Como é o aborto ilegal no Brasil, das pílulas duvidosas às clínicas de luxo

Algumas mulheres têm acesso a serviços de qualidade, outras têm que fazer uso de soluções caseiras e perigosas - mas todas as brasileiras vivem em risco com a criminalização do aborto

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Tracy Clark-Flory e Jen Pitt para o site Vocativ

“Marina” ficou grávida aos 20 anos, quando vivia em São Paulo. Apesar  do aborto ser ilegal no Brasil, com raras exceções, ela sabia que teria que encerrar a gestação. “Eu era jovem e ambiciosa”, diz ela, hoje com 31 anos, parte da classe média alta, segundo classificação própria. “Eu tinha tantos planos para minha carreira, planos de viagem. Eu simplesmente não podia me tornar mãe naquela altura.”

Apesar de ilegal, sua ginecologista, uma médica “muito aberta e sem preconceitos”, recomendou uma clínica de aborto num bairro de classe alta. Quando ela chegou, percebeu que a porta de fora era reforçada e tinha “muitas câmeras de segurança”. Do lado de dentro, no entanto, era tudo “muito profissional e dentro dos padrões, com todo o equipamento médico e equipe necessários”, relata. “Sério, você nunca diria que essa era uma clínica ‘clandestina’, pela aparência.”

A história dela – e a história do aborto no Brasil – é uma história de contrastes. Brasileiras ricas às vezes viajam para o México ou para os Estados Unidos para realizar o procedimento legalmente, ou, como Marina, acessam uma clínica ilegal de alto padrão dentro do país mesmo. Às mulheres pobres, em geral, resta apenas comprar pílulas abortivas no mercado negro, visitar clínicas toscas, ou realizar procedimentos caseiros horripilantes. A maioria das mulheres recai em algum lugar entre esses dois extremos – mas todas as mulheres, não importa a renda, são afetadas pela proibição.

A situação se tornou ainda mais grave quando o país foi tomado por um surto de Zika, que afetou por volta de 1,5 milhões de pessoas no Brasil, e resultou em 5131 casos de nascimentos com suspeita ou confirmação de microcefalia, possivelmente associada ao vírus.

No Brasil é ilegal interromper uma gestação, exceto em casos de estupro, risco à vida da mãe, ou anencefalia – quando o bebê não tem partes do cérebro ou do crânio – e o procedimento acarreta em penalidades criminais severas para as mulheres e seus médicos. Recentemente legisladores apresentaram uma proposta para aumentar a punição para mulheres que realizam o aborto de um a três anos de prisão para quatro anos e meio para mulheres que abortem fetos por causa de microcefalia; e os médicos envolvidos nesses casos poderiam encarar 15 anos atrás das grades. No entanto, como sempre acontece em qualquer lugar em que o aborto é proibido, ele ainda acontece – as estimativas variam de 1 milhão a quase 5 milhões de abortos por ano no Brasil.

“As enfermeiras comportavam-se de maneira absolutamente normal, como se aquilo nem fosse proibido no Brasil”, lembra-se Marina. Ela contou que pagou o equivalente a 4,5 mil dólares, e o procedimento durou uma hora e meia. “Eles me deram algum tipo de sedativo”, recorda. “Eu senti uma cólica distante, e depois acordei.”

“Quanto maior a educação e a classe social da mulher, mais fácil é para ela realizar um aborto seguro”, declara Olimpio Moraes, um médico que se posiciona a favor do acesso das mulheres ao aborto. “Para as mulheres mais humildes, é mais difícil.”

Moraes já foi excomungado duas vezes pela igreja Católica brasileira. Na primeira vez, foi por apoiar o uso da pílula do dia seguinte. Na segunda, foi por realizar um aborto para uma garota de 9 anos que havia sido vítima de estupro. Na época, ele agradeceu o arcebispo pela excomunhão, argumentando que a controvérsia em torno do caso, que ganhou a imprensa internacional, trouxe atenção para a situação do aborto no Brasil. (Como a vida da garota estava em risco, o procedimento que Moraes realizou não ia contra as leis brasileiras.)

Debora Diniz, do Anis Instituto de Bioética, concorda com a posição de Moraes, de que a classe econômica é fator determinante para as mulheres brasileiras. “As mulheres com dinheiro ainda têm acesso a clínicas de aborto clandestinas que oferecem serviços seguros, apesar de que ilegais”, afirma.

Isto posto, o dinheiro não garante a segurança. Isso ficou devastadoramente claro com o caso de Jandira dos Santos Cruz, que pagou o equivalente a 1875 dólares por um aborto ilegal em 2014, e cujo corpo foi encontrado desmembrado e carbonizado no que, acredita a polícia, foi uma tentativa de acobertar um procedimento mal-sucedido. Em outro caso nesse ano, uma mulher chamada Elizangela Barbosa morreu depois que seu útero e seus intestinos foram perfurados durante um aborto ilegal.

Estes são apenas os casos mais conhecidos: o aborto é a quinta maior causa de mortes de mães no Brasil. Os números são impressionantes: 200 mil mulheres são hospitalizadas todos os anos no país por causa de complicações provenientes de abortos, de acordo com o Ministério da Saúde. Pesquisas demonstraram que há ligações fortes entre a criminalização do aborto e as complicações do aborto. Por exemplo, depois que a África do Sul legalizou o aborto em 1997, os níveis de mortes relacionadas a abortos caiu 91%. Os níveis de infecção caíram em 52%.

A não ser que tenham a sorte de receber a indicação de um médico – e o dinheiro para realizar o procedimento – as mulheres no Brasil têm que confiar no boca-a-boca. “Não há maneira de se encontrar esse tipo de informação além de se conhecer alguém que teve uma amiga que fez um aborto ilegal”, afirma Bia Galli, da Ações Afirmativas em Direitos e Saúde (AADS), uma ONG que se dedica ao acesso a abortos seguros. “É o compartilhamento de informações de uma pessoa para outra; é muito informal.”

No caso de Sofia, uma mulher que compartilhou a história de seu aborto no site Women on Web, uma organização sem fins lucrativos que oferece aconselhamento e medicamentos para mulheres que precisam fazer aborto, a busca foi bastante difícil. “Lembrei de uma prima que no ano anterior fez o procedimento de sucção numa clínica clandestina próximo a sua casa, em outro estado, mas aqui mesmo no Brasil. Conversamos, ela muito me apoiou e em poucas horas estava emitindo uma passagem aérea para comparecer ao local no outro dia ainda de manhã.” Ao chegar, ela descobriu que a clínica havia fechado.

“Liguei para uma amiga de outro estado, pelo simples fato de querer receber um apoio moral”, contiua. “Bem…ela não apenas me deu o apoio, mas como um contato de um médico que possivelmente faria o procedimento cirúrgico de extração do feto.” Ela então comprou outra passagem de avião e viajou até uma clínica em outro estado. “A clínica não era nada clandestina, muito pelo contrário. O médico atendia pelos principais planos de saúde. Na sala de espera observei diversas grávidas fazendo tratamento com o mesmo, fiz uma busca na ficha do médico através do seu CRM e, para minha alegria, não havia nenhuma denúncia ou algo que o condenasse negativamente. Ainda assim, ele tinha seus cuidados e não expunha tal atitude a qualquer pessoa, Se por acaso eu aceitasse realizar o procedimento, deveria ligar para um numero de ‘celular secreto’ dele, o qual ele somente atenderia do telefone que eu o passei.” O relato de Sofia não oferece muitos detalhes, mas ela afirma ter pagado 8 mil reais à vista, em dinheiro, para realizar o aborto de uma gestação de 11 semanas.

Muitas vezes as mulheres recorrem a pílulas abortivas, que podem ser tomadas na intimidade do próprio lar. Um relatório publicado no Jornal Internacional de Ginecologia e Obstetrícia em 2014 descobriu que por volta de 50% das brasileiras que já realizaram um aborto utilizou alguma forma desses medicamentos. O mais comum é o misoprostol, que às vezes é utilizado em conjunto com a mifepristona, também conhecida como RU-486 e é “vendida em mercados clandestinos ilegais”, como relata Bia Galli. O remédio é vendido ao lado de drogas ilegais como cocaína, e seu preço varia de 1 a 30 dólares por comprimido, de acordo com o relatório.

Às vezes, as mulheres procuram na internet. Desde o surto de Zika, o site Women on Web registrou que o interesse das mulheres no Brasil triplicou. “Eu moro atualmente no Brasil e contraí Zika. Estou grávida a 5 ou 6 semanas, e quero fazer um aborto”, escreveu uma mulher num e-mail, que a organização mostrou à reportagem. “Eu não consigo comprar mifepristona, no entento eu consegui comprar misoprostol no mercado negro. Vocês podem por favor me dizer qual é o melhor jeito de tomar misoprostol?”, ela continua. “Há um monte de informação na internet, com dosagens diferentes, e eu estou preocupada com os efeitos colaterais se eu não tomar direito.”

Não importa de que maneira elas conseguem obter os comprimidos, essas mulheres estão correndo altos riscos. Se recorrerem aos mercados de drogas locais, elas podem ser presas em batidas policiais. “Na verdade isso é muito perigoso”, alerta Galli. Se elas fizerem a encomenda online, elas podem ser acusadas de contrabando, como aconteceu recentemente, de acordo com Galli. Women on Web afirma que as autoridades brasileira rotineiramente apreendem encomendas – dúzias de pacotes foram confiscadas e enviadas para a ANVISA desde fevereiro, apontam. “Se a encomenda é enviada para lá, nunca mais volta”, afirma Leticia Zenevich, porta-voz da Women on Web.

Mesmo se conseguirem evitar a prisão ao comprar as pílulas, elas ainda correm riscos. Muitas vezes as pílulas que deveriam conter misoprostol são feitas de farinha ou açúcar, de acordo com um relatório publicado pela organização de pesquisadores Gynuity. O misoprostol autêntico costuma ser muito seguro e eficaz quando acompanhado de instrução médica adequada.

É fácil encontrar online exemplos de mulheres que tomaram algo que acreditavam ser misoprostol, mas continuaram grávidas. Emily, então com 23 anos, relatou no Women on Web que tomou várias pílulas de Misoprostol – ela não diz onde as adquiriu – e então passou 10 horas com cólicas, tremedeira, febre e “uma dor terrível que só piorava”. Depois, foi ao médico fazer um ultrassom e, “para minha grande e infeliz surpresa, o feto estava lá, aparentemente intacto com o coração batendo e se desenvolvendo”.

Ela encomendo mais pílulas e relata: “passaram 10 horas semelhantes às da vez passada, expelindo muitos coágulos, mas as dores foram aumentando de tal forma que não conseguia mais suportar. Nem o ibuprofeno fazia efeito. Era uma dor tão horrível que me fez vomitar e ter que ser carregada às pressas para o hospital, pois nem me aguentava em pé.” Ela passou os dias seguintes expelindo coágulos. Uma semana depois tomou ainda mais 4 comprimidos de Cytotec, e passou pelos mesmos sofrimentos até expelir “aquele saco gestacional enorme que já estava do tamanho de uma bola de tênis”. Depois de um ulturassom, foi feita uma curetagem para remover os restos do feto.

Tudo indica que as mulheres estão recorrendo cada vez mais aos abortos caseiros. Desde as mortes de Jandira dos Santos Cruz e Elizangela Barbosa, as clínicas ilegais estão na mira da polícia. Galli recebeu relatórios de uma clínica estadual “numa área muito pobre” próxima ao Rio de Janeiro que indicam um aumento nos casos de mulheres com complicações sérias provenientes de abortos sem segurança. “Elas estão usando métodos muito precários, coisas que não costumávamos mais ver”, afirma. Isso inclui o uso de substâncias químicas ácidas, injetadas na vagina. Ana Derraik, diretora clínica dessa clínica, presenciou casos em que as mulheres morreram, ou mesmo tiveram que ter seus pés amputados depois de utilizarem esse tipo de produto químico. “Não é raro encontrar pacientes que tiveram complicações devido aos métodos invasivos que utilizaram, como intruduzir pinças ou espetos no útero”, afirma.

Casos como eles, quando se insere substâncias cáusticas no corpo de alguém, mal parecem se comparar ao de mulheres como Marina, que entraram e saíram de clínicas de alto padrão. É por isso que, depois de compartilhar sua história, Marina lembra: “isso está longe de ser a realidade no Brasil. Eu tenho muita sorte de ser parte de uma elite que sempre foi capaz de pagar por qualidade, e basicamente pagar por qualquer coisa que precisar, não importa a lei”.

Acontece que essa é a realidade no Brasil. Todas as mulheres no país estão correndo altos riscos por causa da criminalização do aborto, mas, como diz Galli, “há um abismo social entre aqueles que podem escolher se querem ou não engravidar, e aqueles que não têm essa opção”.

 

Apoie o Lado Bi!

Este é um site independente, e contribuições como a sua tornam nossa existência possível!

Doação única

Doação mensal:

2 comentários

Maria Maria

Eu também passei por uma das fases mais difíceis da minha vida, quando descobri uma gravidez não desejada. Cai em 4 golpes, com prejuízo de mais de R$3.000,00. Consegui ajuda sincera com este grupo de mulheres, me indicaram clinicas e medicamentos. Agora trabalhamos juntas e escrevo por que sei pelo que estão passando.

Lucas Alves de Quevedo

Que horror… mulheres que ingerem soda caustica… isso é muito sério. Fico imaginando o que se passa na cabeça de uma mulher para apelar para esse tipo de método. Realmente é impossível se colocar no lugar delas, não dá pra julgar, mas é impressionante como elas abdicam da própria saúde para abortar.

Comments are closed.