Quando se diz que tentar “curar” um gay ou uma lésbica de sua homossexualidade é uma atitude nazista, não se trata apenas de “força de expressão” como quer justificar o fundamentalismo religioso. Além de este tipo de orientação não estar mais na classificação internacional de doenças da OMS (Organização Mundial de Saúde)* e, portanto, ser conceitualmente impossível de se curar algo que não é considerado doença, há bases históricas para que se faça um paralelo entre “cura gay” e nazismo.
O repórter Felipe Gutierrez, correspondente do jornal Folha de S.Paulo em Buenos Aires escreveu uma reportagem sobre um documentário que está em cartaz na Argentina chamado “O Triângulo Rosa e a Cura Nazi para a Homossexualidade”.
O filme conta a história de um nazista que buscou uma “cura” para a homossexualidade por meio de experimentos feitos em homens gays no campo de concentração de Buchenwald (na Alemanha). Carl Vaernet, o nazista em questão, era um médico dinamarquês que, no momento em que a Alemanha anexou a Dinamarca a seu território, tornou-se nazista, segundo conta um de seus descendentes no trailer no filme.
Quando o Eixo foi derrotado, ele integrou um grupo de nazistas que fugiram de seus julgamentos na Europa para a América do Sul. Grande parte dessas pessoas foi acolhida na Argentina (o que rendeu ao país platino a alcunha de “recanto para nazistas aposentados em um atlas satírico do grupo “The Onion”).
O repórter da Folha entrevistou o militante LGBT Peter Tatchell, que, na década de 1990, pressionou o governo dinamarquês a abrir os documentos sobre o médico. “[Heinrich] Himmler autorizou a pesquisa de Vaernet e demandou ‘o extermínio de existência anormal’”, contou.
De acordo com Tatchell, os nazistas perseguiram homossexuais por entender que qays eram traidores do ideal ariano masculino. Além disso, temiam que a homossexualidade poderia causar um “dano” demográfico. “Os nazistas descreviam os gays como ‘sabotadores sexuais’”, explica Tatchell. “Eles pensavam que a homossexualidade enfraquecia o Terceiro Reich, que precisava aumentar a população alemã para criar um exército e uma força de trabalho cada vez maior para conquistar a Europa”, diz.
As “técnicas de cura”
A reportagem de Felipe Gutierrez conta como era aplicada a suposta “cura” durante as experiências de Vaernet. O “tratamento” consistia em dar testosterona aos pacientes. O nazista desenvolveu uma cápsula que liberava o hormônio aos poucos (uma espécie de glándula artificial), que ele inseria cirurgicamente nas pessoas. De tempos em tempos, ele abria novamente os “pacientes” para trocar o aparato. Segundo Tatchell, trata-se do único caso conhecido de experimentos feitos em gays detidos em campos de concentração.
Um dos diretores do documentário “Triângulo Rosa”, o argentino Esteban Jasper, afirmou que cerca de 20 homens foram submetidos aos experimentos, e que três morreram por causa das operações para inserir a “glândula” artificial.
“Ele não era um cientista com todas as letras”, afirma Jasper. Inicialmente, Vaernet não fazia pesquisa. Ele tinha uma clínica em Copenhagen, mas sua ligação com o nazismo o tornou alvo da resistência dinamarquesa. Ele viajou para a Alemanha e, com seus contatos, conseguiu trabalho em hospitais do país e acesso aos presos em campos de concentração, a quem usou como cobaias.
Logo depois da derrota do Eixo, Vaernet voltou à Dinamarca. “Ele foi preso logo, mas pouco depois enganou as autoridades dizendo que tinha uma doença séria que tinha que ser tratada na Suécia. E de lá foi para a Argentina” relata Jakob Rubin, que escreveu um livro sobre o nazista.
O médico chegou em Buenos Aires em 1947, e conseguiu um emprego no Ministério da Saúde da Argentina.
Segundo Rubin, Vaernet ainda teve uma clínica em Buenos Aires. Não se sabe, porém, se ele voltou a procurar a “cura” para a homossexualidade na Argentina.
O último sobrevivente
O triângulo rosa era a forma que os nazistas usaram para distinguir homossexuais dos outros prisioneiros nos campos de concentração. Encontrei no Youtube um vídeo mostrando a história de Rudolf Brazda, o último sobrevivente gay do campo de concentração contando parte do que foram os três anos em que foi prisioneiro em Buchenwald.
Quando ele morreu, em 5 de agosto de 2011, o jornal “The New York Times” fez seu obituário. No vídeo abaixo, legendado em espanhol e em inglês, é possível vê-lo falando como conseguiu sobreviver e do encontro com Edouard Mayer, seu parceiro até 2003, quando Mayer morreu.
Esta história destroi não apenas o mito de que homossexualidade (e também transsexualidade) são passíveis de cura, mas o mito de que em relações LGBTs não há amor ou longevidade.
*A transsexualidade, infelizmente, ainda é catalogada como doença pela OMS.
Ótima reportagem, culturalmente enriquecedora! A longevidade de qualquer relação, gay ou ht, depende mais do mundo interior dos parceiros, do que do mundo exterior. Infelizmente, no caso do gays, a homofobia internalizada é ‘um’ dos fatores que ceifam a longevidade das relações.