E se Jesus fosse transexual? Entrevista exclusiva com Jo Clifford

A dramaturga britânica conta por que escreveu “Jesus, a rainha do céu”, explica como ser trans ajuda a artista, celebra o poder conscientizador do teatro e critica as instituições religiosas: "ao rejeitarem LGBTs, as igrejas perdem uma fonte inestimável de força"

por Marcio Caparica

Jo Clifford é uma contadora de histórias. Faça-lhe qualquer pergunta, e a resposta virá junto de um caso, uma anedota, uma memória – e das boas. Não é à toa que, em seu site, a dramaturga conte com mais de 80 obras em seu currículo, entre peças originais e adaptações.

Mas foi com seu monólogo O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu, levada aos palcos pela primeira vez em 2009, que Clifford viu-se de repente no centro de uma polêmica. A peça imagina o que aconteceria se Jesus voltasse à Terra como uma mulher trans – e convida a todos os presentes a imaginarem um mundo mais tolerante e mais igualitário. A mensagem de amor foi considerada uma “blasfêmia” por fundamentalistas religiosos; a atriz chegou para a estreia de sua peça e encontrou o teatro cercado por 300 pessoas que agitavam placas com dizeres como “Deus: meu filho não é pervertido!” e “Jesus, rei dos reis, não rainha do céu”.

Desde então a obra vem amealhando fãs e detratores; o saldo, felizmente, é positivo. Tanto que O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu já ganhou tradução em português, e terá montagem brasileira, dirigida por Natalia Mallo, com a atriz trans Renata Carvalho no papel de Jesus. Por iniciativa do British Council, Jo Clifford veio para o Brasil no começo de maio para colaborar na adaptação para o português de sua peça, ministrar workshops de dramaturgia e encenar O Evangelho no Festival Internacional de Teatro, Palco & Rua de Belo Horizonte (confira o serviço completo no final da matéria).

Durante sua passagem por São Paulo, Clifford conversou por meia hora com o LADO BI. Com uma presença que só pode ser descrita como radiante, a escritora conversou sobre a repercussão de seu trabalho, defendeu que atrizes trans tenham preferência para papéis de personagens trans e explicou como sua transexualidade fez com que se tornasse uma autora melhor.

LADO BI: Você esperava que houvesse tanta controvérsia a respeito de O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu?

JO CLIFFORD: Não mesmo, de forma alguma! Eu fiquei surpresa e horrorizada, morri de medo. Imagina só, você chega na primeira noite para apresentar sua peça e a rua está tomada por pessoas que te odeiam! E ninguém tinha sequer a tinha assistido.

Como surgiu a ideia para escrever essa peça?

Essa história começa lá atrás… Em 1991 eu queria escrever sobre ser transexual. Ninguém jamais havia escrito algo do tipo! Eu escrevi algumas peças, o que foi um grande erro, profissionalmente – ninguém queria encená-las, e de repente eu me vi excluída da profissão, ninguém mais encomendava peças minhas. Eu tive que arranjar um emprego dando aulas numa escola de artes cênicas para pagar as contas… O que, por outro lado, permitiu que eu passasse a interpretar minhas próprias peças.

Eu não conseguia entender por que os religiosos odeiam tanto os transexuais, não fazia sentido para mim. Comecei a refletir sobre isso: “deve ser algo que vem do Velho Testamento”… Sabe, todo aquele papo sobre Sodoma e Gomorra, Levítico etc. Comecei a pesquisar, e descobri que antes dos seres humanos adorarem o Deus Pai, eles adoravam a Deusa Mãe, e que os seguidores do Deus Pai se esforçaram muito para apagar a Deusa Mãe da face da Terra.

Foi quando eu percebi: “Eu tentei fazer a mesma coisa quando era jovem, quando me dei conta de que era trans!”. Eu tentei me suprimir, apagar tudo que era feminino em mim. Há um paralelo entre essas duas situações – então escrevi uma peça que contava minha história e a história de Deus; no final, Deus aceita que Ele/Ela é ao mesmo tempo homem e mulher.

E por que não seria, né? (risos)

Claro que é! É óbvio! Depois de algum tempo, sei lá como, essa peça foi traduzida para o italiano, e foi encenada em Florença. Os italianos adoraram, a peça fez muito sucesso, saiu em turnê pela Itália. Então fiquei com vontade de escrever uma sequência, algo sobre o Novo Testamento. Minha intenção era escrever algo sobre Maria Madalena, colocando-a como uma prostituta trans. Ou talvez sobre João, o Apóstolo, o “discípulo amado”, porque meu nome originalmente era John (João), e eu sempre reparei que, nos retratos dos apóstolos, todos eles têm barba, menos João! Ele sempre tem a barba feita, e uma aparência bem afeminada. Fiquei com isso na cabeça. Mas, na hora de escrever, esses personagens não ganharam vida, mas Jesus… eu me peguei imaginando como seria uma Jesus transexual, e a peça aconteceu.

É muito comum que as pessoas imaginem que, se Jesus voltasse hoje, viria como parte da população que é mais oprimida atualmente. No momento essa população é a população trans, principalmente quando se pensa que o Brasil mata uma mulher trans por dia. E muito dessa estigmatização vem das próprias igrejas…

Sim, essa situação, infelizmente, as torna candidatas perfeitas. É uma vergonha a maneira como as instituições cristãs excluem a população LGBT. Elas se privam de uma fonte inestimável de força. Essa oposição toda contra o casamento homoafetivo no religioso é absurda. As igrejas deveriam dizer: “que maravilha que, apesar de todos os insultos que nós lançamos sobre eles por tantos anos, eles ainda querem se casar na igreja. Que maravilha que a dimensão espiritual de seu amor ainda é importante para eles. Venham, venham!”. Seria a coisa humana e sensata a se fazer.

A Igreja Católica está indo de mal a pior porque está se fechando, está negando os direitos ao aborto, aos anticoncepcionais, ao casamento homoafetivo… É claro que as pessoas percebem! Enquanto isso, as igrejas evangélicas prometem que, se as pessoas fizerem parte delas, Jesus vai fazer que elas fiquem ricas. Mas isso é exatamente o contrário do que Jesus dizia! Ele dizia que devemos amar-nos uns aos outros.

Assim como há um paralelo entre a Deusa Mãe ser dominada pelo Deus Pai e a experiência de ser uma mulher trans, há similaridade entre a ressurreição de Jesus e o corpo novo que pessoas trans têm que conquistar?

Não é uma questão de corpo, pelo menos não para mim. Para muitas pessoas trans, talvez… Eu não senti a necessidade de fazer a cirurgia, e sou muito grata por isso. No meu caso, tem muito a ver com descobrir uma nova identidade. Eu, pelo menos, odiava meu corpo quando era um garoto; quando cresci, descobri que o problema não era exatamente o corpo: eu havia nascido no papel social errado. Como eu tinha que viver sob uma identidade masculina, eu tinha que ser um tipo de pessoa que não era eu. Assim que eu passei a viver como mulher, sim, eu me senti como uma nova pessoa, senti que havia renascido. Se eu vivesse numa sociedade mais humana, tenho certeza que tudo teria sido muito diferente. Foi então que eu compreendi aquele trecho do Evangelho que diz que você tem que renascer.

Você sabe o que é “travesti”?

Sei, porque passei um final de semana com Renata Carvalho, que vai interpretar a peça, e ela se denomina travesti. Na minha peça, há um trecho que diz: “Porque somos a Hijira da Índia / e a kathoey da Tailândia / e a bissu da Indonésia / e a fa’fa’fine do Havaí / e a muxe do México / e a travesti do Brasil / e o povo de dois espíritos da América do Norte / e as xamãs da Sibéria / e as yan daudu da Nigéria…” Todas essas classes são de pessoas do terceiro gênero. E é assim que eu me considero. Eu senti muita afinidade com a Renata por causa disso. As travestis são muito corajosas por se colocarem assim. Eu conheço muitas transexuais em meu país que querem tornar-se mulheres, e então desaparecerem, esquecerem que são trans. Cada um lida com isso de uma maneira, eu jamais diria para alguém “você está ERRADA por pensar desse jeito”. Mas não é assim que eu quero ser.

Claro que, na rua, muitas vezes você não quer chamar atenção, porque somos alvo de abuso e violência. É horrível. Mas considero que é muito importante colocar-se no mundo como uma mulher trans, aparecer em público como mulher trans, no rádio, na televisão, para que as pessoas saibam que nós existimos! Eu sofri muito quando era garoto porque não parecia haver ninguém como eu no mundo. Depois, quando cresci, conheci um grupo de mulheres trans, mas todas eram muito infelizes, amargas, raivosas. Pensei: “eu não quero ser assim!”. Conheci muitas pessoas trans que viviam sua transexualidade em segredo, passavam a semana como homens e depois se vestiam de mulher nos finais de semana. Eu não queria nada disso.

No meu país, muitos especialistas que cuidam de transexuais aconselham que, depois de se fazer o tratamento hormonal e fazer a operação, a pessoa trans troque de emprego, abandone o lar, e mude-se para um lugar diferente onde ninguém a conhece, porque se alguém souber que ela é transexual ela será alvo de ódio. Isso, no fundo, serve mais para “proteger” as pessoas cis, que consequentemente não têm que lidar com o fato de que existem pessoas trans a seu redor. Isso é errado! Há mais que dois gêneros! A noção de que existem apenas homens e mulheres é errada! Muitas sociedades têm tradições de terceiro gênero fortíssimas, e a América do Sul estava entre elas antes dos colonizadores chegarem. As travestis são uma continuação corajosa e importante dessa tradição.

Como vocês encontraram Renata Carvalho, e o que ela traz de novo a seu personagem?

Eu me sinto muito privilegiada porque minha obra reuniu um grupo de mulheres maravilhosas: Natalia Mallo, a diretora no Brasil; Renata Carvalho, a atriz que vai interpretar a peça aqui; Liliane Rebelo, do British Council; Gaby, nossa produtora… Natalia conheceu O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu por indicação da Liliane, e ficou tão inspirada pela peça que varou a noite seguinte traduzindo-a para o português. Foi mesmo um milagre! Depois ela veio conversar comigo, pois queria encenar a peça aqui no Brasil. Se não me engano, ela colocou um anúncio na internet, convocando atrizes trans para o papel. Depois de conhecer várias, ela sentiu que Renata era que se encaixava melhor no papel. E agora que a encontrei eu entendo por que, ela tem uma presença tão linda, olhos incrivelmente expressivos. Ela é muito boa, muito glamurosa – exatamente o oposto de mim! Acho que essa produção vai ser totalmente diferente da minha, estou tão animada! Mal posso esperar para ver.

Há toda uma polêmica, especialmente no cinema, sobre personagens trans: muitos defendem que apenas atores e atrizes trans deveriam interpretá-los. Qual é a sua opinião?

Bem, vou te dizer de cara, ninguém oferece trabalho para atrizes trans! Eu quero trabalhar, quero atuar como atriz! Mas não é só isso: há algo diferente quando se é trans. Nós temos uma vibração diferente. E não importa quanta maquiagem um ator cis coloque, não importa se a peruca dele é ótima, se ele passa fome até ficar magrinho – o ator cis ainda não vai vibrar da mesma maneira. Eu vi as atuações de Jared Leto em Clube de compras Dallas e de Eddie Redmayne em A garota dinarmaquesa. Eles são atores incríveis, mas ainda não está certo! E mesmo Felicity Huffman em Transamerica. Acaba sendo tudo muito superficial. Chega a ser ridículo como eles interpretam: imaginam que é uma questão de ser esbelto, ser glamuroso, de andar de uma certa maneira, eles treinam vários maneirismos… Mas não é nada disso! Ser transexual é algo muito mais profundo. É algo que está em seu corpo todo, a maneira de se observar e se colocar no mundo. Nós temos um jeito muito diferente e especial de ser, e é muito importante que as pessoas o vejam!

Você está escrevendo uma peça sobre o envelhecimento. É difícil envelhecer?

Sim… eu tenho 66 anos. Eu tenho que andar de bengala por causa da artrite. Conforme se envelhece, você começa a cuidar de cada vez mais pessoas que estão morrendo, e isso faz você pensar: “meu Deus, eu vou morrer!”. Especialmente depois que minha esposa morreu [Jo foi casada com a escritora feminista Sue Innes]. Nós vivemos 33 anos juntos, e depois que ela morreu por causa de um tumor no cérebro, meu coração se partiu. Literalmente – eu precisei fazer uma cirurgia cardíaca, que envolvia fazer meu coração parar de bater. Eu passei seis horas ligada a um aparelho, eu me lembro do momento em que o cirurgião disse “agora vou lhe dar uma injeção e seu coração vai parar”. De certa forma, eu morri! O que também me fez muito mais feliz por estar viva, eu aprecio muito mais a alegria de viver. Nossa sociedade tem pavor à morte. Essa é uma das razões por que tornam invisíveis as mulheres idosas como eu, não as consideram mais dignas de consideração. Há um culto à juventude, principalmente entre os gays. Envelhecer muda como você se enxerga conforme seu corpo muda. Meus joelhos não são mais os mesmos, nem minhas pernas. Eu não me encaixo na ideia do que é desejável, ou belo, ou sexy, é muito difícil. Mas é importante que se escreva sobre isso; é muito importante que, como sociedade, a gente compreenda e aceite a morte.

Como sua transição mudou a maneira como você escreve seus personagens, sejam eles homens ou mulheres?

Artisticamente, ser transexual é fantástico. Mal dá pra dizer como é vantajoso, me ajudou muito a compreender e criar melhores personagens femininas. Muitos escritores homens não são capazes de fazê-lo! Muitas vezes suas personagens femininas ou são muito superficiais, ou simplesmente inexistentes. Eu compreendo o mundo feminino, é fenomenal. Mas a transição também me ajudou de outra forma. Eu costumava ter muita vergonha de mim mesma quando eu vivia como homem, não gostava muito de mim, duvidava de mim mesma o tempo todo. Desde que realizei a transição, eu me sinto feliz em minha própria pele, me sinto feliz no mundo… Não posso afirmar que mudou minha maneira de escrever, mas com certeza mudou minha atitude quanto ao que escrevo. Essa peça mesmo, só está acontecendo agora porque, apesar de todas as pessoas que protestavam na rua no dia de estreia, de todo aquele ódio, eu sabia que ela era importante. Eu tinha tanta fé nessa peça que sentia a responsabilidade de continuar a encená-la.

Serviço

Jo Clifford apresenta o espetáculo The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven, como parte do FIT BH – Festival Internacional de Teatro, Palco & Rua de Belo Horizonte: dias 21, 22 e 23 de maio, no Museu Mineiro, às 21h.

O Instituto Tomie Ohtake recebe Jo Clifford para um debate com a professora Paula Beatriz no dia 30 de maio, segunda-feira, das 15h às 18h, integrando a programação do Ciclo de palestras: Mediações Acessíveis que nesse dia tem como tema: LGBT e a Promoção da Diversidade na Cultura – Desmitificando Lugares Comuns. Paula Beatriz é diretora da Escola Estadual Santa Rosa de Lima (SP), militante e ativista, integra o Fórum Paulista de Travestis e Transexuais.

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