Sexo, drogas e depressão: jornalista da BBC investiga o que há por trás do “party and play”

O jornalista Mobeen Azhar entrevistou adeptos do chemsex em Londres e San Francisco; prática está ligada a quadros de depressão, ansiedade e outros distúrbios psicológicos

por James Cimino

Se você usa apps de pegação como Grindr, Scruff ou Hornett, provavelmente já se deparou com a sigla PnP. Ela significa “party and play”, uma prática sexual cada vez mais comum na comunidade gay masculina que consiste, basicamente, em usar vários tipos de drogas sexualmente estimulantes e, depois, transar por horas. Em alguns casos por dias seguidos.

Curioso para saber o que está por trás da combinação de substâncias químicas associadas ao sexo, o jornalista da BBC Mobeen Azhar produziu no ano passado uma série de reportagens chamada The Rise of “Chemsex” on London’s Gay Scene (O Crescimento do Sexo Químico na Cena Gay de Londres, em tradução livre) em que entrevista praticantes e um terapeuta sexual que dá alguns diagnósticos e estatísticas a respeito do tema.

Há duas semanas, o Lado Bi conversou com ele em San Francisco, nos Estados Unidos, onde Azhar dá continuidade a seu trabalho, mas com um enfoque um pouco diferente. Lá ele avalia as relações entre o chemsex, a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV) e o aumento do sexo sem proteção.

Embora deixe claro que os adeptos do chemsex estão muito longe de ser uma maioria na comunidade LGBT, em seu trabalho, realizado com praticantes londrinos, o jornalista descobriu que o abuso de substâncias químicas atrelado à prática sexual esconde históricos de depressão, ansiedade, rejeição familiar entre outros distúrbios psicológicos. “Não se trata de um problema de ordem sexual. Trata-se de abuso de drogas.”

Leia a entrevista com o jornalista da BBC abaixo:

Lado Bi – Por que você decidiu investigar sobre o chemsex?

Mobeen Azhar – Bem, eu vivo em Londres há dez anos e conheço a cena gay muito bem. E nos  últimos dois anos eu percebi que algumas frases começaram a ficar frequentes no linguajar dos gays, como “chems” [abreviação para químicos], “tina” [“chrystal meth”, a droga da série Breaking Bad], “GMTV”… GMTV no Reino Unido quer dizer “Good Morning Television”. Trata-se de um programa de TV que é exibido pela manhã, mas agora na comunidade gay GMTV significa Geena [GHB], Mefedrona, Tina e Viagra. Estes temas, palavras e frases entraram na cena gay em Londres. Por isso eu resolvi investigar tanto em Londres como aqui em San Francisco, onde existe a expressão “party and play” [party and play significa usar drogas e praticar sexo]. Quero saber como isso mudou a comunidade gay.

E o que você descobriu? Aparentemente o sexo casual não parece mais ser suficiente para essas pessoas, ou não?

Olha, de acordo com a minha pesquisa, é uma minoria da comunidade gay que está envolvida com o chemsex. O que eu descobri sobre o porquê de as pessoas usarem drogas para praticarem sexo parte de um contexto. A maioria desses homens que usam muitas substâncias, especialmente combinações de mefedrona, GHB e chrystal meth, têm histórico de ansiedade por sexo, uma real necessidade de intimidade e, ao mesmo tempo, um total incapacidade para encontrá-la. Outro ponto chave é que a maioria dos homens com quem conversei têm quadros de depressão. Quando você, na conversa, vai além da superfície, eles se abrem e dizem sofrer de depressão, dizem não se sentirem encaixados na comunidade LGBT, apresentam histórias de rejeição familiar… Em seus relatos, sempre usavam, em algum momento, a palavra “sujo”: que seu sexo é sujo, que seu relacionamento é inválido para a sociedade. É como se, de uma forma consciente ou inconsciente, eles estivessem se adaptando ao estereótipo. É importante dizer que nem todas as pessoas que fazem uso deste tipo de substância são assim, mas em minha pesquisa, esses temas foram bastante recorrentes.

Então não é um problema relacionado diretamente ao sexo, mas a abuso de drogas decorrente de quadros depressivos…

Absolutamente sim. Eu fiz o documentário com um terapeuta sexual chamado David Stuart, que trabalha para a Dean Street Clinic, a maior clínica de terapia sexual da Europa. Todo mês eles recebem 11 mil pessoas para algum tipo de tratamento, das quais 7 mil gays. Três mil dessas pessoas relatam usar algum tipo de substância química. Pelos menos cem desses pacientes, mensalmente, são homens gays pedindo ajuda para combater o abuso de substâncias químicas. E o doutor Stuart foi muito claro ao dizer que isto é um problema relacionado ao uso de drogas, não à prática sexual em si. As pessoas usam drogas para praticar sexo por horas e, às vezes, dias. Algumas deixam de trabalhar. Outras se engajam em três dias de sexo seguidos e, ao fim, estão muito deprimidas. As pessoas fazem isso para evitar o confronto com questões pessoais.

Não são apenas gays que estão envolvidos neste tipo de abuso de substâncias químicas, portanto?

Veja, toda a minha pesquisa foi feita sobre a comunidade LGBT. Eu conheci apenas uma mulher que usa G, mas não em um contexto sexual. Ela toma no café da manhã, antes de ir trabalhar. Ela literalmente pinga alguns mililitros no seu suco de laranja e vai trabalhar. E ela toma para suportar o dia de trabalho. Predominantemente os meus depoimentos são sobre gays que usam drogas para praticar sexo, mas isso não significa que entre heterossexuais isso não aconteça. Claro que fazem. Pessoas de todas as orientações sexuais fazem isso há anos. Mas o que está acontecendo agora é que as pessoas não estão usando essas drogas em um contexto social. Por exemplo: ecstasy, speed, MDMA são usados em clubes noturnos, para dançar. Já essas outras substâncias estão sendo usadas predominantemente em um contexto sexual. E o que eu descobri foram homens que pulam as interações sociais do fim de semana para fazer sexo. O que acontecia antes era gente que começava o fim de semana se arrumando para encontrar os amigos, que eventualmente tomavam uma droga, bebiam e saíam juntas. Aí, no fim da noite, talvez encontrassem uma ou duas pessoas e iam para algum lugar fazer sexo. Agora, com a combinação dessas três substâncias o que acontece é o fim dessas interações todas. Tudo agora funciona on-line. Teve um cara que entrevistei, Jack, de apenas 22 anos, que me disse que faz isso há três anos: sai do trabalho na sexta, organiza um encontro de várias pessoas numa casa, começam tomando G, aí usam tina, mefedrona, ficam nus, e, segundo ele, é muito comum que ele passe a noite de sexta, o sábado e o domingo inteiros, a madrugada de domingo para segunda fazendo isso. Aí, na manhã de segunda, já em pânico, ele corre para o trabalho virado e só vai dormir na segunda à noite. Em suas palavras: “trepar, trepar, trepar”.

Por que você decidiu investigar isso aqui em San Francisco e quais as diferenças que você encontrou?

Eu estou mais interessado aqui em investigar o efeito disso tudo combinado ao uso de Truvada, ou PrEP (Profilaxia Pré-Exposição). Essa nova droga está em testes no Reino Unido agora. E o que eu descobri em Londres é que, dos 545 pacientes que fazem parte deste programa lá, 40% afirmam ser adeptos do chemsex. Há um link entre as duas coisas…

E provavelmente há também um link com o sexo sem proteção…

É muito difícil de dizer isso, porque muita gente que pratica sexo sem proteção não necessariamente faz uso dessas drogas…

Heterossexuais inclusive…

Sim… Mas posso dizer, com base na minha pesquisa, que essas pessoas que vão a essas sex parties e que levam camisinhas para esses locais, depois de consumirem K, G ou chrystal, passam a não mais se importar com seu uso. É por isso que o meu documentário pretende investigar isso, para saber se o uso de PrEP nestas condições minimiza o risco.

Mesmo combinada com essas drogas? Isso não diminui a eficácia da PrEP?

Bem, por isso vim a San Francisco. Aqui a PrEP começou dois anos antes que em Londres. Aqui, mesmo quem não tem um plano de saúde bom ou quem não tem qualquer plano de saúde tem acesso à PrEP, porque há organizações não governamentais que fornecem esse tipo de medicação de graça. E ela tem sido vista como uma droga milagrosa por reduzir a quase zero o risco de infecção por HIV, mesmo sem o uso de preservativos. O que quero descobrir é: a eficácia da PrEP, combinada a outras drogas, aumenta, diminui ou continua a mesma? E mais, o uso de camisinha com o uso de PrEP, aumentou, diminuiu ou continua o mesmo? Descobri que, entre as pessoas que entrevistei, o uso de preservativo diminuiu substancialmente, mesmo que essas pessoas tenham consciência de que a PrEP não previne outras DSTs, como sífilis e gonorreia. Como essas doenças são tratáveis e não apresentam risco de morte, essas pessoas não se intimidam mais. Quanto à eficiência da PrEP nestes casos de combinação, não consegui coletar dados que comprovem se ela diminuiu ou não. Mas a Magnet, uma organização aqui de San Francisco, relatou um único caso de um homem que usa PrEP e que foi contaminado com HIV, mesmo tomando todo dia. E ele era adepto do “chemsex” também. No entanto é bom ressaltar que não há pesquisas relativas a isso ainda.

É importante sempre não fazer julgamentos negativos sobre as práticas sexuais de outras pessoas, mas, em sua pesquisa, você se deparou com aspectos prejudiciais deste tipo de prática? Quais?

É claro que a PrEP é comprovadamente uma droga que veio para reduzir drasticamente o risco de infecções por HIV. Mas obviamente que não é uma droga que irá ajudar as pessoas a desenvolverem autoestima. Não é um campo de força que o protegerá de tudo. E sim, eu acho que esta droga deve ser disponibilizada a profissionais do sexo, pessoas com comportamento de risco e, sim, heterossexuais também. Especialmente para mulheres, que volta e meia são infectadas por maridos que não se cuidam, como você relatou ocorrer no Brasil. É claro que quando o assunto é o chemsex, o buraco é mais embaixo, e envolve, como eu disse, depressão, rejeição, não se sentir capaz de fazer parte de qualquer tipo de relacionamento, não se sentir digno, nervosismo, ansiedade. Kieran, um cara que entrevistei, disse: “O tipo de homem de que eu gosto não gosta de mim. Mas quando uso chrystal, todos gostam de mim.”

Essas pessoas têm consciência do que se passa com elas?

Essas questões são complexas. Essas pessoas estão deprimidas. Em geral elas dizem, no primeiro momento, que não querem ser julgado. Conforme você convive com elas, as questões surgem. Não é algo que aparece na superfície. Esse cara que entrevistei, o Jack, disse que as relações nos apps não se dão no campo do afeto. Ninguém elogia seus olhos nem te convida pra sair e bater papo. Querem saber logo o tamanho do seu pau. Esse menino tem 22 anos e me disse que não tem confiança de ir a um bar gay e paquerar alguém. Ele cresceu em um ambiente em que toda a interação se dá por meio de seu telefone. E ele é um cara bonito. Só que ele não se vê assim.

Eu já li que as redes sociais em geral aumentaram a dificuldade de se relacionar ao vivo. E que alguns bares gays estavam fechando exatamente por isso…

Há uma discussão a esse respeito acontecendo agora em Londres. Muitos bares gays da cidade estão fechando. Neste ano apenas, três muito icônicos fecharam. O Bar Code, por exemplo, que funcionava havia 15 anos, fechou há poucas semanas. Outros dois no SoHo também fecharam, e muita gente culpa a cultura dos apps de pegação. Outros dizem que muita coisa mudou em termos de ser gay hoje em dia. LGBTs podem se casar, por exemplo, e, para alguns, as pessoas não precisam mais desses lugares para se encontrar. Eu acho que é uma combinação das duas coisas. Agora, os apps e a internet mudaram totalmente a maneira como as pessoas, gays ou héteros, interagem. Pois se nós temos o Grindr, eles têm o Tinder. São ótimas ferramentas, mas depende de como você usa. Se você pega uma pessoa que cresceu em um ambiente homofóbico e dá a ela um smartphone, por meio do qual ela tem acesso a milhares de pessoas que oferecem drogas e sexo quando ela quiser, é uma combinação perigosa. O indivíduo não está preparando para lidar com essas opções. Compare com os heterossexuais. Quando crescem, ou mesmo quando são crianças, eles têm uma paixonite um pelo outro e mandam flores. Os pais e professores acham bonitinho, fofo. Eles são encorajados a isso. O que não acontece com LGBTs. Se um menino leva flores a outro menino, ele provavelmente vai levar um soco na cara. Os professores chamam os pais e dizem que há um problema, enquanto a escola toda hostilizará essa criança. Então, os LGBTs não têm o mesmo desenvolvimento da afetividade que os héteros têm. Pegue gays da nossa geração, casa dos 35 ou 40 anos, com essas opções que um smartphone propicia, elas obviamente não irão querer navegar pelo mundo. E isso vira um problema e, para mim, é disso que se trata o chemsex.

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4 comentários

Marcio

O que vivemos atualmente, pelo menos aqui no Brasil, é o resultado de séculos de repressão e homofobia. Sim, a grande maioria de nós gays está sendo afetada por transtornos do humor. A comunidade LGBT reflete os problemas de todos os outros grupos sociais. Há racismo, machismo, obsessão pela forma física, padrões de beleza inatingíveis, solidão e muita crueldade. Tudo isto dentro ou fora dos apps de celular. Passei duas semanas e fui reduzido ao meu pênis! Tudo o que queriam era ver fotos do meu pau. Não há humanidade nos apps e nem nas festinhas de sexo cada vez mais comuns nas capitais brasileiras. Resultado: muita droga para anestesiar a dor de uma existência de pouco sentido e pouco afeto.

Tom

Parabéns pela entrevista, James. É tanta informação que é preciso reler outras vezes. Abraços.

Tom

Aqui no Brasil, o que eu vejo nos apps gays são expressões que giram em torno do uso de cocaína, o tal tekado. Isso anda bem comum. A gente sabe que alguns usam outros “aditivos”, mas assim explicitamente o “tekar” parece ser o mais comum.
Eu arriscaria achar que nós somos um pouco moralistas pra sairmos assumindo publicamente que gostamos de drogas assim. Basta ver que a grande maioria dos perfis em apps gays não tem foto de rosto. enquanto em lugares como Londres ou NYC e tantos outros vc vê a maioria dos rostos no perfil.

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