Uganda é um dos países onde a legislação contra LGBTs é das mais violentas, podendo levar pessoas que expressem uma sexualidade ou um gênero fora do padrão para a prisão perpétua. Mas como este país africano estabeleceu uma cruzada contra LGBTs a ponto de um jornal publicar uma lista dos 100 gays e lésbicas mais notórios do país, que passaram a sofrer ataques a suas residências e a perder seus empregos?
A resposta está no documentário God Loves Uganda, disponível na Netflix, e é bastante conhecida do público brasileiro: fundamentalismo religioso.
Durante uma hora e meia, o documentário, dirigido pelo premiado Roger Ross Williams, mostra como igrejas evangélicas americanas extremistas têm financiado este tipo de perseguição com base em mentiras e difamações sobre a comunidade LGBT. Em um dos trechos, vemos pastores dizendo que homossexuais foram responsáveis pelo nazismo, além dá já típica e falaciosa associação da homossexualidade com a pedofilia.
Um dos personagens deste documentário é o Rev. Kapya Kaoma, ministro anglicano e doutor em teologia pela Universidade de Boston. Ele passou a ser perseguido em Uganda e hoje vive em Boston, nos Estados Unidos, por ser contrário aos pastores que praticam esse tipo de “cristianismo extremista” contra LGBTs na África.
O Lado Bi o entrevistou nesta quinta-feira por telefone e ele explicou como isso tudo começou naquele país, além das diferenças e semelhanças entre o que acontece no Brasil e nos países africanos de modo geral. Também explicou por que, em sua opinião, a linguagem da demonização de LGBTs promovida por pastores fundamentalistas é um “passaporte para o extremismo”.
Uma de suas revelações mais interessantes foi sobre como a conquista de direitos civis por LGBTs no Brasil é retratada pelos pastores extremistas de Uganda. Segundo eles, uma “ditadura gay” está em curso no país e cristãos estariam sendo expulsos dos país pelos LGBT. Leia:
LADO BI Reverendo, o senhor está acompanhando o que tem acontecido no Brasil em termos de fundamentalismo religioso?
Rev. Kapya Kaoma – Sim, eu tenho. Estive no Brasil há três anos. E o movimento evangélico no Brasil tem crescido, especialmente este de viés político, que é importado dos Estados Unidos, que basicamente consiste em tirar proveito da mídia para aumentar seu poder político e impor seus valores. Em termos de conexões, não sei se você já ouviu falar do grupo American Center for Law and Justice?
Não…
Este é um grupo que surgiu durante o governo Bush que criou a Lei de Defesa ao Casamento, cujo objetivo era determinar que casamentos só deveriam ocorrer entre homens e mulheres. Eles abriram um escritório no Brasil. Este é apenas um exemplo de como esse evangelismo tem se alastrado por países onde encontram campo fértil para o extremismo. Uma das preocupações que eu tenho sobre esse grupo é que eles têm como objetivo influenciar líderes políticos através do poderio econômico norte-americano e, assim, aplicar sua agenda conservadora. Agora, o Brasil, como uma potência econômica que é, também está disseminando este tipo de conservadorismo evangélico a outras partes do planeta, especialmente nos países africanos de língua portuguesa e também no Caribe. Agora vocês não são mais os receptores dessa cultura, mas também os disseminadores. Então isso coloca o Brasil em um papel de destaque em relação a isso.
Segundo o documentário, o que ocorre hoje em Uganda é fruto de uma profunda promiscuidade nas relações entre religião e política. Como o país chegou a esse ponto?
O que você tem que entender sobre Uganda é que após a queda de Idi Amin, que era muçulmano e matou muitos líderes religiosos cristãos que se opunham ao seu regime, a maioria cristã dos ugandenses comemorou. Os evangélicos, que já vinham se tornando numerosos no país e em outras regiões da África, tiraram vantagem disso. Especialmente porque Uganda é um país muito importante para os Estados Unidos. Eles têm acordos militares com o país, então o presidente Yoweri Museveni é muito alinhado aos EUA. O que isso fez foi abrir portas para a agenda conservadora americana, especialmente entre os membros do partido Republicano e os congressistas de Uganda. Hoje a igreja e a política naquele país andam juntas. Por isso as igrejas evangélicas americanas conservadoras encontram um campo fértil para disseminar suas ideias. Se você for hoje ao país você vai encontrar uma monte de “escolas cristãs”, que nada mais são que escolas americanas do conservadorismo. E como você vê em God Loves Uganda, eles têm acesso aos políticos, ao presidente… E eles fizeram com que questões – que não são questões urgentes na África – tivessem mais destaque. Por isso eles começaram a questionar os direitos dos LGBT e iniciou-se essa perseguição aos homossexuais em Uganda.
Qual o papel dessas igrejas na aprovação das leis que condenam gays à prisão perpétua e até à morte?
O movimento conservador americano fez um trabalho muito forte na forma de apresentar os LGBTs à população de Uganda. Para eles, o gay é retratado unicamente como um molestador sexual. Eles mentem que tudo o que os gays fazem, de segunda a segunda, é sexo. E sexo com crianças. É aí que começou tudo.
Então eles basicamente mentem que homossexuais são pedófilos por definição?
Sim. Este é o discurso que impera naquele país. Não apenas pedófilos, mas também responsáveis por genocídio em Ruanda [país vizinho]…
Mas como eles justificam esse absurdo?
Não sei se você já ouviu falar de um livro chamado A Suástica Rosa, que diz que foram os LGBTs os responsáveis pela matança de judeus no holocausto.
Quem escreveu esse livro?
O nome de seu autor é Scott Lively [um fanático religioso americano que hoje é processado por organizações de direitos humanos por ter tido papel preponderante na perseguição a LGBTs em Uganda]. Basicamente ele diz que o holocausto na Alemanha nazista foi arquitetado pelos gays e que, hoje, eles estão praticando genocídio em Ruanda. Então eles apresentam o LGBT não como um humano, mas um pedófilo genocida.
E como eles conseguiram fazer com que as pessoas acreditassem nesses absurdos?
Bem, as pessoas que dizem isso se imbuem de uma autoridade religiosa. E as pessoas acreditam na autoridade de um pastor e que tudo que ele diz é verdade. O mesmo com o papa… O genocídio que está acontecendo em Ruanda, por exemplo. Os líderes religiosos têm um papel crítico nisso. Eles são os que mais ajudaram a causar isso pela forma como fazem suas pregações. Mesmo na Alemanha, a igreja católica teve papel preponderante na forma como retratava os judeus. E o mesmo acontece no Brasil. Esses líderes dizem que essas pessoas são amaldiçoadas, que a Bíblia as condena à morte. Então as pessoas acreditam em tudo o que ouvem desses líderes como uma verdade. Se você procurar por vídeos na internet sobre gays em Uganda, encontrará um que foi feito logo que surgiu essa proposta de lei, em que este homem dizia que os gays eram muito perigosos e que devíamos enfrentá-los. Neste encontro ele disse que a única forma de lutar contra os homossexuais era usando armas.
O documentário não deixa isso muito claro, mas ao final, nos créditos, ele dá uma sentença sobre o que motiva esses pastores. Eles têm residências em Uganda e nos Estados Unidos. Ou seja, eles estão ganhando muito dinheiro com o ódio, certo?
É exatamente isso que está acontecendo e é este o ponto da minha contestação. Eu sinceramente não acredito que eles acreditem nessas mentiras que eles contam, mas é a forma como conseguem arrecadar fundos. Quanto mais eles dizem essas loucuras que são condizentes com o que essa direita cristã americana, mais dinheiro eles conseguem. Se você vai a Uganda hoje, você vê inúmeras escolas chamadas cristãs, mas que são no fundo escolas em que as crianças são instruídas nos valores dessa instituições que financiam essas escolas. Você pode pensar que isso só acontece em Uganda, mas não. Em Lesoto, onde o presidente é ultraconservador, muitos pastores compartilham os mesmos valores. Agora, esses fanáticos que financiam isso, quanto mais eles perdem espaço nos Estados Unidos, mais ele têm de encontrar campo para disseminar esses valores e se manterem relevantes. Evangélicos extremistas — e não estou falando aqui do bom evangélico — encontraram campo fértil para sua ideias na África, e especialmente em Uganda. Então eles vendem a ideia de que, assim como Jesus foi rejeitado pelo seu povo, eles também foram, mas estão sendo aceitos por outros povos. Por isso que, agora, seus programas de TV não são mais direcionados ao público americano, mas ao público global. Goste-se ou não, as estações de TV e rádio em Uganda estão nas mãos dessas religiões. E os africanos não têm os recursos para filtrar essas mensagens. Eles acreditam em tudo que se venda como cristão, assim como os muçulmanos também acreditam em tudo que tenha essa marca. E o problema é que não há redes de TV que representem o pensamento do verdadeiro cristianismo. Não há quem vá à TV e diga que isso não é verdade. Esse grupo de cristãos progressistas não têm esses recursos. Eles não têm canais de TV como têm os extremistas. E tudo o que eles falam nada tem a ver com cristianismo. É só uma grande máquina de fazer dinheiro. E quanto mais eles perseguirem os gays, mais dinheiro eles ganham.
O senhor sabe que os mesmos discursos são reproduzidos por esses supostos pastores, supostos cristãos no Brasil. Quais são as semelhanças entre o que está ocorrendo em Uganda e o que está ocorrendo no Brasil?
Existem muitas semelhanças sim. Em primeiro lugar você tem que saber que isso tudo funciona em uma rede. É muito interessante o fato de que o Brasil é citado nos encontros desses pastores em Uganda. Em uma dessas conferências, em 2009, eles disseram que “cinco anos atrás não se ouvia falar em homossexualidade no Brasil e que agora o Brasil é a capital gay do mundo”. E mais: dizem que os cristãos estão sendo forçados a sair do Brasil por causa dos gays. Ou seja, eles dizem que os cristãos não comandam mais o Brasil porque os gays os expulsaram do país. Eles usam o Brasil como um exemplo (risos). A parte mais triste, para mim, é que o Brasil pode dizer que sim, nós temos uma Constituição, mas para ser bem honesto com você esses extremistas vão atrás das pessoas que estão no poder. Esta é a agenda deles. A estratégia deles é ter o maior número do políticos ao seu lado e isso traz o assunto a debate. Ou seja, torna-se um “problema” novamente. A segunda parte é que os políticos a partir de então são forçados a falar disso. Se eles não se pronunciam, são ameaçados por esse grupo a ficar a seu lado e atacar legislações mais libertárias em relação aos direitos humanos. Se não, pelo menos se fingirem de cegos sobre o que está ocorrendo, e fazem isso porque os pastores os ameaçam dizendo que, caso não o façam, perderão as eleições. Agora há um terceiro aspecto que diferencia Brasil e Uganda. No Brasil, os pastores estão concorrendo e ganhando cargos políticos, assim como está acontecendo nos Estados Unidos. Na África isso não acontece porque há uma crença de que política e religião não andam de mãos dadas, então os pastores não entraram necessariamente para a política em Uganda, embora de vez em quando se veja alguns deles, com essa orientação evangélica americana, tentando concorrer a cargos públicos.
Agora, o que mais preocupa não são as leis. Porque para mim as leis não protegem. É a comunidade quem protege [os oprimidos]. A lei apenas pune. Mas quando ela pune, o estrago já foi feito. É o que eu sempre digo a meus irmãos do movimento evangélico. Temos que tomar muito cuidado com o que dizemos. Porque uma vez que você começa a demonizar um certo grupo de pessoas, haverá extremistas lá fora que irão atrás dessas pessoas. E irão usar a justificativa de que estavam agindo em nome do interesse de Deus. Este é meu maior temor em relação ao Brasil, onde os pastores descrevem a comunidade LGBT ou os que não concordam com suas ideias de forma errada. Demonizar essas pessoas é endossar o ataque público a elas. Especialmente do ponto de vista de um extremista ou do muito religioso… Quer dizer, não! Não do “muito religioso”. Vamos ser honestos: eu acredito que não há qualquer diferença entre o fundamentalismo islâmico e o fundamentalismo cristão. Porque eles acreditam que o que eles estão fazendo estão fazendo por Deus. Então se eles acreditarem que destruir uma pessoa para fazer Deus feliz é aceito, eles irão fazê-lo. Então é claro que sou a favor das leis para dar diretos à comunidade LGBT, mas a linguagem da demonização é o passaporte para o extremismo, que irá atrás de pessoas inocentes e destruirá suas vidas. Então este é o meu trabalho, de levar a meus irmãos pastores a mensagem de que temos de ser muito cuidadosos… Porque as pessoas fazem o que fazem porque ouviram de seus pastores. E aí outra vida foi perdida. E este é o meu maior temor com o crescimento do cristianismo fundamentalista.
Há ainda outra coisa. Quando se fala em guerra, como se fala no evangelismo americano, como isso se traduz, por exemplo, no Brasil, em português? Seu entendimento disso é totalmente diferente. Em Uganda e na África, por exemplo, que são países que sobrevivem de guerra em guerra. Como soa isso para eles? Então, quando se fala em guerra contra o cristianismo, o que eles entendem? Então esses pastores vão à TV e dizem que vão fazer o que for necessário para lutar contra isso. Então, por isso quando eles falam em luta nestes países, as pessoas entendem como matar pessoas. Eles respondem a isso porque lhes foi vendido assim, como uma “guerra contra nossas crianças”.
Então, eu digo aos meus irmãos cristãos que eles devem usar as palavras muito cuidadosamente para não usar palavras que irão plantar ideias de destruição. Veja bem: eu não digo para eles acreditarem ou aceitarem o modo de vida dos LGBT. Eles podem discordar e devem não segui-lo se assim escolherem. É seu direito. Mas o que eu discordo é que se use o cristianismo, a minha religião pela qual eu tenho grande apreço, para difamar ou violentar uma pessoa. Isso é errado. E eu não acho que Jesus faria isso…
Recentemente uma mulher transgênero desfilou na Parada LGBT de São Paulo crucificada. Sua intenção era chamar a atenção à violência sofrida pelos transgêneros. Muitos pastores disseram que ela blasfemou. Que iria para o inferno. Eu acho que se Jesus viesse à Terra hoje ele provavelmente acolheria aquela mulher e chamaria esses pastores de fariseus. O que o senhor acha disso?
Olha… Você usou exatamente o exemplo que eu uso para meu rebanho. Eles são predominantemente pastores africanos, especialmente da Nigéria. Quando eu pensei a esse respeito pela primeira vez, resolvi trazer essa questão para minha igreja. E comecei a contar a história de uma pessoa transgênero. E isso é muito difícil, porque pessoas transgênero, especialmente mulheres, são as maiores vítimas de violência. Eu não sei por que. Mas acontece a todo tempo, neste exato momento em que estamos falando. Aconteceu em minha presença, na minha igreja, e o que mais me chateou é que eu não pude fazer nada. E o pior de tudo é que eu a convidei para aquele encontro. E ela só queria ver um amigo que havia chegado à cidade. E eu fiquei me perguntando: “O que estou fazendo aqui?” E aquela pessoa estava sendo atacada especificamente por ser transgênero. Então disse à igreja, durante minha pregação: “Eu realmente acredito que se Jesus voltar à Terra, será como um gay.” E quando eu disse isso, achei que as pessoas iriam esvaziar a igreja, mas ao fim da pregação vieram dizer: “Obrigado por dizer essas palavras.” Porque eu acho que a maneira como diminuímos a humanidade das pessoas.. Veja, não há nada de cristão nisso. Jesus não se moveria um milímetro nesta direção. Quer blasfêmia maior que usar o nome de Jesus para destruir? É o que nós pastores estamos fazendo. Nós somos os culpados por essa blasfêmia. Estamos usando o nome do homem que foi injustamente tratado. Morto por causa de suas crenças. E que mesmo assim acolheu a todas as pessoas, não importando sua cor e mesmo aos que lhe praticaram a injustiça. Você não usa o nome desta pessoas para maltratar outra pessoa. Isto é errado. E não há qualquer justificativa para isso. Então nós nos tornamos o oposto do que Deus queria que nos tornássemos. Digo às pessoas o tempo todo. Se o cristianismo se tornou isso: uma tentativa de destruir outras pessoas, uma tentativa de mentir sobre o estilo de vida que nem sequer somos capazes de compreender, isso nos levará ao inferno. E eu não quero ser parte disso. Porque não acho que seja isso que minha religião diz. Minha religião diz: acolha as diferenças. E eu acredito que Deus não comete erros. E isso é um tipo de coisa que ouço o tempo todo dos pastores sobre LGBTs: que Deus cometeu um erro. E eu acho que não. Porque não é Deus quem comete erros. Sou eu quem comete erros. Porque eu quero aceitar Deus e sua criação, mas apenas conforme o meu julgamento.
Então eu peço que esse pastores que dizem que Deus fez Adão e Eva e não Adão e Ivo releiam Mateus 19, versículos de 10 e 11. Lá Jesus está falando sobre divórcio. E é questionado pelos fariseus sobre um homem que rejeitou sua mulher. Após Jesus dizer que o divórcio é um erro, eles dizem que este homem que rejeitou a mulher, sem motivo, não deveria se casar. Então Jesus diz que isso não se aplica a todos. Porque há eunucos que foram feitos eunucos por que foram castrados, outros eunucos se fizeram eunucos pelo reino dos céus e que outros nasceram assim do ventre de suas mães. Ou seja, não é Adão nem Eva. Esse cara nasceu e é algo diferente. Então querer desumanizar alguém porque essa pessoa nasceu diferente? E se ela nascer sem a capacidade de procriar? E se ela nascer mesmo sem o desejo de procriar? Então eu acredito que um dia as pessoas LGBT poderão andar na rua sem medo de morrer por causa de sua sexualidade.
[…] entrevista completa está no site Lado Bi. Assista ao trailer de God Loves […]
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Discriminação e violência, lamentavelmente, juntas como vemos em:
http://saudepublicada.sul21.com.br/2015/08/31/religiao-e-laicidade-discriminacao-e-violencia/
Em São paulo, pastores dizem que negros africanos são amaldiçoados por noé