Aplicativos ajudam gays e lésbicas da China a forjarem um casamento de fachada

Num país em que a homossexualidade era crime até 1997 e o preconceito ainda é feroz, gays e lésbicas cada vez mais unem forças - com o auxílio da internet - para apaziguarem suas famílias conservadoras

por Marcio Caparica

Traduzido da matéria de Jamie Fullerton para o jornal The Independent

Qiang está sentado ao lado de sua esposa, Jing, num shopping de Xangai. Junto deles na mesa está também Jie, o namorado de Qiang. O trio tenta explicar seu relacionamento. “É complicado”, ri Qiang.

Quando Qiang se casou com Jing em 2013, seu namorado Jie foi seu padrinho. Na mesma semana, Jie casou-se com a namorada de Jing. Quando Jing separou-se da namorada, a namorada divorciou-se de Jie. Essa situação emaranhada representa dois exemplos de uma onda de uniões de fachada entre gays e lésbicas na China.

Há por volta de 16 milhões de gays chineses casados a mulheres que não sabem da sexualidade do marido, afirmam pesquisadores da Universidade de Qingdao. Essas uniões são repletas de riscos emocionais. Consequentemente um número cada vez maior de gays e lésbicas estão procurando uns aos outros em busca do que consideram ser uma opção com um potencial menor para o desastre. “Eu não senti ciúmes quando vi Qiang se casar com uma mulher na minha frente”, afirma Jie, 32. “Desde que nossas famílias ficassem felizes, nós estaríamos felizes. Resolvemos um problema.”

Assim como milhões de outros chineses de sua geração, o trio encarou a pressão de seus pais para construírem uma família tradicional, inclusive com netos. “Eu não poderia forçar meus pais a aceitarem que eu sou gay”, considera Qiang. “As crenças são diferentes de uma geração para a outra. Não dá pra mudar isso.”

Não há traço de amargura ou angústia em sua voz quando ele comenta esse engodo. Ele e Jing planejaram seu casamento para que ele atrapalhasse ao mínimo suas vidas de verdade. Eles se encontram para jantares em família algumas vezes por mês mas não moram juntos – Qiang mora com Jie. “Nossos pais convivem com a gente mas não deixamos que eles passem a noite conosco”, explica Jing. “Minha esposa vive bem perto de mim”, aponta Qiang. “É fácil quando os pais visitam de surpresa.”

Qiang e Jie conheceram suas esposas depois de vasculharem sites para lésbicas, trocar mensagens, encontrá-las e estabelecer amizades. Jie desdobra um contrato escrito à mão que ele e sua ex-esposa assinaram antes de seu casamento e lê os termos estabelecidos. Esses contratos são comuns em casamentos de fachada e geralmente descrevem acordos de independência financeira. O contrato de Jie também estabelece que ele seria responsável por 70% dos custos de se criar um filho decorrente desse casamento.

“Nós discutimos um pouco sobre o sobrenome da criança”, lembra-se Jie. “Depois finalmente concordamos que seria o meu.” Qiang, que é advogado, tem um contrato similar com sua esposa. “Eles têm valor legal”, avisa.

O processo para se organizar casamentos como esse tornou-se mais fácil em janeiro de 2015, quando foi lançado o aplicativo Queers. Ele funciona como um site de namoros, ajudando a unir gays a lésbicas. Os usuários colocam suas fotos e estatísticas pessoais como altura, peso e renda. Eles explicam se querem ou não ter um filho quando se casarem.

Mulheres que têm aparência heterossexual “são mais desejáveis, já que isso faz com que seja mais fácil enganar os pais”, explica Liao Zhuoying, fundador do Queers.

Queers tem mais de 400 mil usuários, quase metade dos quais está entre as idades de 25 e 35 anos: a idade em que a pressão para se casar é mais intensa. “Ativistas nos acusam de erguer barreiras, ajudar pessoas a fugirem de seus problemas”, lamenta Liao. “Mas nós oferecemos uma solução. É impossível para todos os gays e lésbicas saírem do armário na sociedade chinesa.”

A homossexualidade era ilegal na China até 1997, e estava listada como um distúrbio mental até 2001. Mês passado relatórios da mídia revelaram que a terapia de cura gay ainda é amplamente utilizada na China.

Não chega a surpreender que tantas pessoas mantenham sua homossexualidade em segredo. Apesar da maioria dos usuários do Queers utilizarem o aplicativo para forjarem um casamento e enganarem seus pais, Liao afirma que alguns o fazem com a cooperação de suas famílias para que sua sexualidade seja ocultada do resto da sociedade. “Na China, é importante manter as aparências da família”, acredita.

O website ChinaGayLes.com tem o mesmo propósito que o Queers. Lançado em 2005, ele tem aproximadamente o mesmo número de usuários que o aplicativo, e seu fundador Lin Hai afirma que ele já facilitou por volta de 50 mil casamentos de fachada até o momento. “Antes desse site não havia realmente o conceito de casamentos de fachada na China”, ele diz. “Gays simplesmente se casavam com mulheres heterossexuais.” Lin afirma que, assim como Liao, às vezes ele recebe mensagens de pais de homossexuais. “Eles buscam encontrar uma maneira de respeitar seus filhos e ainda assim encaixarem-se nos padrões da sociedade.”

Para a maioria dos usuários o objetivo final desses casamentos é ter um filho. Depois de dois anos como marido e mulher, Qiang e Jing estão planejando uma gravidez. Eles em breve vão comprar uma seringa e tentar utilizá-la para inseminar Jing com o esperma de Qiang em casa, mas vão consultar especialistas médicos se isso não der certo. “Queremos fazer isso por nós mesmos e por nossos pais”, explica Jing. “Mas provavelmente vamos deixar nosso filho passar a maior parte do tempo na casa de nossos pais até que ele faça três anos.”

Para Jie, a questão dos filhos foi o que acabou com seu casamento de fachada. Sua esposa havia concordado em ter um filho, mas mudou de ideia depois do casamento, o que levou ao divórcio. Jie então decidiu sair do armário para seus pais em agosto, algo raro.

“Minha mãe chorava descontroladamente e me perguntava ‘Como você pode ser assim?’,” recorda-se. “Ela disse que se culpava por permitir que eu morasse num lugar como Xangai, onde mora ‘gente esquisita’. Quando eu contei para meu pai ele disse ‘Eu me sinto como se houvesse uma mosca em minha boca. Nojento’.”

Apesar de ter passado um tempo distante de seus pais, Jie agora voltou a ter contato com eles. Eles estão educando-se com o auxílio de grupos de apoio criados para ajudar pais a compreenderem a homossexualidade, e Jie diz que se sente mais feliz agora que não tem que mentir para eles.

Há sinais de progresso na China no que toca à homossexualidade. Os líderes do governo recentemente fizeram aparições públicas com líderes da indústria de tecnologia gay, em exercícios de construção de relações, e a influência dos jovens usuários de mídias sociais, mais liberais, está aumentando.

“A roda da história está seguindo em frente”, acredita Liao. “Mas nem todos têm a coragem de estar na frente do movimento. Nós estamos resolvendo problemas para essas pessoas. Quem sabe a demanda por casamentos de fachada diminua no futuro, nosso aplicativo vai morrer e a sociedade vai progredir.”

Mas no momento a fraude continua. “Eu já quis sair do armário várias vezes”, confessa Jing. “Mas se eu fizer isso, a pressão vai ser transferida para meus pais. É egoísta. Eu estou fazendo isso para que meus pais fiquem confortáveis.”

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