Por que é totalmente possível que Charlie Sheen não tenha contaminado suas parceiras

Quando em 2010 o então BBB Marcelo Dourado levou toda sua ignorância aos lares brasileiros via satélite e afirmou que “hétero não pega aids”, mandei o vídeo com sua declaração para o Ministério Público, que obrigou a Globo a esclarecer (bem porcamente, diga-se de passagem) que isso era uma mentira. O vírus HIV não faz distinção de orientação sexual. Ele não pergunta a suas células CD4 se elas são “héteros ou gays” antes de invadi-las para se reproduzir e, por consequência, destrui-las.

Com a revelação de que Charlie Sheen, um dos maiores símbolos do hétero pegador, é também portador do vírus (soropositivo, portanto) já pudemos observar a enxurrada de burrice e preconceito nos comentários dos portais de notícia. Gente que ainda vê o HIV e a Aids com os olhos dos anos 1980, quando a doença era uma sentença de morte, escrevendo as maiores asneiras sobre o assunto e mostrando por que motivo Sheen estava tão relutante em declarar seu status sorológico.

Na entrevista que deu ao Today Show, Sheen garantiu não ter contaminado nenhuma de suas parceiras porque sempre usou preservativo depois que descobriu sua sorologia e sempre a revelou.

Mas mesmo que ele não tenha transado com camisinha todas as vezes desde que descobriu que contraiu o vírus, ele pode ter contaminado alguém? Se estiver seguindo à risca o tratamento, é bem provável que não.

Antes de saber por que, é necessário que você, hétero que nunca usou preservativo porque achava que “Aids é doença de gay” e que está descobrindo agora que o seu também está na reta, entenda algumas coisas que os gays já sabem faz tempo sobre HIV/Aids.

1. A medicação existente hoje em dia para tratamento de HIV/Aids permite que soropositivos morram de velhice. Ou seja, foi-se o tempo em que isso era uma sentença de morte. Embora, para algumas pessoas, os remédios apresentem efeitos colaterais incômodos devido ao uso prolongado, isso vem diminuindo cada vez mais com o desenvolvimento da tecnologia farmacêutica. A lipoatrofia e a lipodistrofia, por exemplo, que davam aquele aspecto cadavérico aos soropositivos, têm ocorrência cada vez menor.
2. Guarde na sua cabeça: carga vira indetectável. Este é o status ideal para que um soropositivo esteja saudável e, ao mesmo tempo, não contamine ninguém caso tenha relações sexuais sem o uso de preservativo – ou caso a camisinha estoure. Quando uma pessoa se descobre soropositiva e INICIA O TRATAMENTO COM O USO DE MEDICAMENTOS ANTIRRETROVIRAIS, os médicos monitoram dois elementos em seu sangue. Um deles é a carga viral, ou seja, o número de cópias do vírus por mililitro de sangue. Se ela estiver abaixo do limite de detecção, maravilha! Você está reagindo muito bem ao tratamento é praticamente impossível que você vá transmitir HIV para alguém. O segundo elemento monitorado em seu sangue é o nível de células CD4 (aquelas que o vírus ataca e destrói para se reproduzir), que deve estar sempre alto para que seu organismo tenha defesas contra as chamadas doenças oportunistas. Agora: uma carga viral indetectável significa que os remédios eliminaram todos os vírus? Não. Significa que os vírus existentes em seu organismo estão abaixo do limite de detecção e que estas “cópias” ainda presentes em seu sangue estão incubadas em locais onde a medicação não chega (especialmente vasos capilares do sistema nervoso central). E sim, há estudos que provam que em caso de casais sorodiscordantes (em que apenas um dos parceiros é soropositivo), quando abolido o uso do preservativo E O PACIENTE POSITIVO ESTÁ COM A CARAGA VIRAL INDETECTÁVEL, não há nenhum caso registrado de contaminação, conforme noticiamos em março de 2014. Portanto, mesmo sem preservativo é possível que um soropositivo não transmita HIV.
3. Pacientes soropositivos são mais seguros que pessoas que desconhecem sua sorologia. Além do que já citamos no item 2, há outro aspecto que torna os soropositivos mais “seguros” que pessoas que transam sem camisinha e nunca fizeram um exame de DST (doenças sexualmente transmissíveis). Ao iniciar o tratamento, os positivos têm de fazer, a cada três meses, uma bateria de exames de sangue, que monitora não apenas a carga viral e o CD4, mas a incidência DSTs, níveis de colesterol etc. Portanto, o soropositivo em tratamento está muito mais a par de sua saúde até do que você, que só transa com camisinha, mas não se testa regularmente.
4. Memorize esta sigla: PrEP. É a sigla para Profilaxia Pré-Exposição. Quem está sob este tipo de tratamento é soronegativo, mas já toma medicamentos antirretrovirais como forma de prevenção. O uso deste medicamento foi recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) para todas as pessoas que têm problemas com o uso de preservativo. Nos Estados Unidos e na Europa, o uso desta medicação, cujo nome comercial é Truvada, é amplamente difundido e coloca também os soronegativos sob proteção contra a contaminação com o HIV. Embora os médicos não recomendem a abolição do uso da camisinha mesmo quando o paciente está tomando Truvada (porque ele não previne as outras DSTs como sífilis e gonorreia, por exemplo), muita gente que está fazendo PrEP tem praticado sexo sem preservativo e sem prejuízo para si ou para seus parceiros. Obviamente que há riscos, especialmente quando se combina a PrEP com outras drogas, como contamos neste texto sobre o “party and play”, mas é bom saber que, cada vez menos, o sexo sem preservativo é sinônimo de contaminação com o HIV.

Portanto, respondendo ao artigo da Time que pergunta como ele pode ter certeza de que não transmitiu HIV para ninguém, aí estão os motivos. Ou seja, não tem nada de desconfortável no que ele disse, mas há muito de desconfortável neste artigo estigmatizador da revista americana que, na ânsia por dar opinião, esqueceu de fazer o check e double check.

Mas se Charlie Sheen pode ter certeza de que não contaminou ninguém, como pode não saber quem o contaminou? Provavelmente porque quem o contaminou não fazia tratamento ou nem sequer sabia seu status sorológico. Diferentemente dele, que, ao que tudo indica, se trata e está a par de sua situação.

Se você quer se informar mais sobre o HIV e desmistificar usa ideia sobre Aids, fizemos um texto aqui com 15 mitos sobre isso que ainda persistem.