Designer imagina o retorno de Jesus na São Paulo contemporânea

O projeto “Hostilizado”, de Douglas Téo, situa a agonia de Cristo nas ruas: “É uma tentativa de fortalecimento da compaixão”. O livro do ensaio busca financiamento coletivo

por Marcio Caparica

Um dos passatempos preferidos dos religiosos fundamentalistas é imaginar o retorno de Jesus Cristo à Terra e, supõem eles, a subsequente punição eterna de todos que não compartilham de sua visão de mundo. Na primeira vez em que Jesus esteve vivo, no entanto, ele preferiu a companhia dos marginais de seu tempo à dos poderosos. Num eventual retorno ao convívio entre os pecadores, não seria de se esperar que ele seguisse a mesma atitude? E, nesse caso, como o tratariam tantos que hoje utilizam seu nome para justificar suas ambições, preconceitos e ódios?

Esse cenário é explorado no projeto Hostilizado, concebido pelo designer Douglas Téo. Com fotos de André Nunez e tendo o próprio Téo como modelo, essa série de três ensaios mostra Jesus sendo agredido e desprezado enquanto perambula pelas ruas de São Paulo, tendo por única companhia os sem-teto que sobrevivem na metrópole. Ele quer propor “uma reflexão sobre a fé e a coerência entre o que se prega e o que se faz no exercício da religiosidade, nos levando a um questionamento inevitável de consciência e da relação que estabelecemos com os inúmeros ‘Jesus’ anônimos da nossa cidade.”

O projeto está em busca de financiamento coletivo para se transformar num livro de arte, aceitando contribuições até o início de janeiro. Ao longo dos cinco anos em que desenvolveu Hostilizado, Douglas Téo percorreu as ruas de São Paulo vestido como indigente para sentir na pele a agressividade com que a cidade trata a população de rua. LADO BI conversou com o artista por e-mail para descobrir mais sobre sua visão de Jesus e sua relação com as questões contemporâneas.

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LADO BI Por que reinterpretar Jesus?

DOUGLAS TÉO A ideia do projeto nasceu de uma crise existencial e um desacordo com determinadas incoerências que eu assistia, esporadicamente, tendo alguns religiosos como protagonistas. Uma apropriação da palavra de Jesus (ou da palavra que eles dizem ser de Jesus) que não se conecta com as próprias atitudes. Uma certa revolta em perceber a força do julgamento de alguns fiéis e líderes religiosos sobre minorias ou qualquer um que não se encaixe com a teoria de sua doutrina. Aqueles exemplos corriqueiros, como pregar o amor ao próximo e, em paralelo, estimular a homofobia, a agressão contra a livre expressão da própria natureza… Claro, inúmeras questões além dessas que, no fim, vão tecendo uma trama de incoerências e conveniências. Isso me levou a imaginar como Jesus seria recebido, caso realmente voltasse. A essência do projeto foi sugerir ele voltando sem nada, sem a capacidade de fazer milagres e encontrando as portas da própria casa fechadas para ele: uma analogia que reflete essa desconexão entre discurso e atitude.

Por que seu projeto se concentra no sofrimento de Cristo? Os exemplos construtivos dele não surtem mais efeito?

O sofrimento de Cristo, nesse caso, é uma denúncia sobre nosso próprio sofrimento e sobre o sofrimento que, mesmo indiretamente, alimentamos nos outros. A dureza que a condição do nosso tempo imprimiu em nosso ser – de tudo ser tão rápido e tão egocêntrico – e que fez com que não tivéssemos tempo de nos importar. Os exemplos construtivos de Cristo, infelizmente, se tornaram clichês comerciais, seja como apelo de venda utilizado por marcas em épocas sazonais, ou como promessa de salvação feita por igrejas. Tornou-se um produto. Precisamos nos sensibilizar novamente, olhar pra dentro e pro lado, para poder reconstruir esse mundo e ressignificá-lo. Talvez seja apenas por meio de choques conceituais que iremos sair do piloto automático e nos reintegraremos com o mundo, que é algo bem mais complexo que nossas rotinas.

Ao longos dos últimos 2000 anos, a figura de Jesus Cristo já foi apropriada por todos os tipos de grupos para divulgar as mensagens mais conflitantes entre si. Qual é a mensagem que você pretende transmitir com seu projeto?

A figura de Cristo, nesse caso, é um reflexo de uma condição social, uma denúncia de milhares de pessoas que vivem à margem da sociedade buscando uma chance de sentirem menos dor, de existirem, de saírem da invisibilidade. A mensagem central é um exercício reflexivo de coerência, de lutar contra a hipocrisia que se constrói de maneira camuflada, sem a gente perceber, mas que está lá, separando as pessoas, estabelecendo privilégios para alguns e, consequentemente, desenhando o inferno de outros. É uma tentativa de fortalecimento da compaixão.

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Existe similaridade entre a maneira como seu Jesus sofre pelas ruas de São Paulo e a violência que vitima tantos LGBTs nas mesmas ruas todos os dias?

Há similaridade, sem dúvida. Quando falamos de sofrimento, não nos limitamos a uma questão física, mas também, existencial, de encontrar um lugar no mundo, de nos sentirmos acolhidos sendo o que somos. Esse Jesus, morador de rua, deslocado e hostilizado pela metrópole, esboça esse sentimento de inadequação que milhares de pessoas experimentam todos os dias, um sentimento cruel de não pertencer, de achar que não existe lugar nesse mundo para si.

Como sua própria sexualidade influencia o projeto Hostilizado?

Minha sexualidade foi crucial na construção das subjetividades do projeto. Sou gay e já fui agredido, inúmeras vezes, por simplesmente ser algo que não escolhi ser, por seguir a minha natureza, pois é assim que me entendo. Esse medo do julgamento do outro, de não ser aceito ou de ter que se encaixar em valores que determinam se você é alguém respeitável ou amável ou de sucesso, norteou meu engajamento com a ideia central do projeto. Foi quase um exorcismo.

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Ao mesmo tempo que seu projeto tenta colocar JC nos dias contemporâneos, ele se esforça para se aproximar o máximo possível da iconografia tradicional de Cristo quando se trata da figura do próprio. Que tipo de pesquisa você fez para compor o visual, e que a que preparação você se submeteu para poder incorporar esse papel?

Eu tentei conectar o Jesus do meu projeto com o imaginário coletivo, para que houvesse uma identificação imediata, mas sem cair em alguns clichês como a coroa de espinhos ou o vestido, mas também, sem abandonar completamente o que o torna identificável. Para isso, precisei passar por um processo bastante pessoal de preparo e pesquisa. Foi cerca de um ano de pré-produção. Passei por uma imersão com moradores de rua para entender nuances de sua condição, também me caracterizei como morador de rua e saí tentando entender os olhares e a relação das pessoas com quem está à margem. Isso foi impressionante. Não foi um número expressivo de interações, como uma pesquisa formal sugere, mas as que aconteceram tiveram imapcto direto no projeto. Pesquisei a imagem de Cristo ao longo dos séculos e analisei muitas obras sacras, tanto pinturas quanto esculturas, para poder extrair a dramaticidade gestual e construir uma linguagem corporal para os ensaios. Caravaggio é influência de luz no primeiro ensaio, por exemplo. Além disso, emagreci cerca de 10kg, deixei cabelo e barba crescerem e fui atrás de conseguir uma equipe que trabalhasse acreditando na essência reflexiva do projeto, pois não contei com nenhum recurso financeiro para produzi-lo. Foi uma provação atrás da outra. Inúmeras situações me estimularam a desistir, tanto que levei mais de cinco anos para começar a expor as imagens. Precisei ter muita persistência e batalhar duro para trazer o projeto até aqui. A própria tentativa de financiá-lo por meio de financiamento coletivo é reflexo dessa condição.

O fundamentalismo cristão tenta agarrar cada vez mais poder nesse país. O que você acha que Bolsonaros, Malafaias e Felicianos fariam com seu Jesus?

Eu acho uma vergonha termos que enfrentar discursos de ódio tão contundentes e tantos onflitos ideológicos, considerando que nosso estado é teoricamente laico. Essas figuras, no meu ponto de vista, representam um retrocesso, uma tentativa de achatar a luminosidade que a diversidade traz para o mundo, são um golpe contra tudo que existe de mais brilhante nas pessoas e a construção das mais diversas expressões culturais. São uma tentativa de controle por meio de uma promessa mal feita de vida eterna e relação com o divino. O projeto, nesse sentido, bate de frente com a incoerência desses caras e tenta, de alguma forma, estimular o senso crítico de algumas pessoas que seguem amortecidas no caminho que vem sendo trilhado por eles. Na minha opinião, eles encontrariam um jeito de fazer esse Jesus hostilizado conferir poder a eles, de distorcer sua verdade para ampliar esse controle sobre uma massa menos pensante.

Contribua para a campanha de financiamento coletivo de Hostilizado no site Startando

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4 comentários

Thiago

Eu acho legal a fotografia, o enredo etc. Mas acho que ele não leu a bíblia e nem sabe sobre o retorno. Jesus voltará em um corpo glorioso, como um rei. E não como um mendigo de rua. Que é o que mais parece este ensaio. Não gostei da imagem que este garoto fez de Jesus. Ele veio para redimir os pecados dos humanos e na sua segunda vinda arrebatará a igreja e milhoes de seres humanos. Isto que eu nem sou muito fanático por religião. Enfim. É apenas minha opinião. Jesus voltará como o rei dos reis.

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