Traduzido do artigo de Glen Weldon para o site Slate.com
Vamos deixar uma coisa bem clara: Robin não é gay.
Não se engane com a sunguinha verde e as botinhas de elfo; Dick Grayson é hétero. Na verdade, já houve vários Robins ao longo dos anos, e nenhum deles jamais exibiu qualquer sinal de atração por alguém do mesmo sexo ou demonstrou qualquer indício de autoindentificação queer.
Batman também não, é importante apontar logo no começo.
Não precisa acreditar em mim. É só perguntar para qualquer pessoa que já tenha escrito uma HQ do Batman ou do Robin. Se bem que nem é necessário se dar esse trabalho: todos eles já tiveram que responder essa pergunta, e todos deixaram claro que ambas as partes da Dupla Dinâmica são heterossexuais, viris e másculos. Os dois criadores do Batman, Bill Finger e Bob Kane, desprezam toda essa polêmica. Assim como os escritores Frank Miller, Denny O’Neil, Alan Grant e Devin Grayson – apesar de Grayson já ter admitido que conseguia “compreender as interpretações gays”.
Pois então. No fim das contas, se o personagem não é escrito como sendo gay, então esse personagem não tem como ser gay, certo? Todos concordamos? Vamos então prosseguir para outras coisas mais importantes, e…
… Desculpe? Alguém lá atrás fez um comentário?
… Sim, você, Grant Morrison, autor de várias HQs do Batman (Asilo Arkham, LJA, Batman, Batman Inc.) nas últimas três décadas? Você gostaria de acrescentar algo? Algo que você declarou em entrevista à Playboy em 2012?
A viadagem está embutida no Batman.
… Hmmmm.
O Batman é SUPER, super gay.
OK, isso foi super útil, obrigado –
Obviamente que, como personagem fictício, a intenção é que ele seja heterossexual…
Isso mesmo! Exato. OBRIGADO. Agora –
… mas toda a fundação desse conceito é absolutamente gay.
Entendi. Bem, olha, Grant, a gente tem que continuar, então –
Acho que é por isso que as pessoas gostam dele. Toda aquela mulherada afim dele, e elas todas se vestem com roupas fetichistas e pulam de telhado em telhado atrás dele. E ele não está nem aí – ele está mais interessado em passar o tempo com o Alfred e o Robin.
Segurança? Por favor leve para fora esse escocês careca e bem vestido. Desculpe, gente.
Agora, onde a gente estava mesmo…?
Por que Dick é alvo de tanta piada?
Todo mundo já ouviu as piadinhas. Trocadilhos e más intenções perseguem a parceria entre Bruce e Dick desde seu início, em 1940. A adição por ordem dos editores de Robin, o Menino Prodígio – o primeiro parceiro mirim dos quadrinhos – ocorreu menos de um ano depois da estreia de Batman, e conseguiu vários feitos de uma vez só. Com ela, o tom da HQ tornou-se mais leve, algo necessário já que o Homem-Morcego estava ganhando a reputação de ser um assassino de vilões; a editora estava preocupada com as objeções dos pais. A manobra também forneceu para Batman – que era, e continua sendo, por baixo de toda aquela parafernalha fetichista de morcego, um detetive nos moldes de Sherlock Holmes – um Watson fiel, para quem ele podia explicar seus processos de dedução. Ao oferecer a Batman alguém com quem se importar, tudo tornava-se mais arriscado. E, mais importante, talvez, as vendas dobraram.
Mas o subtexto gay deu um jeito de se insinuar na relação da Dupla Dinâmica desde o comecinho. A página de abertura da história de estreia de Robin, em abril de 1940, em Detective Comics número 38, apresentava um pergaminho com uma apresentação ofegante: “A SENSACIONAL DESCOBERTA DE 1940… ROBIN, O MENINO PRODÍGIO!”.
E logo no início: “Batman, essa figura estranha da noite, coloca sob seu manto protetor um aliado em sua incansável luta contra o crime…”.
Ou, pelo menos, era para começar assim.
Mas o letrista, incumbido de espremer uma quantidade imensa de texto naquele pergaminho, sem querer apertou tanto as palavras “an” e “ally” (“um aliado”) que no fim das contas eliminou o espaço entre elas – formando a palavra “anally” (analmente).
Assim, a primeira coisa que os leitores aprenderam sobre A SENSACIONAL DESCOBERTA DE 1940 é que ele era alguém que Batman “coloca sob seu manto protetor analmente”…
E lá estava, instantaneamente gravada no DNA narrativo da pobre criança. Talvez seja destino. Talvez tudo o que se seguiu fosse mesmo inevitável.
“Banho gelado, café-da-manhã reforçado!”
É verdade, sua parceria já veio de fábrica com meta-significados acidentais que, para nós hoje, são interpretados como mensagens recatadamente escondidas. Posteriormente naquela primeira história do Robin, por exemplo, depois que os pais do jovem acrobata circense Dick Grayson são assassinados pela máfia, Batman surge na frente do jovem abalado e lhe informa: “Vou esconder você lá em casa por um tempo”, como se não fosse nada demais.
E assim o jovem Dick tornou-se o protegido de Bruce Wayne, e muitas histórias nas décadas de 1940 e 1950 tinham início retratando o homem e o garoto realizando juntos algum tipo de passa-tempo. Repetidas vezes, no entanto, esse quadro teimava em apresentar um tom romântico, com cheirinho de lavanda.
Veja Batman no. 13, de 1942, que apresentava Bruce e Dick entretendo-se dentro de um barco a remo em um lago do parque de Gotham City. Os dois. Sozinhos. À noite.
Ou o painel de World’s Finest no. 59, de 1952, em que Bruce e Dick estão deitados nus, um do lado do outro, languidamente bronzeando seus corpinhos malhados sob um conjunto de lâmpadas de bronzeamento artificial.
E, claro, as tramas, muitas das quais giravam em torno do ciúme que Robin sentia por causa dos interesses românticos de Batman e sua paranoia de porventura ser substituído por algum super-herói rival. Nessa época, truques elaborados e farsas eram os motores das narrativas de quadrinhos, o que significava que várias histórias começavam com Batman descaradamente rejeitando Robin enquanto parceiro, atos que faziam que o rapaz se escondesse chorando em seu quarto suntuoso, aos (soluços!) e (lágrimas!).
As pessoas reparavam. Uma pessoa, em particular, reparou: o dr. Fredric Wertham, um psiquiatra que estava convencido de que as histórias em quadrinhos eram responsáveis diretas pelo flagelo da delinquência juvenil, e que promoveu uma cruzada contra os quadrinhos por todos os EUA que acabou se mostrando altamente eficaz. Ele publicou sua “pesquisa” (leia-se: relatos de seus jovens pacientes psiquiátricos, entremeados de retórica contra os quadrinhos) num livro entitulado A sedução dos inocentes em 1954, na mesma época em que depunha no senado norte-americano num comitê sobre delinquência juvenil.
Wertham dedicava meras quatro áginas em seu livro para Batman e Robin; ele tinha mais com o que se preocupar, e atacava as imagens explicitamente violentas, sexistas e racistas que encontrava-se facilmente nos quadrinhos de crimes da época (sobre os quais, aliás: ele tinha certa razão). Ele denunciou que Superman era fascista, e apontou que aquilo tudo que rolava no gibi da Mulher-Maravilha parecia desavergonhadamente sáfico. Quanto à Dupla Dinâmica, ele adorava chamar atenção para as “lindas flores em vasos enormes” da Mansão Wayne, e como Bruce Wayne gostava de perambular pela propriedade de camisola.
“É como a realização dos sonhos”, ele famosamente escreveu, “de dois homossexuais morando juntos”.
No momento em que Wertham se preparava para argumentar em rede nacional, os argumentistas do gibi do Batman sem querer lhe deram mais munição. Batman no. 84 chegou nas bancas em abril de 1954, durante o testemunho de Wertham no senado. Sua história, “Dez noites de medo”, começa com um dos quadrinhos mais infames dos 77 anos do Batman: Bruce e Dick acordando juntos.
“Manhã”, lê a legenda. “E começa como qualquer outra rotina matinal nas vidas do milionário Bruce Wayne e seu protegido, Dick Grayson…” E, assim, ficamos sabendo explicitamente que compartilhar o mesmo leito é uma bat-prática comum.
“Vamos lá, Dick!”, diz Bruce, se espreguiçando. “Banho gelado, café da manhã reforçado!”.
Os anais da história não registraram a reação do dr. Wertham ao receber a manifestação de seu argumento destilada de forma tão preciosa num momento tão propício. Mas acho que seria seguro apostar que foi algo como um “sorriso frio e sem humor”.
Agora, claro que tirar quadrinhos do contexto dessa maneira é ridículo. Afinal de contas, a relação entre Bruce e Dick essencialmente sempre foi a de pai e filho, e filhos sobem nas camas dos pais o tempo todo.
Esse é o problema com as leituras gays. Qualquer elo entre dois homens pode ser homossocial sem ser homoerótico, e mesmo o elo mais explicitamente homoerótico pode existir sem jamais roçar no desejo homossexual. Interpretar erroneamente, de propósito e com desprezo, o que sem dúvida tinha a intenção de ser uma conexão familiar – como Wertham fazia em 1954 e tantos tumblrs fazem hoje – é mesquinho no melhor dos casos, e maldade no pior, não é?
Como escrevo em meu livro sobre Batman e a cultura nerd, The Caped Crusade: não! A intenção não importa quando se trata do subtexto gay. As imagens, sim.
Lembre-se: leitores queer não viam quaisquer vestígios de si mesmos representados nas mídias de massa dessa era, menos ainda nos gibis. E quando o público queer não se vê em uma obra, nós procuramos com mais afinco, interpretando cada diálogo em busca do sinal mais tênue de algo que reconhecemos. É por isso que, sendo um meio visual repleto de sinais silenciosos como a linguagem corporal e detalhes de fundo, os gibis de super-herói provaram-se um vetor particularmente fértil para interpretações gays ao longo dos anos. Imagens são capazes de imprimir camadas de significados não-falados que apenas palavras jamais seriam capazes de conjurar. Aquele quadrinho com Bruce e Dick deitados juntos de toalha em seu solário, por exemplo, não teria a mesma carga homoerótica se a cena simplesmente fosse descrita em prosa.
A sombra de Wertham
A crusada de Wertham reuniu grupos de igreja, escolas e legislaturas locais contra as HQs. Quadrinhos de crime e horror foram cancelados às dúzias. Até mesmo o Super-Homem lutou para manter-se vivo. Quanto a Batman e Robin, eles deixaram de ser os astros exclusivos de suas histórias e tornaram-se parte de um grupo, acolhendo um número de comparsas mascarados para as bat-tropas.
Alfred, o mordomo, havia se juntado aos dois em 1943, servindo de vela 24h por dia, 7 dias por semana. Agora, com a presença de um Bat-cão, Bat-mulher, Batgirl, Bat-Gênio-Mágico-da-Quinta-Dimensão e – por pouco tempo, infelizemente – Bat-Gorila, Batman e Robin mal conseguiam passar algum tempo juntos sozinhos. Não era coincidência. A sombra de Wertham se estendeu até tarde nos anos 1960, e os editores do Batman decidiram fazer todo o possível para dissipá-la, mesmo se fosse preciso matar alguém: quando perguntados qual era a razão de terem assassinado Alfred, o mordomo (brevemente) em 1964 para ser substituído pela enxerida tia Harriet, o editor Julius Schwartz declarou: “falava-se muito naquela época sobre o que faziam três homens morando juntos na Mansão Wayne”.
Mas o subtexto gay, assim como a informação, quer circular livremente, e o universo insistia em conspirar para que quadrinhos acidentalmente hilários como esse abaixo acontecessem, da revista da Liga da Justiça, em 1966:
Quando a série televisiva Batman estreou ela transportou a Dupla Dinâmica dos quadrinhos daquela era – essencialmente um par de policiais ensolarados, anódinos e civilizados vestindo capas – para as telas, mas impregnou seus procedimentos com tanta seriedade fajuta que acabou por transformá-la num fenômeno cultural. Apesar do programa ter-se tornado um dos maiores exemplos do camp, sua sensibilidade pop nunca pareceu particularmente gay, apesar da presença de vilões convidados interpretados por divas como Tallulah Bankhead e Liberace.
Depois que o programa saiu do ar, os criadores da HQ do Batman decidiram livrar-se de sua inescapável penetração cultural recriando o herói como um vingador solitário da noite. Eles despacharam Dick Grayson para a universidade em 1970, efetivamente pondo fim à parceria Bruce-Dick que sofria com o peso de décadas de meta-significados gay. Foi o que bastou para a heteronormatividade se reafirmar, pois, apesar de, separados, Batman e Robin terem em seu DNA associações homossexuais um tanto vagas (o medo de que descubram sua identidade secreta, por exemplo), era apenas sua situação de casal homem-com-homem que realmente causava reprovação.
Depois que saiu da sombra de Bruce, Dick comportou-se direitinho, namorou garotas e fundou seu próprio grupo de super-heróis. Com o tempo ele abandonou de vez a identidade de Robin, adotando o codinome supermacho Asa Noturna.
Recentemente, nas páginas do título Grayson, Dick desistiu de vez de ser super-herói e assumiu o papel de espião-mestre global, se bem que um espião que adora usar calças apertadas para exibir sua bunda sarada por todos os continentes.
Quanto ao Batman, ele rodou uma série de Robins substitutos; ele é tipo aquele amigo que está sempre namorando uma iteração levemente diferente daquele cara que ele deixou escapar na faculdade. Nas últimas décadas, sem dúvida parece que os escritores estão mais atentos para as leituras gays acidentais, e portanto mais circunspectos. Batman vem vigiando a si mesmo, e sua ótica, com muito mais atenção desde que Dick partiu; é bastante raro ver quaisquer elementos gays emergirem.
Mas quando eles acontecem, eles eclodem com força e fúria o suficiente para fazer voar as portas dos armários da Dupla Dinâmica. Caso principal: os filmes Batman Eternamente (1995) e Batman & Robin (1997).
Sob a direção de Schumacher, os dois filmes exibiram sem qualquer vergonha um Bruce tiozão e um Dick garotão fitness, com brinco e tudo. E uma moto. E sungas de borracha. E, claro – se você disser isso baixinho, é quase uma oração – batmamilos.
Nos quadrinhos, Bruce e Dick haviam se separado faz tempo. Mas aqui, nas telas de cinema horrendamente pintadas em tons neon de Schumacher, os dois estavam juntos mais uma vez. Os filmes mostraram-se uma volta olímpica vitoriosa, atrevidamente queer para o time Bruce e Dick. O que Schumacher produziu não era subtexto gay; era um manisfesto.
Sim, esses dois filmes foram um desastre glorioso. Nenhum ser humano capaz de pensamento racional contesta esse fato. Mas apesar dos batfilmes de Schumacher parecerem pontos fora da curva quando colocados entre as histórias do Batman que reinam hoje em dia, eles encaixam-se perfeitamente num legado amplamente registrado de ressonâncias homossociais, homoeróticas e homossexuais da parceria Bruce-Dick.
A viadagem está embutida no Batman.
Schumacher sabia disso. Quando observou Batman, Schumacher o enxergou da mesma maneira que milhares de leitores queer o enxergaram por décadas. Ele reconheceu algo em Bruce que Bruce nunca terá permissão para admitir para si mesmo, e pintou isso nas telas. Da mesma maneira, quando Schumacher observou Robin, ele reconheceu algo importante – algo central, revelador, e eterno – sobre Dick.
Resumindo, ele é gay, o Batman, qdo sai lutar é hetero, mas Bruce é gay. Geoge Clooney qdo interpretou o Batman, disse que tinha quer ser hetero é dar um certo ar de homossexualidade suave, pois o Batman é gay. Mas na boa, ser ou não ser gay não muda em nada.
Observação muito boa a que vocês fizeram. Sendo fã do Bruce e do Dick, nunca soube exatamente o porquê da ideia de que fossem gays. Mas sobre o Asa Noturna decidir ser um agente global etc. não foi bem uma decisão. O motivo está no título “Mal Eterno”, publicados há dois anos não falha a memória. Adoro os posts de vocês. <3