Nicole e Jonas Maines aos 14 anos

Gêmeos idênticos que agora são irmão e irmã têm sua história contada em livro

Autora Amy Ellis Nutt conta porque decidiu contar a história dos irmãos Jonas e Nicole Maine, explica a ciência da identidade de gênero e completa: "Nicole é igual a todas as outras meninas. Sempre soube quem era"

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Melissa Jeltsen para o site Huffington Post

Quando Wayne e Kelly Maines adotaram dois bebês gêmeos 18 anos atrás, não faziam ideia do rumo que suas vidas levaria. Wayne, um veterano da Força Aérea e apreciador da vida ao ar livre, antecipava os dias que passaria pescando, caçando e jogando beisebol com seus garotos. Kelly estava simplesmente feliz por ter seus próprios filhos, depois de encarar anos de tratamentos contra infertilidade.

Como são gêmeos idênticos, Wyatt e Jonas Maines compartilham do mesmo DNA. Mas logo tornou-se claro para seus pais que um deles apresentava uma diferença monumental: seu gênero. Desde muito cedo, Wyatt identificava-se como menina. Quando tinha dois anos de idade, ele disse para seu pai que odiava seu pênis. Ele perguntou para sua mãe quando poderia tornar-se uma menina. Na quinta série Wyatt assumiu oficialmente o nome Nicole.

Em Becoming Nicole: The Transformation of an American Family (“Tornando-se Nicole: a transformação de uma família norte-americana”, em tradução livre), lançado semana passada, a vencedora do prêmio Pulitzer Amy Ellis Nutt segue os Maineses conforme aprendem a compreender sua filha transgênero – e apoiá-la ao longo do processo. Na narrativa de Ellis, a maior lição para a família vem de Nicole. Ela sabe quem é; cabe à família ouvir. A narrativa, que leva os leitores de uma cidade rural em Maine até culminar na Casa Branca, inclui histórias de bullying, conflito familiar e um caso que tornou-se um marco para os direitos de transgêneros.

É o ápice de uma história que venho seguindo pessoalmente desde 2010. Encontrei Nicole pela primeira vez quando ela tinha 12 anos e era paciente no Hospital Infantil de Boston, onde eu trabalhava como jornalista na época. Seu médico era Norman Spack, um endocrinologista pediátrico que cofundou a primeira clínica nos Estados Unidos dedicada a tratar crianças transgênero. No Hospital Infantil de Boston, Nicole recebeu drogas que suprimiam a puberdade – um tratamento inovador para crianças transgênero que essencialmente paralisa sua puberdade, impedindo que seus corpos desenvolvam mudanças físicas indesejadas.

No caso de Nicole, tomar medicamentos que suprimem a puberdade significa que ela não desenvolveria o pomo de Adão, barba nem outras características masculinas que poderiam causar-lhe ansiedade extrema e tornar a transição para o gênero feminino mais difícil quando ela ficasse mais velha.

Eu fui encarregada de escrever uma matéria sobre ela e o trabalho de Spack com crianças transgênero. Quando entrevistei Nicole e sua família, eles estavam atravessando um período difícil. Eles haviam acabado de mudar-se de Orono, Maine, para Portland, arrancando as raízes de sua vida depois que Nicole havia sofrido bullying em sua escola por usar o banheiro das meninas.

Nicole vinha utilizando o banheiro feminino sem qualquer incidente até que um menino da mesma escola começou a segui-la e entrar no banheiro junto dela, dizendo que, se Nicole podia usar aquele banheiro, ele também podia. Por causa disso a escola proibiu que Nicole utiliza-se o banheiro das meninas, e obrigou-a a usar um banheiro para funcionários, isolada dos outros alunos.

Os Maineses tiraram os filhos dessa escola e entraram com um processo por discriminação. Em 2014, sete anos depois do primeiro incidente com o banheiro, a família finalmente obteve uma enorme vitória: a Suprema Corte de Maine decidiu que a escola havia violado a lei antidiscriminação do estado quando não permitiu que Nicole utilizasse o banheiro das meninas. A decisão fez história, e foi a primeira vez que uma corte estadual decidiu que alunos transgênero devem ter garantido o acesso ao banheiro do gênero com que se identificam.

Nicole realizou sua cirurgia de adequação de sexo no final do ano passado. Ela e seu irmão agora frequentam a Universidade de Maine.

Jonas e Nicole Maines, agora com 18 anos

Jonas e Nicole Maines, agora com 18 anos

Conversei com Nutt sobre o processo de escrever Becoming Nicole. Uma versão editada e condensada da entrevista está abaixo.

Por que você se interessou pela história de Nicole?

Quando conheci os Maineses, senti que era impossível não gostar deles. O que me impressionou é que eles pareciam, por outro lado, ser uma família muito normal. E no entanto sua história é extraordinária. Acho que muitas pessoas podem identificar-se com eles.

A outra coisa que me atraiu foi que Jonas e Nicole são gêmeos idênticos. Isso apresentou uma oportunidade para alguém como eu, que escreve sobre ciência, de discutir a ciência do gênero.

Aqui estão gêmeos idênticos, com exatamente o mesmo DNA, mas que obviamente apresentam diferenças profundas. O que aconteceu para ligar ou desligar algumas chaves genéticas em um e não no outro sem dúvida se deu no útero.

Acho importante que possamos encarar a identidade de gênero como algo ligado ao cérebro, e não aos genitais com que nascemos, ou como somos criados, ou quantas bonecas ganhamos de presente.

Qual foi a coisa mais surpreendente que você aprendeu enquanto escrevia essa história?

O que foi mais surpreendente, sob a perspectiva científica, é que, pelo que nós conhecemos, a identidade de gênero é um processo cerebral completamente separado que ocorre durante do desenvolvimento pré-natal. Por volta de seis semanas nossos genitais e nossos órgãos reprodutores já foram determinados como sendo masculinos ou femininos, mas não é até os seis meses que nossos cérebros são masculinizados ou feminilizados por hormônios. Isso esclarece muita coisa.

Sob a perspectiva familiar, surpreende o quanto Nicole já era quem era desde que nasceu. eu assisti horas de vídeos [dos gêmeos quando eram crianças]. É impossível assistir todos esses vídeos, alguns dos quais são de momentos muito banais, e não se impressionar que ela era uma criança que sabia, sem sombra de dúvida, que era uma menina.

Aos dois anos, você mal tem o vocabulário para se comunicar, muito menos para dizer para alguém que o corpo em que você está não está de acordo com seu cérebro. Isso é algo tão integral para quem a criança é que fica impossível pensar que isso seja algo que pode ser influenciado pelo número de bonecas que ganham de presente ou pela maneira como alguém a vestiu.

O que você quer que as pessoas aprendam com esse livro?

Acho que qualquer pessoa que ler esse livro vai descobrir algo com que pode se identificar. Apesar de ser um livro sobre uma criança transgênero, ele trata de famílias e como nós podemos entender uns aos outros. É uma história sobre quatro vidas, não apenas uma. Não é uma biografia de uma criança transgênero – é uma biografia de uma família.

Tenho a esperança de que as pessoas vão lê-lo e passarão a conhecer essa família, e ao compreenderem quem são eles, perceberão que não é um destino terrível ter um filho transgênero.

Nicole não é diferente de qualquer outra jovem. Ela simplesmente sabia quem era. E ela sabia que seu corpo não estava de acordo, e sua família ajudou-a a encontrar uma resposta.

Apoie o Lado Bi!

Este é um site independente, e contribuições como a sua tornam nossa existência possível!

Doação única

Doação mensal:

Um comentário

João P.

Tão lindinhos *-*
Mais uma matéria fantástica, esclarecedora e de fácil entendimento para leigos no assunto.
Lembrei de um filme que marcou minha infância: Mogli :v
O Jonas me lembra Mogli, e Nicole me lembra a garota que aparece na aldeia no final do filme *3*

Comments are closed.