remus/Sírius. Muitos porém continuaram a interpretar Remus como bissexual, já que não havia nada que indicasse que Remus não havia se apaixonado por Sirius antes de entrar num relacionamento com Tonks. Mas então, em 2013, depois que os fãs haviam passado anos adaptando Remus e Tonks para que fossem personagens bissexuais, Rowling negou sequer a possibilidade de que Remus fosse LGBT. Numa história publicada no site Pottermore, ela explicou que, antes de seu relacionamento com Tonks, Remus nunca havia se apaixonado.7

Quando perceberam que Rowling nunca tinha tido a intenção de que Remus fosse lido como um personagem queer, muitos fãs reclamaram que ela havia explorado de propósito uma questão importante do mundo LGBT sem realmente permitir que LGBTs fossem representados em seus livros. Basicamente, muitos fãs passaram a acreditar que Rowling havia pegado os dois personagens mais queer da série, “heterizado” os dois, e feito com que ficassem juntos numa união heteronormativa para fazer filhos.

J.K. Rowling e a distorção da realidade

No mundo criado por Rowling, é muito comum que se case bastante jovem com a namoradinha de escola, e então permanecer casado para sempre. Há casamentos de sobra como esses no mundo de Harry Potter: nos livros podemos ver uniões que se formaram cedo e permanentemente entre muitos pares da geração que precede a dos protagonistas, dentre eles os pais de Harry e os pais de Ron. Muitos dos alunos da geração de Harry Potter persistem nesse padrão: Harry e Ron casam-se com suas namoradas de escola pouco depois de se formarem; Draco, Neville e Luna todos casam-se pouco depois de completarem sua formação, e permanecem indefinidamente com seus parceiros. Pelo que se sabe, existem apenas três divórcios em todo esse universo, e esses são todos detalhes menores extraídos do site Pottermore, não dos livros em si.

Em A criança amaldiçoada, o relacionamento entre Scorpius e Albus segue o padrão exato do tipo de romance que se cultiva em Hogwarts e se transforma em casamento depois da formatura. Eles têm tudo para terminar num casamento de contos de fadas – ou teriam, se o relacionamento entre os dois seguisse o molde heterossexual típico.

Ao invés disso, pede-se que os fãs aceitem que o que há entre os dois é uma amizade de contos de fadas. Mas quando não há qualquer pessoa LGBT em lugar nenhum no vasto universo de Harry Potter, manter o status quo de um relacionamento heterossexual entre dois personagens masculinos não tem nada de progressista, ou sequer de significativo. E o cúmulo da ironia é que um dos dois personagens tem seu nome em homenagem a Albus Dumbledore – até agora, o único personagem canonicamente-mas-nem-tanto homossexual em todo mundo dos bruxos.

É desconcertante que, apesar da atitude tolerante que dizem existir no mundo dos bruxos, Rowling, Thorne e Tiffany não se aproveitaram da oportunidade de criar um romance LGBT dentro da descendência Potter-Malfoy que tornaria-se um marco.

Pode-se argumentar que, talvez, nenhum deles teve esse estalo – e, para uma autora menos ciosa que Rowling, esse poderia ser um argumento válido. Mas Rowling, que continuou a produzir material canônico para o universo Harry Potter em seu site, Pottermore, obviamente passa uma parte enorme de seu tempo refletindo sobre o mundo dos bruxos. Se Rowling honestamente não criou uma maneira de incorporar personagens LGBT no futuro cada vez mais amplo do mundo dos bruxos – bem, por que?

Essa questão não trata apenas do fracasso de Rowling em considerar um romance queer numa peça. É uma acusação retórica da relutância consistente da autora em permitir que suas série se desenvolva de maneiras importantes.

A franquia Harry Potter  estabeleceu-se como um fenômeno verdadeiramente internacional, que toca fãs através de todos os tipos de cultura e etnicidades, de todos os gêneros e orientações sexuais possíveis. Mas a história de Harry, e agora as histórias de Newt Scamander antes, e as de Albus Potter depois, são todas histórias sobre homens brancos europeus heterossexuais e cisgênero. Em 2016, para vários dos fãs de Harry Potter, essa simplesmente não é mais uma visão aceitável do mundo dos bruxos.

Em certa altura de A criança amaldiçoada, Hermione explica que, desde a derrota de Voldemort em 1998, o mundo dos bruxos gozou de 22 anos de paz e prosperidade, virtualmente sem conflitos. Essa afirmação é feita apesar de, ao fim do último livro, Rowling ter deixado a comunidade dos bruxos com problemas para resolver como os resquícios de uma guerra genocida, as tensões entre várias facções de bruxos e Trouxas, e vários grupos de criaturas encantadas.

Deixar isso tudo de escanteio sem qualquer tentativa de reconciliar qualquer um desses conflitos dá a impressão de uma ingenuidade forçada dos escritores de A criança amaldiçoada. Para os leitores que tentam colocar o universo de Harry Potter dentro de um contexto das tensões geopolíticas das últimas duas décadas de nosso próprio mundo Trouxa, isso soa espantosamente irreal. E os fãs de Harry Potter estão na linha de frente de uma tendência cultural entre os geeks, que insiste que os gêneros de fantasia ou ficção científica deveriam, mesmo que minimamente, refletir a realidade.

Ironicamente, muitos dos fãs de Harry Potter aprenderam a criticar, desafiar, e rejeitar nas narrativas velhas e datadas com a própria série que agora criticam e desafiam. Mas o verdadeiro recado que os fãs estão dando com suas reclamações é que, se o mundo dos bruxos não mudar para refletir o mundo cada vez mais diverso em que vivemos, os leitores vão sentir-se cada vez mais desconectados desse universo que já amaram tanto. As respostas que dão para Rowling não são reclamações de fãs mimados que acham que sabem mais que a própria autora, mas sim a esperança de fãs que estão fazendo de tudo para não deixar para trás seu primeiro e maior amor.

O que é bom no interesse continuado de Rowling pelo universo Harry Potter é que quanto mais atualizações canônicas ocorrerem, mais oportunidades haverá de se injetar alguma nuance em seu mundo literário. No mínimo, o amor que faz com que Rowling retorne sempre a seu mundo encantado é o mesmo amor que faz com que seus fãs a pressionem para torná-lo melhor.

E como a série Harry Potter nos ensinou: onde há amor, sempre há esperança.

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14 comentários

Yuu Sousa

Eu concordo que falta muita diversidade em HP, mas penso que tem a coisa da região e da raça de cada lugar que se passa a história. Também penso que realmente ela poderia ter dado um fim a Remus e Sirius como casal, porque aparentemente era uma ótima oportunidade, mas ela não só negou isso, como ainda negou a bissexualidade deles. É o que parece mais errado nisso tudo, até porque não se teve preparação pra nós leitores, ninguém se sentiu confiante desse “amor avassalador” que fez os dois personagens mudarem drasticamente. E isso é triste sim, nosso mundo de trouxas já é uma merda com preocupações insignificantes sobre raça e sexualidade, imaginar o mundo bruxo se importando com essa mesma merda é no mínimo broxante.

Tamires

É normal que ao se ler um livro, busque-se uma identificação com os personagens, mas daí a ser obrigatório que a questão da homossexualidade seja abordada, isso já é demais. Harry Potter nunca foi sobre relacionamentos amorosos, os casais existentes eram tramas secundários, pouco abordados, inclusive. Até o namoro do próprio Harry com a Gina foi secundário. É uma trama sobre aventuras, é entretenimento, não militância. Honestamente, não sinto nenhuma falta das questões citadas na matéria serem abordadas.

Vanessa

O texto diz isso, entretanto, o que vejo é os fãs cada vez mais animados com a estreia próxima de Animais fantásticos e onde habitam, e completamente entusiasmados com a expansão que a autora está dando ao seu mundo. Essa reclamação referente a personagens LGBT pelo visto está bem restrita, isso sim. E além disso, escritores não tem obrigação de colocar personagem nenhum somente para agradar. A historia pertence a ela, e se a J.K. Rowling quiser que todo mundo seja de um jeito, ela tem esse direito. É o mundo dela, criado por ela, ninguém tem que querer ficar mandando na escrita alheia, e achando que tem direito de forçar autores a mudar suas historias somente porque querem ver um personagem de tal jeito. Parem de achar que vocês podem controlar as historias da J.K. Rowling. É ridículo essa reclamação toda, como se ela devesse algo a vocês. Não gostam da forma com que o mundo de Harry Potter funciona, bem, ninguém está obrigando vocês a ler os livros nem comprar nada referente a série, não comprem então. Mas não pensem que somente porque consumiram coisas referentes a HP vocês podem decidir o que ela deve ou não fazer com sua própria historia. Só vejo um bando de gente mimada querendo enfiar representatividade a força em tudo. Enfim, Harry Potter e a J.K. Rowling tem milhares de fãs, vocês não farão falta nenhuma, fiquem a vontade para ” deixar para trás seu primeiro e maior amor”, já que não estão satisfeitos mais. Pode ter certeza que os verdadeiros fãs jamais abandonaram Harry Potter e tudo que a série significou para nós.

Dan

Incrível a capacidade dessas pessoas insensatas de não compreenderem a questão de forma neutra, e empática, sempre tem que envolver militância, política, bandeira, causas, entre outras formas, a certo ponto chatas, de diminuir os fatos e nos taxar de vitimistas; credo mano, o fato de você compactuar com a discussão, mas não ”reclamar”, e que é gay, negro, asiático, ou qualquer outra identidade humana, não os torna melhor que alguém que se importa com essas questões, que ranço antipático e egocêntrico, aceitem que a série não é perfeita e que tem seus problemas ao invés de ficarem defendendo, tenham em mente que esses filmes e séries tem seus impactos na vida real, de alguém, aqui, da realidade, por isso a importância da representatividade total, para que não pareça algo forçado.

Rachel

Se tem uma coisa que Harry Potter nos ensinou foi a não viver dentro do armário.

Cleber Rodrigues

Sou fã e assisto Harry Potter desde os meus cinco anos de idade, faz parte da minha vida, meu cotidiano e alguns conceitos presentes na série( o grande ênfase que ela dá ao amor por exemplo), ajudaram a moldar o meu ser. O seu texto e coerente, você e bom nos argumentos e não passa a imagem de ser algum poser, realmente sabe o que está falando, o que é admirável. Mas não acredito que a série não ter representação LGBT seja um erro ou um defeito. Sabemos que J.K não é uma mulher preconceituosa, mas dai você querer que ela inclua personagens gays devido ao grande sucesso e abrangência que a série teve, não e algo legal. Não e só porque uma pessoa pode se comunicar com uma grande massa que ela tem por obrigação levantar bandeiras ou defender causas ( posso estar errado, e peço desculpas se estiver, mas parece ser isso o que você quis dizer), o mundo aos poucos está evoluindo, não está nem perto do ideal, mas comparado a períodos anteriores, estamos muito melhor no que diz respeito ao preconceito. Admito que adoraria que a série tivesse referências GLS, mas não vamos criticar como se fosse alto tão péssimo não ter, talvez Rowling apenas não quis que tivesse, o que não a torna uma pessoa preconceituosa. Deve ser péssimo para um famoso, seja ele de qual ramo for, ter tantas cobranças quanto ao que faz, ela nos deu uma excelente história, e isso para mim basta. Ela mesmo já disse ter encerrado a saga Harry Potter, estou satisfeito com o que li e assisti. E algo que entrou para história da literatura mundial. E acho que isso basta. Parabéns pelo texto Marcio, muito legal ter um site como esse, em que a opinião e exposta sem ofender ninguém. Abraço!

Gleison Ferreira

Boa noite, achei interessante a discussão proposta pelo artigo, contudo, a “chamada” não faz sentindo. J. K Rowling não escreveu “Curse’s Children”, ela leu o roteiro e contribui com uma ou outra informação, o roteiro foi escrito por dois autores britânicos; sentenciar que Rowling é incapaz de “criar os personagens LGBT que seus leitores desejam” ou que, “Criança Amaldiçoada” evidencia a falta de diversidade sexual do universo Harry Potter” é imaturidade jornalística. J.K Rowling nos deu um universo que ela pretende somente apliar com pequenos contos, ou, no caso de “Animais Fantásticos…” mostrar algo que se é datado. Culpá-la dessa forma e pueril!

Marcio Caparica

Você acha mesmo que qualquer coisa em “A Criança Amaldiçoada” aconteceria (ou deixaria de acontecer) à revelia de J. K. Rowling? Ela sem dúvida aprovou tudo. Ela é igualmente responsável. E mais que os dois escritores, já que é a criadora e responsável pelos personagens. O universo Harry Potter não é como o universo Star Wars ou Marvel, que são criados por comitê. Rowling é a comandante de tudo que se refere a Harry Potter e seu mundo.

Gleison Ferreira

Não! Rowling divide o comando de seu mundo com a Warner, que detem os direitos sobre produtos licenciados; volto a repetir Rowling leu e contribui com alguma ou outra coisa para “Criança Amaldiçoada” ela não escreveu nenhuma linha do script da peça, tem possuía poder criativo sobre a mesma, a ponto de alterar a sexualidade ou gênero de personagens.

Keila

Harry Potter fez e faz um sucesso estrondoso sem precisar de personagens LGBT. É um livro que instiga principalmente as crianças a imaginarem um universo diferente do que vivem. Não vejo necessidade alguma de incluir homossexuais nesse mundo mágico que encanta os fãs do jeito simples e profundo que é. Se mudar demais vai estragar com certeza. A demais não é interessante forçar a mente das crianças a entender relações homo.

Amy

Forçar? Mas, a JK mesma já falou que Dumbledore era gay, e isso, a aaaaaanos logo homossexualidade é algo comum e cotidiano no mundo bruxo. Não seria forçar absolutamente nada. Forçar e criar um universo onde TODOS sejam heterossexuais, isso não existe.

Yano

Sou gay e asiático, e achei essa matéria uma grande merda! O movimento LGBT só vai evoluir, se vocês pararem de se vitimizar o tempo todo. Ta feio já!

Amy

Vc é um fake problemático. Quem sofre na mão da sociedade não precisa se vitimizar pra ser vítima. Se você é gay msm, leva seu namorado pra uma festa de trabalho ou beija ele no meio da rua pra ver o que acontece.
Fica quieto que ta feio já.

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