sexo, vício em sexo, viciados em sexo, psicoterapia, dependência de sexo

O conceito de “vício em sexo” não passa de uma fraude

Afirmar que comportamentos sexuais recorrentes vistos como problemáticos são equivalentes a dependências químicas não passa de tentativa de controlar a sexualidade e fugir da própria responsabilidade, afirma o terapeuta Marty Klein

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Marty Klein para o site TheHumanist.com

De tempos em tempos algum político, atleta ou artista famoso é pego de calças arriadas, danificando ou até mesmo destruindo sua reputação, carreira, e casamento. Em poucas horas meu e-mail começa a se encher de mensagens, conforme os abutres da mídia começam a sobrevoar a nova carcaça e clamam por minha opinião de especialista: Tiger Woods é viciado em sexo? Katharine Hepburn era? E quanto a Eliot Spitzer, David Duchovny, Charlie Sheen, John Edwards?

Os noticiários de TV a cabo não querem que experts tratem do assunto com seriedade – eles apenas buscam pessoas (Maury! Tyra! As mulheres no The View!) que digam, com a mistura correta de desprezo, ironia, seriedade, e absoluta confiança, que fulano de tal é um viciado em sexo.

O júbilo pela desgraça alheia torna-se quase palpável. O moralismo se traveste de simpatia. A indignação se disfarça de compreensão informada. De todos os lados, ouvimos um coro grego de vozes que atrelam os casos extraconjugais de alguém ao feminismo, à testosterona, à internet, ao sadomasoquismo, ao consumismo, ou até ao 11 de setembro. E então inevitavelmente disparam a artilharia pesada: “vício em sexo”.

Mais importante ainda, esses linchamentos públicos são a oportunidade que o público tem de condenar atos sexuais e ao mesmo tempo apreciá-los em suas fantasias. Todos adoram uma desculpa para sorrateiramente desfrutar o sexo proibido. A derrocada dos ricos e famosos é um bônus.

Quando o USA Today liga convidando para uma entrevista sobre as prostitutas de luxo de Eliot Spitzer, ou a CNN me envia um e-mail querendo minha opinião sobre as fotos que Antony Weiner tirou de seu pênis, eu costumo demorar para responder essas propostas macabras.

Eu não faço diagnósticos de pessoas que eu nunca encontrei. Ainda mais importante, eu não utilizo o diagnóstico de vício em sexo. Em trinta e um anos como um terapeuta sexual, conselheiro de casais, e psicoterapeuta, eu nunca encontrei um único viciado em sexo. Eu já ouvi sobre virtualmente todas as variações sexuais, obsessões, fantasias, traumas, e envolvimento com profissionais do sexo, mas jamais encontrei o vício em sexo.

Pacientes novos me contam o tempo todo como eles não conseguem deixar de fazer coisas sexuais  autodestrutivas; ainda assim, eu não vejo qualquer vício sexual. Ao invés disso, eu vejo pessoas que se arrependem das escolhas sexuais que fazem, na maior parte das vezes negando que essas são decisões que eles mesmos tomaram. Eu vejo pessoas que querem mudar, mas não querem abrir mão daquilo que faz com que se sintam vivos, ou jovens, ou amados, ou adequados; querem as vantagens da mudança, mas não querem deixar para trás aquilo que faz com que se sintam melhores ou mais sensuais ou mais safados que as outras pessoas. Mais importante que tudo, eu vejo pessoas que querem deixar de fazer aquilo que lhes torna mais poderosos, atraentes ou amados, mas como eles não querem deixar de se sentirem poderosos, atraentes ou amados, eles não conseguem colocar um ponto final no sexo que desajeitadamente criaram para gerar esses sentimentos.

O conflito a respeito do vício em sexo é importante para humanistas (aqueles que acreditam que o ser humano é o principal agente moral e ético, deixando as religiões em segundo plano) por vários motivos. “Vício em sexo” é uma arma especial que é utilizada hoje em dia pela direita religiosa para combater um dito liberalismo, ignorar a ciência, e inflamar medos. O termo também ajuda a legitimizar o moralismo contra o sexo e os preconceitos. Psicólogos, juízes, legisladores, e a mídia todos estão entrando nessa onda.

Quando as pessoas descrevem a si próprias ou a outras como “viciados em sexo”, sobre o que estão falando na verdade? Mais que tudo, trata-se de uma estrutura de caráter narcisista simples: o bom e velho “acho que eu pensei que ia conseguir me safar”, “bem no fundo, eu não acredito que as regras se aplicam a mim”, ou “quando eu sofro, eu quero algum alívio, e eu não me importo muito se eu quebro promessas ou magoo outras pessoas”.

Se isso se parece a qualquer pessoa normal – se isso se parece com você – não chega a ser surpreendente. Narcisismo é uma condição humana comum. Portanto aqui vai minha avaliação de quase todos que são diagnosticados como viciados em sexo – por si mesmos, por seus entes queridos, ou por um especialista em vícios: trata-se de alguém que está infeliz com as consequências de suas escolhas sexuais, mas que considera emocionalmente doloroso demais fazer escolhas diferentes. Você sabe, do mesmo jeito que alguns de nós somos com biscoitos, roupas novas, ou assistir reality shows.

Ou seja, a questão não é o sexo. A questão é tomar decisões sem maturidade.

O resto das pessoas que estão sofrendo sobre suas decisões sexuais em geral estão lutando contra um ou mais dos seguintes problemas: compulsão, impulsividade, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno bipolar, transtorno de personalidade limítrofe, ou transtorno de estresse pós-traumático. Algum tipo de reação a alguma medicação pode até ser um fator.

Quando as pessoas falam de vício em sexo, estão na verdade falando sobre todos esses transtornos, e outros. Quando alguém diz “sexualmente, eu estou fora de controle”, isso não nos diz muita coisa. Quando sabemos de alguém que tem um caso extraconjugal atrás de outro; ou que alguém se masturba tão frequentemente a ponto de causar dor; ou que alguém pressiona sua esposa constantemente para fazer sexo não se importando se o que quer é irreal (ela acabou de dar à luz, ela está resfriada, seus pais estão no quarto ao lado, eles acabaram de ter uma briga séria há poucas horas); ou que alguém está indo atrás de sexo anônimo em parques públicos de uma maneira que está praticamente implorando para ser preso e manchar sua carreira; ou que alguém assiste três horas de pornografia por noite; nós simplesmente não sabemos muito a respeito da pessoa.

Por outro lado, qualquer um que diz “sexualmente, eu estou fora de controle” é automaticamente bem-vindo na irmandade dos viciados em sexo – sem qualquer tentativa de se avaliar o estado mental da pessoa. Terapeutas sexuais geralmente não se distraem com a parte sexual das histórias de seus pacientes. Aqueles sem treinamento sobre sexualidade – como os supostos terapeutas de vício em sexo – muitas vezes passam muito tempo com isso.

Vamos examinar esse fenômeno cultural com mais detalhes.

A origem do “vício em sexo” NÃO ESTÁ na terapia sexual

O mais interessante sobre o movimento do vício em sexo – e certamente o mais revelador – é que ele não emergiu do campo da terapia sexual ou qualquer outro campo ligado à sexualidade. Na verdade ele foi iniciado em 1983 por Patrick Carnes, cuja formação é em aconselhamento educacional e desenvolvimento organizacional. Ele nunca afirmou ter qualquer treinamento na sexualidade humana.

“Vício em sexo” foi adotado com entusiasmo pela comunidade que lida com dependentes, e em grau menor por profissionais que lidam com casamento e família – esses últimos, historicamente mal treinados e desconfortáveis com a sexualidade. Você pode, por exemplo, conseguir a licença para fazer terapia de casais sem jamais ouvir as palavras vibrador, clitóris, tapas, beijo de língua, ou calcinha durante sua educação.

Quase trinta anos depois de ter sido inventado por Carnes, o “vício em sexo” ainda não se tornou um conceito popular nos campos da terapia sexual, educação sexual, ou pesquisa sexual. Claro que a mídia adora esse termo, os grupos que protegem a decência também, assim como aqueles que se identificam com algum outro tipo de dependência (álcool, comida, drogas), especialmente se são fãs do programa dos doze passos.

O teste

Mais uma vez, o que é “vício em sexo”? A principal ferramenta de avaliação (e praticamente tudo que você precisa saber sobre esse conceito) é o Sexual Addiction Screening Test (SAST – Teste de Avaliação de Dependência Sexual). Eu aconselho que todos façam o SAST (é muito fácil encontrá-lo em www.sexhelp.com – é só clicar no link “Am I a sex addict?”). A maioria das pessoas que não são viciadas em sexo ficam bastante surpresas quando descobrem como suas notas são altas nessa avaliação.

Uma porcentagem enorme do teste questiona sobre comportamentos não-normativos, e sobre ambivalência sobre sua sexualidade ou rejeição dela – sentimentos como culpa, vergonha, e remorso. Por exemplo:

  • Você compra pornografia ou livros românticos regularmente
  • Você tem envolvimentos românticos múltiplos
  • Você usa fantasias sexuais ou românticas como válvula de escape
  • Você participa regularmente em comportamentos S&M
  • Você se preocupa que seu comportamento sexual seja descoberto
  • Você se preocupa com seus pensamentos sexuais ou românticos
  • Você se preocupa que seu comportamento sexual não é normal
  • Seu parceiro reclama sobre seu comportamento sexual

Para a maior parte das pessoas, a resposta para ao menos algumas dessas questões é “claro – isso não é normal?”. E isso é parte do problema em se diagnosticar “vício em sexo” – muitos dos comportamentos e vivências sexuais são patologizadas.

O que o SAST realmente avalia é:

  • Você cresceu numa cultura negativa quanto ao sexo?
  • Sua sexualidade tem algum lado escuro?
  • Você tem questões sobre sexo ou sua sexualidade?
  • Você se sente 100% confortável com sua sexualidade?

Se as pessoas forem honestas suas respostas para as primeiras três perguntas vai ser “claro que sim” e a resposta para a última será “claro que não”. Mas quando alguém está ansioso sobre questões que não fazem mais que perguntar “eu sou normal?” ou tem um cônjuge  furioso, ou um interesse em erotismo não-normativo, e tem a negatividade sexual da religião ou da família soprando em seu ouvido, é fácil interpretar suas respostas no SAST (“sim, eu já me perguntei se minha sexualidade é mais forte que eu”; “sim, eu já escondi aspectos da minha sexualidade de outros” etc.) como indícios de uma doença mental.

O diagnóstico de dependência em sexo é em grande parte um diagnóstico do desconforto com a própria sexualidade, ou de estar em conflito com as definições culturais do que é sexo normal, ou batalhando com esse contraste. Uma cultura sexualmente negativa como a nossa faz com que esse tipo de desconforto e contraste se multipliquem. Chamar esses sintomas de vício em sexo omite por completo o papel que uma cultura sexualmente negativa tem ao moldar o sofrimento das pessoas com relação à própria sexualidade, que muitas vezes é canalizado em comportamentos repetitivos (em alguns casos insatisfatórios, em outros altamente prazerosos) que podem ser difíceis de desvendar.

Falta de critérios diagnósticos verdadeiros

Além de uma nota alta no teste SAST, como um profissional decide que alguém é um viciado em sexo?

Três décadas depois do termo ter sido cunhado, ainda não há um consenso quanto a sua definição. Não é surpreendente, no entanto, que não-profissionais estejam utilizando esse termo cada vez mais. A expressão “viciado em sexo” hoje é usada casualmente por psicólogos, personagens fictícios, advogados e quem quer se seja, podendo significar praticamente qualquer coisa, desde altos níveis de desejo até a níveis de agressividade chocantes, a estar preso num fetiche, a ser tarado, a estar envergonhado, a sentir-se ansioso. Simplesmente não tem significado real.

Há terapeutas dispostos a diagnosticar pessoas que eles nunca encontraram pessoalmente (como Tiger Woods). Da mesma maneira, mulheres com raiva ou amedrontadas estão diagnosticando seus maridos e mandando-os para terapia, muitas vezes dizendo “ou você se diagnostica como viciado em sexo e se trata, ou não volte pra casa, porque se você não fizer isso significa que você é um desgraçado egoísta.”

Como um diagnóstico psiquiátrico pode ter algum nível de sofisticação se (1) um profissional pode fazer o diagnóstico sem sequer encontrar a pessoa, e (2) leigos sem qualquer tipo de treinamento podem utilizar esse diagnóstico?

Na falta de estudos empíricos ou de alguma compreensão da complexidade (e das variações culturais) da sexualidade humana, especialistas em dependência tentaram definir um “transtorno” sexual tomando por base o modelo da dependência química. Consequentemente, falam de coisas como:

  • Preocupar-se ou ansiar por sexo persistentemente; querer diminuir e tentar limitar sem sucesso a atividade sexual.
  • Entrar em comportamentos sexuais continuamente apesar das consequências negativas, como relacionamentos desfeitos ou potenciais riscos à saúde.
  • Sentir-se irritado quando impossibilitado de realizar o comportamento desejado.

Não-critérios como esses assemelham-se ao próprio SAST – são ambíguos, enraizados em pressuposições do que é “normal”, e substituem avaliações rigorosas por julgamentos subjetivos.

Outra maneira de se conceptualizar o vício em sexo é como uma violação dos padrões morais de uma sociedade, juntamente da angústia de alguém quanto a essa violação. As pessoas não devem se masturbar demais, de acordo com as normas comuns; as pessoas não deveriam ter muito sexo indiscriminadamente; nem trair seu cônjuge; nem se envolver demais com pornografia, objetos, ou com pessoas com quem não há qualquer amor romântico que redima o sexo (como transas casuais ou profissionais do sexo). O conceito do vício em sexo ajuda a vigiar essas fronteiras morais arbitrárias.

Como tratar esse negócio?

Os programas de tratamento de dependência em heroína nunca sugerem que o dependente reduza para 3 ou 4 injeções por semana. “Você é um dependente, então você não pode nunca mais usar heroína – ou álcool” está bem mais próximo do que se espera.

O que acham de usar o mesmo modelo para tratar os viciados em sexo: “Você vai ter que parar de fazer sexo para sempre”, ou “Você nunca mais poderá se masturbar”. Não? Se o modelo funciona para os outros “vícios”, por que não para o sexo? Duas respostas vêm à mente: (1) não há muito rigor teórico no conceito de vício em sexo como um todo, e (2) o mercado para um plano de tratamento que mire na abstinência sexual completa é, digamos, bastante limitado.

Já é ruim que o modelo vago de saúde sexual ou sobriedade incentivado pelos Viciados em Sexo Anônimos (VSA) e Sexólatras Anônimos (SA) seja implacavelmente heterossexual, monogâmico e focado na penetração. A teoria não faz sentido, mas obviamente é um produto muito mais vendável que a abstinência. Ambos os programas adaptam o modelo dos Alcoólicos Anônimos de se pedir que os participantes reconheçam a falta de poder que têm sobre a dependência, e pedir que Deus remova suas faltas.

Não há dúvidas de que há muitas coisas úteis nos grupos de doze estágios para algumas pessoas.Os pontos fortes desse modelo se amplificam no caso do sexo, em que há tanta vergonha, tanto julgamento moral, e tanto isolamento autoimposto.  Quando alguém vai para o VSA ou o SA, você é bem-vindo não importa o que tenha feito. Claro que as pessoas adoram frequentar essas sessões – imagine que você está num dilema, ou você tem segredos, ou que seu cônjuge está com raiva de você, ou você se sente mal consigo mesmo, ou você não sabe se você é normal. De repente, surge um grupo que diz “Estamos tão felizes em vê-lo! Nós estávamos só esperando por VOCÊ!” Deve ser um alívio enorme; A gente quase se sente uma pessoa má por criticar isso.

Mas o encanto da vivência dos programas de doze passos não significa que esses grupos realmente curem (ou mesmo tratem) um problema que realmente existe.

Óbvio que há problemas legítimos por aí no que se trata de comportamento sexual. Há pessoas que têm um caso extraconjugal atrás do outro, aparentemente incapazes de deixar de magoar aqueles que amam. Há pessoas para quem o sexo sem perigo não traz qualquer tipo de excitação. Há pessoas que passam horas todas as noites na internet, digitando com uma mão, clicando de gostosona em gostosona. E há pessoas que não conseguem se afastar de salões de massagens, acompanhantes, clubes de strip e danças eróticas. Eles tentam, mas não conseguem.

Como psicoterapeuta, terapeuta sexual, e psicólogo de casais, eu vejo isso tudo em primeira mão. Eu pego os cacos no chão e ajudo as pessoas a reconstruírem suas vidas.

Eu apenas não vejo qualquer valor clínico no rótulo do vício em sexo, nem penso que é útil colocar todas as pessoas com dificuldades sexuais no mesmo saco dessa maneira. Eu também me ressinto da afirmação constante de que seu eu não conceptualizar que essas pessoas são dependentes de sexo, ou eu sou ignorante, ou eu não tenho compaixão. Quando médicos progressistas dos tempos coloniais se recusaram a diagnosticar seus pacientes como possuídos pelo demônio, isso não significava que eles não tinham compaixão. Eles apenas não acreditavam nesse diagnóstico.

É justo que perguntem como eu trato essas pessoas clinicamente. Eu o faço com psicoterapia e, ocasionalmente, com terapia sexual; medicação também pode ter um papel importante com alguns pacientes. Geralmente esse meu viés funciona bem.

Nova balela científica

Você deve ter observado que essa é a década do cérebro, em que muitos tentam encontrar explicações neurológicas para cada faceta das emoções, das motivações e dos comportamentos humanos.

Felizmente, “dependência em sexo” não estará presente na quinta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders da Associação Psiquiátrica Norte-americana, que descreve distúrbios mentais para uso clínico, para o sistema de justiça criminal, para a indústria de seguros e alunos de pós-graduação. A principal razão para essa exclusão é que não há consenso algum do que seria esse “distúrbio”, e não há quaisquer estudos científicos rigorosos que determinem as características ou trajetória dessa patologia.

Mas como era de se esperar, vários clínicos e pesquisadores estão tentando estabelecer a base científica para o vício em sexo – fazendo referência à neurologia e hormônios, medidos por exames cerebrais. Esses pesquisadores descobriram que quando os supostos dependentes de sexo estão envolvidos com sexo (por exemplo, quando assistem pornografia), a parte de seu cérebro que se acende (o caminho mesolímbico) é a mesma parte que se acende quando um dependente de heroína se injeta com heroína.

Uma prova cabal da dependência de sexo? De maneira alguma. Essa é a mesma parte do cérebro que se acende quando nós vemos um pôr-do-sol, a Golden Gate Bridge, um donut perfeito, uma jogada de futebol sublime, ou o sorriso de um neto. Nosso cérebro, nosso sangue, e nossos hormônios sempre reagem ao prazer – inclusive ao prazer sexual. Os últimos 150 mil anos de evolução tiveram pelo menos esse efeito em nós, pobres humanos.

A última aposta na ligação entre o vício em sexo e a química cerebral é a nova balela científica do “vício em pornografia”. Uma proponente primária, Judith Reisman (que também argumenta que Alfred Kinsey era uma fraude e um pedófilo) faz referência a “erotoxinas” venenosas que são lançadas na corrente sanguínea quando se assiste material pornográfico. Outra proponente, Marnia Robinson, argumenta que os cérebros dos adolescentes são tão influenciáveis que garotos tornam-se facilmente viciados em pornografia, o que consequentemente causaria danos a suas capacidades de funcionar sexualmente com parceiros sexuais de verdade. Não há qualquer fiapo de evidência que possa apoiar o julgamento de Reisman ou de Robinson sobre como as pessoas tornam-se viciadas pela química de seu próprio corpo quando essas substâncias químicas estão ligadas ao sexo e não a, digamos, uma caminhada no parque ou uma encenação de Rei Lear.

Os cruzados do vício em sexo e vício em pornografia reclamam que a pornografia é uma educação sexual terrível. Eu concordo, assim como assistir a uma perseguição de carro num filme de ação é uma maneira terrível de se aprender a dirigir.

Por que importa qual é o nome que se dá a isso

Quando se responde a perguntas como “Vício em sexo existe mesmo?” e “Como deveríamos conceptualizar um comportamento sexual que parece ou dá a sensação de estar fora de controle?”, fico pasmo pela quantidade de profissionais que descambam para a resposta “Que diferença faz como que nome se dá a isso? O objetivo é auxiliar essas pobres pessoas”.

Quando a homossexualidade era chamada de doença mental, fazia diferença. Quando mulheres eram chamadas de frígidas ou ninfomaníacas ou histéricas, fazia diferença. Quando um paciente é diagnosticado como possuído pelo demônio ao invés de esquizofrênico faz uma diferença gritante: isso determina o tratamento que será utilizado, e quem é qualificado para administrar esse tratamento. Como é que pessoas que vivem de utilizar as palavras podem dizer que não faz diferença que nome se dá a algo?

O nome que se dá a isso também faz diferença porque o modelo da sexualidade é construído dentro do modelo da doença. No transtorno obsessivo-compulsivo, nós não dizemos que o problema é lavar as mãos, e nós não enviamos as pessoas para clínicas de lavadores de mãos. Mas no vício em sexo, o problema é o sexo, e as pessoas são enviadas para clínicas para viciados em sexo.

Finalmente, faz diferença porque chamar esse comportamento de “dependência” valida a ideia de que essas pessoas estão fora de controle. Ao invés disso, nós precisamos dizer que sentir-se fora de controle não é a mesma coisa que estar fora de controle. A maioria dos “viciados em sexo” não gostam das consequências de suas escolhas sexuais, mas continuam a fazer essas escolhas. Nós temos um termo para esse padrão de comportamento: neurose; e nós temos um tratamento para isso: psicoterapia (às vezes, com o apoio de medicamentos). O modelo do vício começa com “nós admitimos que não temos poder”. O modelo da terapia começa com “você é responsável por suas escolhas; eu me pergunto por que você continua a fazer aquilo que você diz que não quer fazer?”

O que isso significa para os humanistas

  • O movimento do vício em sexo explora os medos que as pessoas têm de sua própria sexualidade. Como humanistas nós nos opomos a qualquer coisa que explora o medo.
  • Quando nos lembramos que o conceito de vício em sexo é bastante recente, nós podemos observar o contexto histórico e cultural de onde emergiu esse movimento – não de um contexto sexológico mas sim de uma narrativa sobre medo, perigo, falta de poder, e vitimização.
  • O modelo do vício em sexo inevitavelmente nos diz que o eroticismo precisa ser controlado, e que produtos eróticos e sexo comercial são problemáticos e perigosos. Isso significa que o movimento do vício em sexo, com o auxílio da direita religiosa, apoia políticas públicas que se concentram no controle da sexualidade. Infelizmente eles têm tido bastante sucesso.
  • O modelo do vício em sexo nos diz que a imaginação não tem qualquer papel saudável a exercer na sexualidade. Essa falta de compreensão fundamental da natureza humana nos concerne, e muito.

A questão de que nome se dá a comportamento sexual que é descrito como estando fora de controle é importante não apenas para a sociedade em geral, mas para os humanistas em particular. Conforme o movimento de vício em sexo trivializa a ciência como se fosse apenas uma de várias perspectivas diferentes, isso nos afeta. Conforme ele tenta espremer as pessoas dentro de pequenas caixas de comportamento sexual normativo, isso é relevante a nossa causa. E conforme isso patologiza comportamentos que não ferem outras pessoas, é um exemplo primário de algo que poderia ser substituído por uma política pública humanista.

Dr. Marty Klein é um psicoterapeuta licenciado, terapeuta sexual certificado, e palestrante internacional sobre sexualidade e políticas públicas. Ele já foi testemunha especialista em numerosos casos estaduais e federais sobre obscenidade e contra censura. Seu livro premiado, America’s War On Sex (A Guerra dos Estados Unidos Contra o Sexo) tem um prefácio por Nadine Strossen, da ACLU; seu livro mais recente é Sexual Intelligence. Seu website é www.SexEd.org.

Apoie o Lado Bi!

Este é um site independente, e contribuições como a sua tornam nossa existência possível!

Doação única

Doação mensal:

7 comentários

Phoenix Jr

Existem vícios de vários tipos, e alguns talvez sejam apenas maus hábitos (não é fácil abandonar péssimos hábitos, senão não se tratava de hábitos, são como os vícios). Os piores vícios ou hábitos (ou seja lá o que for, parecido com isto) são aqueles que conduz uma pessoa a criar sérios conflitos com outra(s) pessoa(s). É a minha visão neste momento. Eu sou um tipo de pessoas que quem me conhece pensa que não tenho vício algum. Nem sequer tomo cerveja, e tampouco fumo qualquer porcaria. E não, não sou viciado em sexo, e nem mesmo em pornografia (eu achava que era, mas depois que vi como os viciados são, aí entendi que eu estava bem melhor rsrss). Eu reconheço que tenho pelo menos um vício, nada tão grave (mas muitos hábitos ruins, embora pequenos, podem causar irritação nos outros). E meu vício é incomum: sou viciado em colecionar imagens> fotos, filmes, desenhos. Muitas vezes evito folhear uma revista só por causa disto. Eu sei que é estranho, mas é real: pareço estar programado para isto. Meu poder de escolha vai até certo ponto e, depois disto… nem sei como explicar.

“Reprogramar a mente é bem mais difícil do que programá-la.”

Phoenix Jr

Ao meu ver, Marty Klein fez uma afirmação muito direta e vaga, sem nenhuma certeza, visto que hoje já temos inúmeras evidências de que o vício sexual é sim uma realidade (qualquer filósofo ou mesmo estudante atento vê isto, e reconhece a situação por experiência própria). O pior é que enquanto há profissionais defendendo que esse vício não existe (ou seja lá o que for isto), o vício segue aumentando a cada dia que passa, especialmente em pessoas que não sabem ou que duvidam disso. E quem já foi viciado e se recuperou sabe muito bem disto. Quando afirma simplesmente que “vício sexual” é só uma tentativa de controlar a sexualidade e fugir da própria responsabilidade, ele parece estar se esquecendo que isto não se trata só de crença, mas de evidência e experiência negativa, vivenciada por muita gente. Além disto, todos sabemos que o vício normalmente torna o viciado relutante a ir na contramão do vício, logo, é provável que o próprio psicoterapeuta seja um viciado tentando defender muito mais seus próprios interesses. É por isso que eu fala para as pessoas: leie, leie, leie, investigue, pesquise, conheça, questione, e viva, e sofra. E então conseguirá refletir e meditar mais até mesmo do que muitos doutores por aí, que muito provavelmente estão sim ajudando a disseminar mentiras na cabeça do povo, induzindo-o a péssimos comportamentos, muitas vezes sem ao menos se darem conta disto (não mentem porque querem, mas porque não estão preparados para evitar AFIRMAÇÕES incertas), graças à sua limitação de fazer afirmações generalizadas numa ciência que nem é exata. Qualquer um desses doutores perdem a minha confiança. A questão é: O que é o vício? O que é o mal hábito?
Sinto tanto pena quanto raiva (sinceramente) das pessoas que olham só um lado da moeda, que só dão atenção para gente que pensa como Marty Klein.

Cláudio Nélio

Ótimo artigo!
Porém discordo com o fato de seu autor pensar que o vício sexual é uma mentira.
Se a área sexual não é uma de suas fraquezas, que ele continue assim.
Comida, sexo, jogos de azar, drogas, comprar compulsivamente, mentir, roubar, matar, etc… são vícios.
Se você não tem um, tem outro.
Todos mexem com o lado psicoemocional do indivíduo (fisiológico, inconsciente, bioquímica).
Minha opinião. ????

Phoenix Jr

Amigo, você está longe de ser o único que pensa assim. Eu penso praticamente o mesmo, e nunca tinha te consultado. Coincidência? Bom… por que não verdade? Eu sou um tipo de pessoa que parece não ter nenhum vício, e eu concordo contigo sobre o que escreveu, porque eu não olho só para a minha natureza e para os meus comportamentos, mas procuro observar para a natura humana, suas causa e consequências de forma geral.
😉

Phoenix Jr

Depois que li no seu comentário, “que todos mexem com o lado psicoemocional do indivíduo (fisiológico, inconsciente, bioquímica)”, me interessei pelo linguajar técnico e imaginei que eu devo ler mais sobre isto para entender a coisa melhor.. Pode me ajudar? É que em 2015 aconteceu uma coisa muito estranha comigo – eu nem parecia ser eu, mas era eu mesmo, nem sei explicar agora (longa estória sobre crença (existe até vício por crença religiosa!), depressão profunda, alta sensibilidade, propensão à depressão e “necessidade doentia”), e desde então aconteceu que desenvolvi uma certa paixão pelo assunto da natureza humana, de assuntos diretamente ligados à psicologia, e alguns tabus sociais – prováveis verdades q quase todos querem duvidar. Claro que a questão de “vício sexual” não ficou de fora (coloquei entre aspas porque já vi a ideia expressa em outras palavras). Como eu tenho mania d viver fazendo anotações – eu praticamente escrevo um diário – então decidi que podia escrever um livro sobre o tema “relacionamento”, no qual tenho a oportunidade de contar o que sei (e creio) sobre natureza humana. O livro é do tipo que conta uma estória real e a a partir dela, reflete com base nos fatos observados da vida real, que se repetem todos os dias com várias pessoas. Parei de escrever para fazer pesquisas relacionadas ao que eu vivenciei, e aconteceu q cheguei numa conclusão assustadora: prece ser bem provável que o ser humano seja programado para fazer o que faz (às vezes até pra pensar como pensa), e o programa varia de pessoa para pessoa, conforme a natureza, o ambiente e a experiência de cada um. É meio complexo e polêmico falar sobre isto, porque a programação (e tb a reprogramação) que muito provavelmente existe na máquina ser humano funciona de uma forma diferente do tipo de programação que funciona na máquina que chamamos de computador (pcs, notebooks, iphone, celulares androids, robôs industriais, robôs humanóides, etc). Os nossos sentimentos e emoções por exemplo podem ser variáveis de um programa mental.

Comments are closed.