Uma população dizimada: como foi o auge da AIDS nos anos 1980

Sobreviventes do pico da epidemia compartilham suas memórias do sofrimento por que passaram, e revelam o papel inesperado e importante que lésbicas tiveram no combate a essa crise

por Marcio Caparica

Fevereiro de 2015 foi o mês da história LGBT no Reino Unido. Isso incentivou que um grupo de membros do site Reddit compartilhassem num fórum suas memórias de como foi passar pelo início da epidemia da Aids na década de 1980. São relatos de uma população desamparada, que sabia que estava sob risco de morte mas não contava com qualquer tipo de informação que lhe permitisse se defender de um mal traiçoeiro.

No Brasil um fenômeno semelhante aconteceu, como consta no filme São Paulo em Hi-Fi e nos relataram profissionais do hospital Emilio Ribas que trabalhavam na época. “Vi duas ou três pessoas se suicidando, correndo e se jogando da janela do hospital, passando na frente dos médicos, porque era uma vida totalmente sem esperança”, lembrou a doutora Gloria Brunetti, infectologista. “Bem no início a gente não sabia o que causava. Não tinha informação nenhuma. Minha mãe tinha medo que o HIV fosse transmitido por mosquito! Jornais publicavam: ‘A peste gay ataca’. No melhor dos casos o prognóstico de sobrevivência era de 12, 15 meses, não havia tratamento nenhum. A gente só conseguia fazer medidas paliativas, tratando infecções. Eu cheguei a perder 100 pacientes em um ano. Havia um médico no hospital apenas responsável por fazer atestados de óbito.”

Confira abaixo outros relatos, traduzidos do fórum no Reddit.

“Três ou quatro amigos morriam por mês”

Eu sou um gay de 62 anos. Felizmente eu atravessei a epidemia que teve início no começo dos anos 1980 e se estendeu até o meio dos anos 1990. Vocês querem saber como era? Eu não sei se eu consigo sequer começar a dizer de quantas maneiras a Aids afetou minha vida, apesar de eu nunca ter contraído o vírus.

No começo dos anos 1980, eu tinha um círculo bastante extenso de amigos e conhecidos, e quando a epidemia realmente começou a pegar, não era incomum descobrir que três, quatro ou mais pessoas que você conhecia morriam a cada mês. Nós organizávamos grupos de apoio formais e informais para cuidar de nossos amigos que ficavam doentes. Alimentá-los quando eles conseguiam comer. Trocar suas roupas. Dar-lhes banho. Funcionar como leva-e-traz entre eles e familiares que “estavam preocupados” sobre seus filhos, sobrinhos, irmãos etc., mas não se dispunham a dar uma mãozinha porque eles tinham, sabe, nojinho da Aids.

Depois que eles morriam, havia funerais a se organizar rapidamente, sem tempo para ficar de luto, porque quando uma pessoa morria, já havia outra pessoa que precisava de sua ajuda e o processo todo começava de novo.

Eu mantive um álbum de fotos de todos que eu conhecia e que haviam morrido de Aids. Só vou dizer que ele é bem grande. Quem eram esses rapazes? Essas eram as pessoas com quem eu planejava envelhecer. Eles eram a família que eu havia criado e queria passar o resto da minha vida, por tanto tempo quanto fosse humanamente possível, mas, quando eu cheguei nos meus 40 anos, todos eles já tinham morrido, com exceção de dois de meus amigos queridos.

Tudo que nos restou desses dias somos nós, nossas memórias e as fotos. Eu espero que esse relato não dê a impressão de que quero que fiquem com pena de mim. Eu estou em forma, ativo, saudável, e sabe do que mais? Eu aproveito cada dia da minha vida ao máximo. Eu aproveito porque a maior parte dos meus amigos não pôde fazer isso. Da minha própria maneira, eu quero honrar as vidas deles ao viver e usufruir a minha.

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 “Só estou vivo hoje por pura aleatoriedade”

Era aterrorizante. Todo cara que você conhecia era uma bomba-relógio em potencial. Especialmente no período inicial quando se sabia muito pouco a respeito – não se sabia se era possível contrair por beijo, por ficar de mãos dadas…

E daí uma porção de seus amigos ou amigos de amigos ficam doentes e cada vez mais doentes e daí morrem. E você nunca deixa de ficar puto pra caralho sobre essa coisa toda. Só estou vivo hoje por pura aleatoriedade.

“Parecia que as pessoas desapareciam”

Se você vivia no Castro em San Francisco, todos no bairro eram gays… Então não eram apenas seus amigos que estavam morrendo, era toda a vizinhança. Um dia trocavam o seu carteiro, no dia seguinte a floricultura fechava… Você nem era convidado pro funeral, parecia que as pessoas simplesmente desapareciam.

“Figuras ficavam felizes que isso estava acontecendo”

Era loucura. Era terrivelmente cruel. Era inexplicável e inexplicado, por muito tempo. As pesquisas não tinham fundos, e em muitos casos grandes instituições e figuras públicas ficavam muito felizes de que isso estava acontecendo. As pessoas morriam repentinamente de coisas absurdas. Fungos nos pés! Sapinho! Erupções na pele! Olhos que se enchiam de sangue. Uma merda horrorosa.

Todo mundo sabia que isso acometia os gays, ninguém sabia o que era isso. Chamavam de câncer gay. As pessoas ficaram muito supersticiosas. Eu estaria segurando as compras de supermercado com os dois braços, e um homem me diria para não apertar o botão do elevador com o nariz porque eu poderia pegar Aids assim. É. Isso aconteceu.

“Ninguém deveria morrer sozinho e ouvir de familiares que isso é castigo divino”

Apesar de, como lésbica, não estar num “grupo de risco” (como se diz hoje em dia), todos nós perdemos muitos bons amigos. É verdade que há uma atitude separatista (que me deixa pasma) entre alguns gays e algumas lésbicas; ela acontecia ainda mais naquele tempo, mas essa tragédia nos aproximou.

Ficar ao lado do leito de um amigo que estava num estágio terminal, e simplesmente segurar sua mão enquanto todos os outros estavam morrendo de medo, era uma dádiva que eu estava disposta a dar.

Ninguém deveria morrer sozinho, e ninguém deveria estar num hospital, em seu leito de morte, com familiares ligando para dizer que “isso é castigo divino”. Eu e meus amigos, homens e mulheres, agíamos como uma camada protetora para os amigos doentes, e como companhia para amigos em comum que lidavam com a mesma realidade difícil de tentar estar lá, de se manter forte enquanto perdíamos nossa família por todos os lados. Tempos difíceis que não deveriam jamais ser esquecidos.

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“Lésbicas cuidavam de gays que muitas vezes as desprezavam”

As lésbicas entraram na linha de fogo, mesmo não tendo que fazê-lo. E fizeram isso mesmo quando os gays de quem cuidavam as tratavam com desprezo ou desdém.

Na época não era incomum que os gays torcessem o nariz para a lésbica caminhoneira que entrava no bar vestindo macacão e camisa de flanela. Muitas vezes, eram apenas comentários maldosos que elas tiravam de letra. Mas os comentários podiam ficar muito mais ácidos, principalmente quando as lésbicas começavam a frequentar um bar que até então era frequentado apenas por homens.

Quando a crise da Aids surgiu, foram muitas dessas mesmas mulheres que saíam direto de seus empregos durante o dia para cuidar dos gays à noite. Como a maioria delas não tinha treinamento médico, geralmente lhes cabia as tarefas mais desagradáveis: limpar vômito e merda, arrumar casas e apartamentos que haviam sido negligenciados por semanas e meses. Mas, por não serem diretamente responsáveis pelos cuidados médicos, elas também se tornavam alvos fáceis para a raiva e fúria devastadoras que esses homens sentiam – muitos que haviam sido abandonados por seus próprios familiares e amigos.

Essas mulheres se jogaram na linha de fogo. Elas vinham ajudar gays mesmo não se sabendo bem como era a transmissão do vírus. A transmissão por agulhas ainda era uma preocupação, então muitas vezes elas usavam duas ou três luvas de látex para se protegerem. Mais de uma vez, no entanto, eu as vi jogar as luvas fora, com pressa e frustração, para conseguirem ver se alguém estava com febre, ou para segurar uma mão que estava caída na beira de um lençol que haviam acabado de lavar.

Elas ofereciam ajuda, conforto e cuidado médico para homens que definhavam em hospitais, homens que já haviam perdido seus amantes e amigos para a doença e passavam seus últimos meses em agonia. Eles haviam sido abandonados pelas próprias famílias, e não fossem as lésbicas – a maioria, se não todas, voluntárias – eles teriam sofrido sozinhos. E quando não havia mais nada que a medicina podia fazer, e seus pulmões começavam a se encher de líquido, muitas vezes eram essas mesmas mulheres que ficavam encarregadas de administrar morfina o suficiente para que eles partissem, fornecida a elas por médicos que deixavam o quarto e retornavam 15 minutos depois para assinar o atestado de óbito (uma prática comum na época).

Eu conheci uma mulher nessa época que a certa altura estava ganhando bastante dinheiro com construções. Mas quando a crise da Aids teve início ela abandonou sua carreira para estudar enfermagem, e estava prestes a se formar quando nós nos conhecemos. Ela era muito boa de copo, e felizmente eu também era. Uma noite nós estávamos muito bêbados num bar e um cara sussurrou um comentário maldoso, mas leve, a respeito dela. Ela mostrou o dedo pra ele, ele mostrou pra ela, e mais tarde, furioso e indignado, eu lhe perguntei: “Por que você está nessa? Por que você abandonou uma carreira de sucesso para cuidar desses cuzões que ainda assim não te respeitam?”.

Ela me olhou com um semblante surpreendentemente sério e disse “meu amor, porque ninguém mais vai fazer isso”. Eu me lembro de ter ficado com vergonha depois disso, porque minha fúria e indignação não eram capazes de lavar o sangue e o vômito do chão; eu não me dispunha a fazer esse tipo de merda que precisava ser feita.

O HIV matou meus amigos, me tirou meu amante, e destroçou minha vida. Naquela época, eu fiz o que pude. Mas nada que eu fiz naquela época ou fui chamado a fazer na minha vida me coloca à altura do exemplo dado pelas lésbicas que eu conheci nos anos 1980 e 1990. Eu me sinto obrigado a lembrar o que elas fizeram, e garantir que outras pessoas se lembrem disso também.

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19 comentários

Marcelo Alvim

Emocionado, esta semana comecei a pensar quantos anos estou na luta, acredito que cheguei aos 20, talves mais. Tantos altos e baixos. As verdadeiras pessoas, permanecerão ao meu lado,as demais não sei, mas podia ter sido diferente….

George Louis MaCc Lopez

Abrir um comentário sobre este tema, para mim é muito pertinente. Também sou um sobrevivente da epidemia… Perdi meu companheiro em 1995 , quando ainda não conhecíamos , todas as beneficies do chamado coquetel na época, nem de seus efeitos colaterais . Ele morreu na ocasião , em que começava a usar o AZT , na época uma infecção oportunista gravíssima se disseminou e ele veio a óbito , pondo fim a alguns anos de sofrimento atroz, quando eu ainda era um estudante de medicina. Hoje atuo na área médica, sendo um infectologista bastante experiente em HIV/AIDS. Na ocasião pretendia me especializar em Oncologia, mas devido a grande incógnita desta patologia , no término do curso aqui na Usp , veio a decisão de seguir na infectologia . Fiz a residência em 2 grandes hospitais em SP , referência em HIV/AIDs , e não demorou muito, pra que eu me descobrisse também ser portador do vírus. Fato este que me deixou ainda mais próximo da realidade que já havia presenciado “in loco” durante minha especialização e mestrado em Infectologia, particularmente AIDS . Superar a minha sorologia foi mais fácil, do que aceitar a perda do meu amigo , e de tantos outros que se foram, mesmo aderindo , ao TARV , pois a patologia ainda surpreende a todos nós profissionais da medicina, que mesmo com um paciente estabilizado por anos, as vezes do nada , se deparamos com as ‘Terríveis Falhas Terapêuticas” e acabamos por perder o paciente, sem que uma infecção significativa , possa ser relevante nestes óbitos. Clinicando em hospitais em Portland , no Oregon – EUA pude presenciar e relatar , que mesmo obtendo a “Estabilidade Imunológica” , com a elevação das taxas de CD4/CD8 e mantendo indetectáveis a Carga Viral, o vírus ainda insiste em nos fazer surpresas. como replicação anormal , onde o teste de Genotipagem , muitas vezes vem nos mostrar o contrário. Enfim a Aids ainda é um grande desafio e uma incógnita, pois em algumas ocasiões eu revelo minha sorologia á algum paciente, que desesperado ainda acha que não vai sobreviver por muito tempo. Solidariedade e proximidade fazem a diferença , tanto no tratamento intensivo, sendo ambulatorial ou clínico . Por questões éticas profissionais , não posso revelar onde atuo como médico infectologista, as afirmo , que as imagens e cenas mais aterrorizantes dos anos 80/90 jamais serão apagadas de nossas mentes . Agora fica o meu apelo , não como médico , mas como ser humano, ame a vida , e o próximo, preserve sua saúde, faça sexo seguro, mas seguro mesmo…

João Bernardo

Faço 53 anos daqui a 3 dias. Anos 80, auge da minha juventude e foi terrível perder amigos. Pior ainda foi perder meu companheiro de 7 anos de vida juntos, o grande amor da minha vida. Fiquei destroçado . E dói lembrar até hoje, embora,claro, o tempo cria casca sobre tudo, inclusive sobre as perdas. A doença foi se instalando e dia a dia ele foi perdendo a vida. O dia em que não me reconheceu chorei demais. Não tive problemas em cuidar dele, pois além de boa situação financeira, muito amor, sou médico . Mas me sentia exausto e impotente.Uma das últimas cenas que vem a memória, é dele sentado na escada do escritório de casa em frente a um computador no qual eu estava digitando algum trabalho e com os olhos cheios de lágrimas me pediu para nunca abandoná-lo junto à família. Muito medo tinha disso. Choramos os dois juntos e abraçados. Pois, sempre que leio relatos ou vejo filmes sobre essas décadas, 80 e 90, me emociono muito pois toca profundamente endiz muito a minha vida. Nunca adquri o vírus, ainda bem, mas a perda que ele me causou foi enorme. Fiz análise depois, por 12 anos e levo vida normal, namoro, faço sexo, sou feliz, mas nunca me esquecerei do Fernando e do como éramos felizes juntos.

Kátia Damascena

Adquiri o HIV através de meu companheiro à época. Vivo com HIV há 18 anos e tive que reaprender , a re-significar minha condição, pois, depois de 5 anos de muita angústia e depressão não tive muita opção a ser buscar um novo caminho: o de viver bem. Claro, encontrei o movimento Nacional de luta e combate a AIDS, onde vi que existia vida depois da AIDS. Porque realmente achei que logo morreria. Consegui criar meus três filhos e tenho um neto lindo. Enfim, a convivência com minha família de forma aberta foi fundamental para ter a saúde que tenho hoje.

Dilma

como foi a reação da sua companheira, as pessoas sem comhecimento nenhum do que realmente se trata: julgam fazem perguntas indiscretas e discretamente se afastam . imfelismente essa ainda é a realidade, são pessoas ingnorantes que não sabem respeitar o ser humano de igual para igual. sofro calada e sosinha!

Bruno

Li recentemente um livro da década de 1980, intitulado Duplamente Abençoado: Sobre ser gay e judeu organizado por Christie Balka e Andie Rose. Os artigos deste livro dedicados a AIDS, trazem relatos comoventes de algo que naquela época era desconhecido e usado para estigmatizar a comunidade gay. acrescento a esta indicação a sugestão do filme The Normal Heart.

patricia

Sou soro positivo confesso que quando soube há 3 anos atrás meu mundo desabou pois contrai do meu marido que infelizmente faleceu por não procurar ajuda e foi na beira do leito que ele confessou que tinha o vírus. Me pediu para realizar os exames e não deu outra positivo. Hoje sofro calada pois me dói muito. Meu único homem de minha vida sem ter experiências a dor até hoje me intrestesse. Tenho medo se me relacionar novamente, medo de ser julgada. Sou mulher sonho em ter filhos em ter uma família mais o medo continua sendo a minha sombra.

James Cimino

Poxa, Patrícia, que história, hein? Mas posso te dizer uma coisa? As pessoas não são tão horríveis assim não em relação a isso. E saiba de uma coisa: o amor é sempre mais forte que o preconceito. Existem muitos casais sorodiscordantes (em que um é positivo e outro não) gays ou heteros e eles conseguem se relacionar numa boa, com alguns cuidados, mas nada aterrorizante. E sim, você pode ter filhos. Procure especialistas em infectologia (acredito que você se trate) e peça orientação. Não fique deprimida. A vida continua e dá pra viver muito bem com o vírus. Abraço!

joaoalvaropc

Avida tem disso coisas q so acontece mais forca e muita coragem

Alex Machado

Oi, gente , só corrigindo meu comentário aqui.

Estou comovido pelos relatos aqui escritos ,realmente foi uma verdadeira dizimação e quantas possibilidade de vidas foram apagadas nesta epidemia de aids dos anos 80 , até hoje ficou com raiva de amigos gays, que não querem saber sobre o que foi esse holocausto , que foi a aids na década de oitenta…..

de parabéns Marcio ^^

Alex Machado

Estou comovido pelos relatos aqui escritos ,realmente foi uma dizimação ,de possibilidade de vidas foram apagadas nesta epidemia de aids dos anos 80 , até hoje ficou com raiva de amigos gays, que não querem saber sobre que foi esse holocausto , que foi a ainds na década de oitenta…..

wagner

Ola. Boa noite

Gostaria de deixar aqui o meu relato a reepeito de como descobri o virus hiv e como tive q lidar com isso. Acima está o endereço do meu blog. Acrdito q possa colaborar com alguma coisa

Obrigado. Abraços

FRANCISCO AMORIM FILHO

tenho 53 para 54 anos sou soro positivo a mais menos 8 anos,a principio foi difícil mas depois que sai do clube de risco minha vida tornou-se normal,tomo os medicamento normalmente e trabalho como caminhoneiro,me sinto completamente saudável,apartir do momento que você esta medicado,levo uma vida normal.

gabriel

eu queria saber aonde eu vejo São Paulo em Hi-F, n consigo achar download e nem online, e estou louco pra assistir ):

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