Um conselho para quem for assistir à peça Fortes Batidas, em cartaz no Centro Cultural São Paulo até dia 7 de fevereiro: não espere ficar sentado. Muito pelo contrário. O espetáculo se propõe ser uma peça imersiva, criando um ambiente de balada dentro do qual se desenrola a história de vários jovens. A experiência que já começa na fila de espera: os atores já encarnam seus personagens enquanto o pessoal da entrada confere os RGs dos espectadores (como em toda balada que se preza). Quando se entra, a pista já está pegando fogo, o som é bom, a luz é digna das melhores casas noturnas do centro – o texto faz questão de frisar que não estamos na Vila Olímpia. Não dá pra ficar sentado. Quando já estão todos dançando e sorrindo, tem início a dramaturgia.
Ao redor e entremeados aos espectadores, acompanha-se em Fortes Batidas vários personagens recorrentes na vida noturna: um casal que tenta abrir a relação por uma noite, a garota comportada que não sabe o que está fazendo ali (mas de repente pode acabar beijando uma menina pela primeira vez), o boyzinho hétero homofóbico, o gay que gama no menino hétero, e tantos outros. É inevitável que o público acabe se envolvendo com aquelas cenas acontecendo a seu lado: não demora muito as pessoas estão gritando conselhos amorosos para os personagens, trocando comentários tipo “pior que é assim mesmo” com o desconhecido ao lado, e comemorando cada fora que o agatê tosco leva dos outros personagens. Quem der sorte pode acabar até ganhando uma cerveja entre uma cena e outra – ou quem sabe até um beijo.
Criada em 2014 pelo diretor Pedro Granato, Fortes Batidas já foi encenada em várias cidades, nos mais diversos espaços, já ganhou prêmios e até virou livro. Confira a seguir sua entrevista para o LADO BI, e depois corra para conferir o espetáculo: a entrada é franca, e como Granato bem descreve, é como uma balada, mas ainda mais legal.
LADO BI Como foi o processo de desenvolvimento do texto da peça, e como ele evoluiu ao longo desses três anos?
PEDRO GRANATO O texto da peça surgiu da inquietação de fazer um espetáculo para o público jovem, pensando no que o público jovem vive, o que ele quer ver, quais são seus conflitos. Ele aconteceu logo depois de eu fazer a direção de um espetáculo para o Leo Moreira também voltado para o público jovem. O incêndio da boate Kiss tinha acabado de acontecer, e eu percebi que a cobertura dessa tragédia era sempre muito moralista, muito condenatória desse universo. Pensei então em fazer alguma coisa que se passasse numa festa, dentro de uma balada. Abrimos então inscrições para uma oficina aberta no CCSP, que contou com 130 inscritos. Foi um processo colaborativo com os atores: eu pedia para eles trazerem questões, e devolvia outras questões para eles resolverem, até que fomos construindo juntos esse texto na sala de ensaio. Eu conduzia a trajetória dos personagens, voltava para casa e trabalhava o texto, indicando caminhos que eu gostava mais. Nesses três anos o que a gente foi fazendo foi sempre atualizar pequenas falas, alguns contextos, trocar algumas músicas, para estar sempre muito conectado com o que está acontecendo. Mas o contexto geral continua o mesmo. E no final do ano passado a gente lançou o livro da peça.
No que a mudança de atores alterou a dramaturgia de Fortes Batidas?
Eu acho que cada ator, quando entra, traz um pouco de seu humor, seu jeito. Isso é esperado, já que a gente trabalha num registro muito próximo ao público, muito interativo. Isso acaba fazendo com que a peça fique mais orgânica, mais viva. Os personagens não são engessados: às vezes muda-se falas, ou algumas músicas, mas a trajetória se mantém. Eu não gosto de fazer teatro prendendo o ator, e menos ainda numa peça como essa, tão interativa, imersiva.
A fluidez da sexualidade dos personagens na peça é algo que surgiu naturalmente ou já fazia parte da proposta inicial do projeto?
Acho que as questões sexuais são inerentes à balada, e são muito da nossa geração. Eu admiro muito como essa geração que veio depois da minha tem mais liberdade pra falar desses tabus, pra vivenciar a própria sexualidade, de maneira até melhor do que foi com a gente. Tinha sim uma vontade de fazer algo ligado à questão da sexualidade – a gente foi convidado pelo Mix Brasil pra fazer um texto, então, para mim, era importante que a gente pudesse falar de assuntos que ainda são rodeados de preconceito. Apesar de ter muita aceitação entre os jovens, da parada LGBT gigantesca, ainda vivemos num país com muita homofobia, muita violência. Então era importante marcar uma posição. Eu valorizei esses conflitos, e foi algo que veio com bastante força do público e dos atores.
A imersão do público no jogo cênico é essencial para o sucesso de Fortes Batidas. Como as reações da plateia mudam quando vocês se apresentam em outras cidades, ou em regiões de São Paulo com tendências menos libertárias que a do CCSP? Já aconteceu algum tipo de resposta negativa ou inusitada durante alguma apresentação?
A interação, o imersivo, são o berço do espetáculo , sua coluna vertebral. Então já aconteceram diversas histórias, muito ricas. É muito gostoso como o público entra na peça, aplaude, interage, responde ao personagem preconceituosos. A gente já teve situações desde público que beijou atores – caiu no jogo de sedução que o ator propunha, ou seduziu o ator, interagindo – até situações mais difíceis, em que uma das meninas foi assediada durante a peça. A pessoa começou a passar a mão nela, a gente teve que dar uma força pra ela sem parar a peça, foi bem chato. Já aconteceram de coisas muito bonitas até situações mais difíceis. Mas a grande maioria das coisas que aconteceram foram muito positivas, muito vivas. Temos três anos de trajetória, e dá pra contar nas mãos os dias que deu alguma coisa ruim. O resto é muita alegria, muita participação.
Apenas o barman, um cara hétero mais velho, realmente aprecia a garota que pega. Isso reflete a realidade vivenciada pelas pessoas envolvidas na criação da dramaturgia? É inevitável, numa peça como essa, pintar um retrato bastante negativo do homem cis hétero?
A gente tenta colocar diversos conflitos. Eu não sinto muito que tentamos falar muito de heróis ou vilões. Tem um casal que está tentando abrir a relação, e mostra as dificuldades em se fazer isso; tem um menino que está se descobrindo homossexual; uma menina que de repente vai experimentar beijar uma menina pela primeira vez. Eu não queria gastar mais uma peça para elogiar e colocar no centro um casal heterossexual porque não precisa né – essa já é a norma, já é aceito, isso já acontece todos os dias. Para mim é muito mais interessante colocar personagens que estão passando dificuldades, preconceitos. Daí a peça se torna mais pungente, mais tocante. Por outro lado eu também não acho que vilanizamos todos os personagens heterossexuais. A peça tem vários personagens heterossexuais, e não sinto tanto que eles sejam vilões por serem héteros. Sim, aquele HT que é machista, homofóbico, esse sim acaba sendo castigado – pela dramaturgia e pelo próprio público.
A desmoralização constante do HT homofóbico ao longo do texto serve de catarse coletiva para boa parte do público, mas infelizmente não reflete o que acontece em várias baladas, em que as mulheres não dispõem das ferramentas (ou da vontade) para resistir ao tipo de assédio que ele faz constantemente. Como elas poderiam ser retratadas na peça?
Acho que a ideia inicia é que a peçal não seja um retrato preciso da realidade. A gente trabalha com um conceito mais próximo ao de Augusto Boal, em que o espectador é parte do acontecimento. Então quando o espectador toma posição contra esses abusos, contra esse comportamento, a gente acredita que se estimula as pessoas a participarem da mesma forma contra essas cenas de abuso na vida real. A gente está dando força para que lutem contra o preconceito, para que aplaudam quando os meninos conseguem se afirmar, quando as meninas conseguem defender sua sexualidade. E também condenem quando alguém é violento ou preconceituoso. Por todos os relatos do público, isso acaba sendo muito efetivo em defender essa posição, em estimular o espectador a na vida ter essa postura ativa. A gente apresenta muitas situações difíceis que acontecem na balada, e felizmente a plateia na maior parte das vezes responde condenando essas ações. Acho que isso também é um canal forte. É claro que numa peça você tem uma moldura, uma proteção – você está contando uma história. Mas a maior parte das histórias são contadas nas artes porque alguma coisa no mundo real não vai bem! A gente está falando de conflitos, não só do que está dando certo.
É importante que as músicas tocadas durante a apresentação sejam sempre os hits mais recentes? Como vocês decidem quais músicas novas vão entrar, e quais serão retiradas?
Nem sempre. O que norteou a construção da trilha sonora é que a peça fosse uma festa, como as festas que acontecem hoje, só que mais legal. A gente busca músicas que a gente goste, ou que tenham muito vínculo com os personagens, e que fossem coerentes com a dramaturgia. A gente não toca só os hits mais recentes! Por muito tempo teve David Bowie na trilha; a música de abertura é do LCD Sound System; a música final não é uma música famosa, e é a música que fecha a peça. A gente mistura um repertório pop com um repertório que a gente gosta muito. Às vezes, até para a identificação do público, é importante trazer hits recentes para a cena. Quando a gente experimentou pela primeira vez “Tombei”, da Karol Konká, a gente viu como essa música significava para a plateia justamente o que a gente queria trazer com a cena, como a cena foi potencializada. Assim como a música “KO” da Pabllo Vttar: ela trazia uma empatia do público, e é uma música de afirmação de uma transexualidade. Acho maravilhoso que a gente possa dar força e corpo a movimentos que já estão acontecendo na cena cultural do país, nas pistas, nas baladas, e usar essa força a nosso favor. É uma comunhão. É gostoso ver o público se identificando. E como é uma festa, faz todo sentido que, como qualquer outro DJ, a gente fique atento ao que está acontecendo, ao que as pessoas estão dançando. Não é um retrato, é uma experiência de uma festa. A gente também busca estar atualizado e permite que isso vá transformando a peça, trazendo novos significados.
Serviço
Fortes Batidas, de Pedro Granato
- Centro Cultural São Paulo – Rua Vergueiro, 100 – Paraíso
- Temporada: 23 de janeiro a 7 de fevereiro de 2018
- Terças e quartas-feiras, às 20h
- Ingressos: grátis, com distribuição de ingressos uma hora antes de cada apresentação.
- Duração: 70 minutos
- Classificação: 16 anos
- Lotação: 150 lugares