Como a homofobia internalizada leva LGBTs ao abuso de drogas e álcool

Sitiados por uma cultura que constantemente os inferioriza, LGBTs têm que lidar com danos psíquicos profundos - nem sempre da melhor maneira

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Owen Jones para o jornal The Guardian

Fazia três ano que eu não encontrava meu primeiro namorado – vamos chamá-lo de Steven. No momento em que ele entrou no bar, em junho desse ano, eu fiquei em choque. Quando a gente se conheceu, há um pouco mais de uma década, ele era do tipo esportivo, meio maníaco por saúde, até: tirando um porre esporádico durante a faculdade, ele não cometia excessos. O Steven que estava na minha frente tinha as pupilas dilatadas, marcas vermelhas nos braços, e mexia a cabeça de maneira irregular enquanto falava aceleradamente. Ele estava viciado em crystal meth, e tinha um relacionamento abusivo com outras drogas e álcool.

A história de Steven é um sintoma de uma crise de saúde silenciosa que afeta os gays. As palavras “crise de saúde” na mesma frase que “gays” costuma automaticamente levar a pensamentos sobre a catástrofe do HIV que decimou a comunidade gay e bissexual na década de 1980. Nos países desenvolvidos o HIV não é mais sinônimo de pena de morte, apesar das possíveis complicações que o tratamento pode gerar; no Brasil, estima-se que houve 44 mil novos casos de contaminação pelo HIV em 2015. Uma ameaça maior é o sofrimento psicológico – impossível de desvencilhar de uma sociedade permeada pela homofobia – e o abuso de drogas e álcool que pode acompanhá-lo.

Agora Steven está sóbrio há 66 dias, dedica-se com entusiasmo a seu tratamento e trabalha como voluntário em seu grupo de apoio local. Mas por que – assim como tantos outros gays – ele cedeu ao vício? Quando Steven declarou-se homossexual, aos 15 anos, seus pais o levaram para uma pseudoclínica coordenada por cristãos fundamentalistas, para que sua homossexualidade fosse “curada”. Hoje ele não fala disso com amargura. “Eu sei que eles me amam e estavam fazendo o melhor que podiam”, afirma. “Eles não entendiam as minhas necessidades, então eles observaram suas próprias vivências, vindas de uma cultura que ensinava que ser gay era um desastre. Que ser gay era sinônimo de viver sozinho, pegar Aids, e várias outras dificuldades na vida. Eles pensavam que estavam me ajudando.”

O problema vai muito além de sua família, no entanto. No início dos anos 2000, ser adolescente e declarar-se gay inevitavelmente significava bullying na escola, falta de modelos positivos, e tornar-se alvo dos ataques de mensagens homofóbicas na mídia. “Em conjunto, isso tudo me fez acreditar que eu estava isolado e era um problema.” Internalizar essa vergonha tão cedo causa danos em longo prazo – e explica grande parte de seus conflitos de hoje.

Esse é um problema analisado por Matthew Todd, ex-editor da revista LGBT britânica Attitude, em seu brilhante – e perturbador – livro Straight Jacket (Camisa de força). Ele identifica vários problemas que a maioria dos gays, se fossem honestos, pelo menos reconheceriam: “níveis disproporcionalmente altos de depressão, comportamento autodestrutivo e suicídio; problemas comuns com intimidade emocional… e agora, uma subcultura pequena, mas significativa, de homens que estão utilizando, e alguns até injetando, drogas realmente perigosas, que, apesar das acusações de histeria lançadas pelos guardiães da identidade gay, matam muitos.” Ele lista um número perturbador de amigos, conhecidos e famosos gays que lutaram com o vício e até tomaram as próprias vidas.

As estatísticas realmente são alarmantes. De acordo com uma pesquisa feita pela ONG Stonewall em 2014, 52% dos jovens LGBTs admitem que já incorreram em comportamento autodestrutivo; 44% deles já pensou em suicídio; e 42% já buscou auxílio médico para sofrimento psíquico. O abuso de álcool e drogas costumam ser maneiras, geralmente danosas, de se lidar por conta própria com esse tipo de sofrimento. Um estudo recente da LGBT Foundation descobriu que o uso de drogas entre pessoas LGB é sete vezes maior que o da população geral, o excesso de consumo de álcool entre gays e homens bissexuais é duas vezes maior, e a dependência em substâncias químicas é significativamente mais elevada.

E por quê? Segundo Todd: “esse é um tipo de vergonha que jogam em nossas costas quando somos crianças, e pela qual continuamos a nos sujeitar”. O problema que os homossexuais têm não é sua sexualidade, mas a atitude que a sociedade tem quanto a ela. Faz parte de “nossa vivência crescer numa sociedade que ainda não aceita completamente a ideia de que as pessoas podem ser algo além de heterossexuais e cisgênero [nascida no gênero físico com o qual você se identifica]”. Há séculos de ódio e preconceito, e a discriminação legalmente sancionada só foi desfeita recentemente. Todos os gays e homens bissexuais – assim como as mulheres homossexuais e bissexuais, e pessoas trans – crescem escutando ofensas homofóbicas e transfóbicas. “Viado” é uma palavra usada durante a infância para significar tudo que há de pior. Os filmes e programas de TV mais populares ainda não costumam ter personagens atraentes e bem construídos, pelo contrário, muitas vezes ainda recorrem a clichês homofóbicos toscos. Mesmo a incapacidade de se andar de mãos dadas com alguém que se ama na maioria dos espaços públicos serve para lembrar que ainda se é rejeitado por uma parcela alta da população. Declarar-se homossexual – um processo que não acontece uma única vez, mas que se repete à exaustão em vários contextos diferentes – envolve um estresse constante. E para aqueles que que pensam que a situação só pode melhorar, os crimes homofóbicos estão crescendo.

A sociedade causou – e continua causando – danos às pessoas LGBT. Sem querer exagerar (e me atendo à minha experiência como gay): ser homossexual não significa viver num estado de miséria perpétuo. Como aponta Todd, há muitas pessoas homossexuais que são felizes e bem sucedidas, e o progresso realizado nos últimos tempos é impressionante. Sair do armário é como finalmente conseguir respirar para a maioria das pessoas LGBT: a alternativa é muito mais infeliz. Mas essa crise de saúde não vem à tona tanto quanto deveria: essa combinação tóxica de sofrimento mental, drogas e abuso de álcool.

É uma crise com a qual não se lida. Por causa de nossa vergonha internalizada, as pessoas LGBT muitas vezes têm dificuldade de falar sobre os problemas que encaramos coletivamente. Há sempre o perigo de se reforçar os estereótipos prejudiciais que já causaram tanto sofrimento. Mas temos que confrontar uma crise que faz mal à saúde e toma vidas. A sociedade também tem que se responsabilizar: a origem de tanto sofrimento  é a recusa de se tratar as pessoas LGBT como iguais. É necessário que se desenvolvam estratégias para lidar com esse tipo de sofrimento. Vidas LGBTs dependem disso.

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Um comentário

Denilson

Em partes eu sei bem como é isso. Tenho 32 anos, sou do interior do estado de São Paulo. Sei que hoje em dia, até aqui na minha cidade, já está um “pouco mais aceitável” ser homossexual, mas eu ainda não tenho coragem e acho que não vou ter tão logo, ou nunca analisando minha idade. O medo não é de “assumir-se homossexual”, meu medo é de ser visto pela família com alguém que “vive errado”; medo de ser apontado na rua pelas pessoas; ser alvo de zombarias. Mas esse medo é alimentado pelo meu estado emocional. Uma coisa eu sei, viver assim “no armário” não acaba bem pra ninguém; ou você afunda em algum tipo de droga ou medicamento, ou viverá como eu , depressivo, ansioso. Obrigado pelo teu trabalho Márcio, essa tua matéria relata muito bem a “realidade emocional”, há exceções é claro, das pessoas LGBTs.

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