Nazista que tentou “curar” gays vira tema de documentário argentino

“O Triângulo Rosa” conta a história do médico dinamarquês Carl Vaernet, um nazista que após o fim da 2ª Guerra fugiu para a Argentina

por James Cimino

Quando se diz que tentar “curar” um gay ou uma lésbica de sua homossexualidade é uma atitude nazista, não se trata apenas de “força de expressão” como quer justificar o fundamentalismo religioso. Além de este tipo de orientação não estar mais na classificação internacional de doenças da OMS (Organização Mundial de Saúde)* e, portanto, ser conceitualmente impossível de se curar algo que não é considerado doença, há bases históricas para que se faça um paralelo entre “cura gay” e nazismo.

O repórter Felipe Gutierrez, correspondente do jornal Folha de S.Paulo em Buenos Aires escreveu uma reportagem sobre um documentário que está em cartaz na Argentina chamado “O Triângulo Rosa e a Cura Nazi para a Homossexualidade”.

O filme conta a história de um nazista que buscou uma “cura” para a homossexualidade por meio de experimentos feitos em homens gays no campo de concentração de Buchenwald (na Alemanha). Carl Vaernet, o nazista em questão, era um médico dinamarquês que, no momento em que a Alemanha anexou a Dinamarca a seu território, tornou-se nazista, segundo conta um de seus descendentes no trailer no filme.

Quando o Eixo foi derrotado, ele integrou um grupo de nazistas que fugiram de seus julgamentos na Europa para a América do Sul. Grande parte dessas pessoas foi acolhida na Argentina (o que rendeu ao país platino a alcunha de “recanto para nazistas aposentados em um atlas satírico do grupo “The Onion”).

O repórter da Folha entrevistou o militante LGBT Peter Tatchell, que, na década de 1990, pressionou o governo dinamarquês a abrir os documentos sobre o médico. “[Heinrich] Himmler autorizou a pesquisa de Vaernet e demandou ‘o extermínio de existência anormal’”, contou.

De acordo com Tatchell, os nazistas perseguiram homossexuais por entender que qays eram traidores do ideal ariano masculino. Além disso, temiam que a homossexualidade poderia causar um “dano” demográfico. “Os nazistas descreviam os gays como ‘sabotadores sexuais’”, explica Tatchell. “Eles pensavam que a homossexualidade enfraquecia o Terceiro Reich, que precisava aumentar a população alemã para criar um exército e uma força de trabalho cada vez maior para conquistar a Europa”, diz.

Alguma semelhança com o discurso de Silas Malafaia de que o casamento igualitário faria os heterossexuais “desaparecerem”?

As “técnicas de cura”

A reportagem de Felipe Gutierrez conta como era aplicada a suposta “cura” durante as experiências de Vaernet. O “tratamento” consistia em dar testosterona aos pacientes. O nazista desenvolveu uma cápsula que liberava o hormônio aos poucos (uma espécie de glándula artificial), que ele inseria cirurgicamente nas pessoas. De tempos em tempos, ele abria novamente os “pacientes” para trocar o aparato. Segundo Tatchell, trata-se do único caso conhecido de experimentos feitos em gays detidos em campos de concentração.

Um dos diretores do documentário “Triângulo Rosa”, o argentino Esteban Jasper, afirmou que cerca de 20 homens foram submetidos aos experimentos, e que três morreram por causa das operações para inserir a “glândula” artificial.

Rudolf Brazda, o último sobrevivente do grupo do triângulo rosa

Rudolf Brazda, o último sobrevivente do grupo do triângulo rosa

“Ele não era um cientista com todas as letras”, afirma Jasper. Inicialmente, Vaernet não fazia pesquisa. Ele tinha uma clínica em Copenhagen, mas sua ligação com o nazismo o tornou alvo da resistência dinamarquesa. Ele viajou para a Alemanha e, com seus contatos, conseguiu trabalho em hospitais do país e acesso aos presos em campos de concentração, a quem usou como cobaias.

Logo depois da derrota do Eixo, Vaernet voltou à Dinamarca. “Ele foi preso logo, mas pouco depois enganou as autoridades dizendo que tinha uma doença séria que tinha que ser tratada na Suécia. E de lá foi para a Argentina” relata Jakob Rubin, que escreveu um livro sobre o nazista.

O médico chegou em Buenos Aires em 1947, e conseguiu um emprego no Ministério da Saúde da Argentina.

Segundo Rubin, Vaernet ainda teve uma clínica em Buenos Aires. Não se sabe, porém, se ele voltou a procurar a “cura” para a homossexualidade na Argentina.

O último sobrevivente

O triângulo rosa era a forma que os nazistas usaram para distinguir homossexuais dos outros prisioneiros nos campos de concentração. Encontrei no Youtube um vídeo mostrando a história de Rudolf Brazda, o último sobrevivente gay do campo de concentração contando parte do que foram os três anos em que foi prisioneiro em Buchenwald.

Quando ele morreu, em 5 de agosto de 2011, o jornal “The New York Times” fez seu obituário. No vídeo abaixo, legendado em espanhol e em inglês, é possível vê-lo falando como conseguiu sobreviver e do encontro com Edouard Mayer, seu parceiro até 2003, quando Mayer morreu.

Esta história destroi não apenas o mito de que homossexualidade (e também transsexualidade) são passíveis de cura, mas o mito de que em relações LGBTs não há amor ou longevidade.

*A transsexualidade, infelizmente, ainda é catalogada como doença pela OMS.

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Um comentário

Aldo

Ótima reportagem, culturalmente enriquecedora! A longevidade de qualquer relação, gay ou ht, depende mais do mundo interior dos parceiros, do que do mundo exterior. Infelizmente, no caso do gays, a homofobia internalizada é ‘um’ dos fatores que ceifam a longevidade das relações.

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