EUA vão permitir que gays doem sangue – se forem celibatários

Novas recomendações exigirão que doadores gays não tenham feito sexo com homens nos últimos 12 meses. Medida ainda é considerada discriminatória

por Marcio Caparica

Ontem, 23 de dezembro, a Food and Drug Administration (FDA), órgão de vigilância sanitária dos Esados Unidos, propôs uma revisão às restrições em vigência sobre quem pode doar sangue no país. As novas medidas finalmente permitiriam que homens que fazem sexo com homens (HSH) doassem sangue, desde que não tenham entrado em contato sexual com outro homem no último ano.

Até então, qualquer homem que declarasse ter feito sexo com outro homem, mesmo que apenas uma vez na vida num passado distante, seria rejeitado como doador nos EUA. Essa medida é um fóssil do auge da epidemia da AIDS nos anos 1980, quando pouco se conhecia sobre o mecanismo do vírus HIV e não havia tecnologias capazes de detectar pequenas quantidades do vírus nas amostras. Hoje em dia, apesar das infecções de HIV na América e na Europa ainda estarem concentradas ha população HSH, medidas como essa não fazem mais sentido: todas as doações de sangue passam por testes de HIV por padrão. Quem (como eu) já foi doar sangue e (como eu) mentiu sobre ser gay, já certamente ouviu a pergunta durante a entrevista “você está doando sangue apenas para saber se tem HIV?”.

A mudança vem no rastro de manobras políticas para que esses princípios proibindo a doação de sangue por homens gays fossem revistos. Em novembro um painel do Departamento de Saúde dos EUA composto de médicos e experts em doação de sangue realizou um voto de 16 votos a favor e 2 contra para que a proibição fosse suspensa. Em seguida, 80 membros do Congresso norte-americano fizeram uma petição para que a mudança fosse feita.

O primeiro país a permitir que homens que tenham feito sexo com homens doasse sangue foi o Reino Unido, em 2011, que concebeu essa barreira de 12 meses nas relações sexuais, logo adotada por toda Europa, e adotada também no Brasil no mesmo ano.

Mesmo sendo um progresso quanto à discriminação de homossexuais nos bancos de sangue, muitos consideram isso muito pouco, e quase um insulto. Como escreveu o jornalista Zach Stafford no jornal The Guardian:

Esse é o tipo de migalha que nós gays estamos dispostos a aceitar – as migalhas que confirmam nosso tratamento como cidadãos de segunda classe, mesmo depois da luta pelo casamento igualitário. Ao aceitar a abstinência sexual por um ano ao invés da proibição vitalícia, nós estamos aceitando um preconceito contra nós que triunfa sobre fatos científicos que, de várias maneiras, já nos libertou do medo.

Há tempo demais que os gays aceitam migalhas enquanto outros ganham um assento na mesa – e um microfone na vigilância sanitária para alardear seus preconceitos sem fundamento científico. É hora de tirarmos esse microfone da tomada.

David Stacy, diretor de assuntos governamentais da ONG Human Rights Campaign, divulgou uma declaração em que, ao mesmo tempo que louva a medida da FDA, também aponta a discriminação presente na exigência de celibato por um ano:

Essa medida é um movimento em direção à medida ideal, que refletiria a equidade fundamental e o que há de melhor na pesquisa científica, mas deixa a desejar como uma solução aceitável porque continua a estigmatizar homens gays e bissexuais, ao impedi-los de doar sangue (que poderia salvar vidas) tendo por base nada mais que sua orientação sexual ao invés de uma aferição dos riscos reais ao banco de sangue.

Essa nova recomendação não pode ser justificada à luz das pesquisas científicas mais recentes e as tecnologias de testagem mais modernas. Vamos continuar a lutar por um resultado que minimize os riscos aos bancos de sangue e tratem homens gays e bissexuais com o respeito que merecem.

Medidas como essa são discriminatórias porque não levam em conta o comportamento de cada indivíduo, apenas a orientação sexual. Querer que alguém passe um ano em celibato para que doe sangue só é “concebível” quando se trata de gays – jamais consideraria-se fazer a mesma exigência para heterossexuais – e cheira ao cansado e hipócrita lema dos fundamentalistas cristãos, “ame o pecador mas odeie o pecado”. Gays que usam preservativo em todas as relações sexuais têm menos risco de terem HIV que heterossexuais que fazem sexo sem proteção. Se esses gays estiverem em relações monogâmicas, menos ainda.  Nada disso é levado em conta quando se pergunta se você teve relações sexuais com outro homem nos últimos 12 meses.

Além disso, desde novembro de 2013 uma portaria aprovada pelo Ministério da Saúde torna obrigatória a realização do teste de ácido nucleico (NAT) em todas as bolsas de sangue colhidas em bancos públicos e privados no Brasil. Esse teste detecta o material genético de vírus, ao invés de buscar os anticorpos que o organismo produz contra esses vírus, como era praxe. Assim, é possível detectar uma infecção de HIV 8 dias após a exposição ao vírus, e detectar uma infecção de HCV (vírus causador da Hepatite C) 10 dias depois da exposição. Ou seja, na prática, não há mais razão para perguntar sobre os hábitos sexuais dos doadores, muito menos nos últimos 12 meses. Exigir a falta de contato sexual HSH nos últimos 12 meses não passa de preconceito – um preconceito que põe em risco muitas vidas que se beneficiariam com mais doações de sangue.

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