É quase inevitável: tem que ser bem nerd para jogar card games. Jogos como Magic: The Gathering (conhecido no meio simplesmente como MTG) exigem dedicação para aprender as regras – que não são das mais simples -, acompanhar expansões, elaborar estratégias, montar baralhos… Esforços que fazem muita gente fugir correndo, mas que tendem a fazer brilhar os olhos de um público que já adora gastar sua energia decifrando o mundo dos quadrinhos, dos videogames e dos RPGs.
Infelizmente o mundo nerd reflete muitos dos preconceitos da sociedade em geral. Em um grupo aglutinado ao redor de produtos tradicionalmente feitos “para meninos”, atitudes machistas e misóginas acontecem com frequência; são os jogadores que em momentos acalorados da partida se xingam de “sua bicha” e mandam o outro “vir chupar meu pau”, ou a ideia de que uma garota só está no ambiente porque é a namorada de um dos rapazes presentes. Não surpreende que LGBTs e mulheres acabem fugindo de lojas de produtos geek e outros ambientes que reúnem nerds para jogarem seus card games e RPGs em paz com os amigos em casa.
Para tentar combater essa tendência, os jogadores Felipe Bracco (“viciado e apaixonado pela mana vermelho, adorador de Goblins, viajante das teorias”) e Alex Spake (“YouTuber adorador de Commander, rainha das planícies de Tarkir”) criaram o grupo MTG-LGBT. A intenção do grupo, que já tem tentáculos no Facebook e no Whatsapp, é promover um ambiente acolhedor para LGBTs nerds e promover eventos queer ligados a essa comunidade em todo país.
Um deles acontece no próximo domingo, 17 de dezembro. O “Unstable Draft Race” acontece na loja Game Vault, em São Paulo, e pretende ao longo da tarde unir os mundos de Magic: The Gathering e RuPaul’s Drag Race – a começar pelo título, que aproxima o nome da mais recente expansão de MTG, Unstable, ao reality show mais amado do mundo queer.
Ao longo da tarde os participantes serão convidados a responderem perguntas sobre Magic de maneira engraçada e espirituosa, numa versão nerd do famoso Snatch Game, e poderão jogar um veneno amigo sobre os outros geeks presentes quando os organizadores abrirem a biblioteca, como faz RuPaul em Drag Race. Mais importante, LGBTs e HTs encontrarão um ambiente de respeito para todes. O LADO BI entrevistou Bracco para conhecer mais sobre o evento e o grupo MTG-LGBT. Confira.
LADO BI À primeira vista, não há nada mais distante e oposto que RuPaul’s Drag Race e card games como Magic: The Gathering (MTG). Como surgiu a ideia de juntar esses dois mundos? Você consegue descrever, bem sucintamente, como funciona essa fusão durante o evento?
Expressões distintas são distantes até que você as coloque lado a lado. O fator comum da junção é o público LGBT+, que compartilha tanto a linguagem do Magic quanto de RuPaul. O grupo vem trabalhando na comunidade de MTG há 3 anos, então temos um histórico de ações que vai evoluindo a cada evento. No caso, Drag e Draft (um dos formatos do jogo) compartilham semelhança sonora, então a partir disso desenvolvi minigames que pudessem ser adicionados no encontro, feitos paralelamente no evento, com base nos quadros Snatch Game e The Library is Open.
Antes do mundo nerd ser valorizado como “geek”, esse era um grupo de pessoas que carregava uma boa dose de rejeição social em escolas e ambientes de trabalho. Isso ainda acontece? Existe uma solidariedade entre geeks e a cultura LGBT?
Isso é um paradoxo curioso, pois a sociedade como um todo ainda enraíza e propaga preconceitos com o considerado diferente e/ou inferior (LGBT+, mulheres, pessoas negras, certas religiões etc.) Portanto como parte inseparável da sociedade, o meio “geek” em geral ainda carrega e reproduz os estereótipos de preconceitos. Isso está mudando, trabalhamos para isso inclusive, mas ainda há tempo para as coisas se ajeitarem. Por exemplo: é possível perceber certos “incômodos” das pessoas em situações confortáveis de privilégios, quando a grande mídia dá espaço para outros perfis (como o novo protagonismo em Star Wars).
LGBTs são menos agressivos que héteros cis quando jogam Magic? Qual é o tipo de piada interna que apenas LGBTs entendem quando jogam esse card game?
Acredito que esse comportamento depende do foco no jogo, independente da orientação ou gênero. Se uma pessoa tem um foco mais competitivo, ela geralmente vê o jogo como um esporte profissional, e pode soar agressiva para um iniciante que acabe indo experimentar um torneio. Existem perfis casuais, de investidores, etc. Agora, por consequência do preconceito e de atitudes como piadas infelizes, olhares, até possivelmente ações mais agressivas, as pessoas que sofrem esse preconceito se afastam de ambientes de MTG mais profissionais e/ou lojas. Recolhendo-se ao círculo de amigos e o famoso jogar “na mesa da cozinha”, criando-se um ciclo vicioso de ambiente predominantemente hétero masculino. Nossas ações são importantes para atrair jogadores(as) retraídas(os) e mostrar que o Gathering (reunião, união, comunidade), vai muito além do esperado, (re)inserindo essas pessoas ao jogo e seus pontos de força (lojas, torneios, jogos casuais fora de casa, etc.). Quanto às piadas internas, isso depende como cada grupo local se forma, ou piadas compartilhadas virtualmente se relacionam. O Draft Race desse domingo 17 é um exemplo de como as linguagens do Magic e da cultura queer se fundem.
Ambientes nerds ainda são hostis às mulheres? Como a misoginia e o sexismo se expressam no mundo dos RPGs e dos card games?
Idealmente, essa pergunta seria respondida por uma mulher. No que cabe a mim, pela experiência administrando o MTG LGBT, percebo que mesmo mulheres hétero cis se sentem mais confortáveis com nosso acolhimento e grupo, em geral. Um exemplo: quando há uma mulher jogando em lojas, muitos acham que ela é namorada de algum cara, ou que foi o namorado quem a ensinou a jogar, ou se ela está sozinha, acontecem assédios. De resto, acredito que ainda é reflexo da sociedade, como respondido na questão anterior.
Como funciona o grupo MTG-LGBT? Qual é a necessidade de um grupo exclusivamente LGBT de Magic, e como sua existência beneficia seus membros?
O grupo é um agregador e acolhedor de LGBT+s, porém inclusivo, ao invés de exclusivo (temos participantes HTs também). Ele já cresceu muito desde que foi criado, há três anos, a ponto de atualmente precisarmos de mais quatro administradores. A sigla carrega e levanta as questões por quais passamos e nos unem. Nós criamos vínculos com pessoas do Brasil todo, e temos ações específicas para cada mídia em que atuamos e às pessoas que usufruem delas. O grupo de Whatsapp, por exemplo, poderia ser considerado o coração do grupo: é nele que as pessoas se conhecem melhor, acabam fazendo intercâmbio de cidades e estados para se conhecerem, desabafam suas questões e se ajudam mutualmente, combinam lugares para ir jogar, etc., além de fazermos um amigo secreto por envio de vídeos todo fim de ano, com os presentes indo por correio. O terceiro acabou de acontecer, no último dia 10.
Serviço
- Game Vault: Rua das Azaléas, 138, Praça da Árvore, São Paulo, SP
- 17 de dezembro de 2017, às 15h.
- Inscrição: R$ 45,00
- Formato: Booster Draft Unstable
CONFIRA O MTG-LGBT Grupo – Página no Facebook