Reação ao ciclista morto na Paulista é mais um exemplo do hábito de se culpar a vítima

A inversão de responsabilidades se repete com mulheres, LGBTs, negros como resultado da reconfortante atitude de quem se recusa a enxergar as injustiças

por Marcio Caparica

Na última segunda-feira, dia 27 de outubro, mais um ciclista morreu num acidente de trânsito na avenida Paulista. Marlon Moreira de Castro, 35 anos, bike courier, foi atropelado por um ônibus no cruzamento com a avenida Brigadeiro Luís Antônio. Uma foto perturbadora da bicicleta retorcida debaixo das rodas do coletivo acompanha vários dos artigos que relataram o fato. A perda de uma vida, no entanto, não comoveu tantas pessoas que, em comentários em sites e posts em redes sociais, culparam o ciclista – e sua mera presença naquele cruzamento – por sua própria morte.

Eu troquei a carteira de motorista pela bicicleta em 2005; acompanho com interesse os desenvolvimentos da mobilidade urbana em São Paulo, participo de movimentos cicloativistas sempre que possível (menos do que gostaria, infelizmente) e defendo ferrenhamente a bike como meio de transporte para todos. Assim, quando a notícia de mais essa vítima começou a aparecer nos sites, não demorou muito para que me mandassem links sobre o ocorrido – não sei se para demonstrar revolta com a morte ou se para tentar apontar mais uma evidência de que meu destino inevitavelmente será o mesmo. O acidente me tocou profundamente – eu passo pelo mesmo cruzamento com frequência – e, para piorar tudo, as opiniões de outras pessoas só aprofundou minha desolação.

A falta de educação no trânsito e o prefeito são responsáveis, de vez que incentivou a todos sairem de bicicleta, como se não houvesse amanhã e nada mais sobre a face da terra…“, escreveu uma internauta. “quantas vezes eu falei que isso ia começar a ser cada vez mais frequente……. Os ciclistas na sua maioria são mal educados e acham que são os donos da rua, tal qual grande parte dos motoqueiros…“, digitou outro. “São Paulo, não foi projetada para ciclovias.Vai haver mais mortes!!!!“, brada mais uma. “Tbm esses ciclistas querem competir com veículos automotores!!! Me poupe, lugar de bicicleta é no parque e ñ em um transito como o de SP“, completa outra.

Eu poderia me debruçar sobre várias falhas de lógica, como, por exemplo, que se uma morte prova que um tipo de veículo não deveria ser utilizado nas ruas, todos esses indignados cidadãos deveriam deixar seus carros em casa. Mortes em acidentes automobilísticos acontecem, infelizmente, às dezenas, todos os dias, tanto que há muito tempo não são mais notícia a não ser em casos trágicos envolvendo um ônibus cheio de crianças. Poderia apontar pesquisas que comprovam que quanto o maior número de ciclistas na rua, menor o número de acidentes (quando os ciclistas são mais comuns, os motoristas passam a ficar mais alertas quanto à possível presença de uma bicicleta a seu redor). Poderia lembrar que é exatamente essa atitude de competição pela via pública, ao invés da convivência entre os diversos modos de transporte, que transforma motoqueiros, motoristas de ônibus, motoristas de carro e ciclistas em inimigos mútuos.

Mas esse é um blog sobre questões LGBT, e aqui vou apontar o que vejo em comum entre respostas como as de cima com outras respostas a outros tipos de violência: quem se sente confortável na atual situação tende a jogar a culpa pelas falhas do status quo sobre as vítimas.

Um gay é agredido num ataque homofóbico? Também, ele não deveria ser tão viado, se andasse como homem não apanhava.

Uma mulher é estuprada ou assediada? Quem mandou se vestir daquele jeito? Estava pedindo, assim não tem macho que resista.

Um garoto negro é morto num confronto com a polícia? Se não estivesse fazendo nada de errado ele ainda estaria vivo.

Uma moça morre tentando fazer um aborto? Um jovem se contaminou com o virus HIV? Se não estivessem fazendo sexo irresponsavelmente, nada disso aconteceria.

Um ciclista morre num cruzamento em uma avenida movimentada? Ele não deveria estar ali, passando entre os carros.

Culpar a vítima não é simplesmente uma reação de grupos resistentes a mudanças – motoristas que não querem dividir suas vias, homens que sentem sua virilidade ameaçada pela independência das mulheres, brancos que sentem que negros estão dominando o território, héteros que não querem ser forçados a ver o amor entre pessoas do mesmo sexo. Especialistas relatam que esse comportamento está enraizado na mente humana, e vem da necessidade de se autoafirmar que o mundo é um lugar justo.

Estudos realizados na década de 1960 pelo dr. Melvin Lerner levaram à seguinte conclusão: as tendências de se culpar a vítima pelos males que lhe acometem vêm da crença em um mundo justo, um mundo em que as ações têm consequências previsíveis e cada um consegue controlar o que acontece consigo. Nós queremos acreditar que quem pratica o mal será punido, enquanto quem segue as regras vai ser recompensado. O comportamento decorrente dessa crença muitas vezes reduz a empatia pelo sofrimento alheio e até aumenta a estigmatização contra quem está em posição desfavorável: ele fez por merecer.

Isso vê-se também na morte de Marlon Moreira de Castro: muitos foram céleres em apontar que ele avançou um sinal vermelho. E assim ele teria merecido morrer. Não se questiona a falta de uma estrutura  que lhe garanta um espaço seguro numa importante avenida plana de São Paulo. Não se questiona o excesso de veículos na metrópole, causadores de tanta lentidão que nem mesmo motoboys são considerados mais a opção mais rápida para se realizar entregas – razão por que o negócio dos bike couriers está em ascenção. Esse ciclista maluco avançou o sinal. Rua não é lugar de bicicleta.

Era trombadinha, merecia morrer. Não sei porque estava batendo, mas ela sabia por que estava apanhando. Era puta travesti, porrada nela.

Culpar as vítimas mantém as pessoas no conforto da ignorância sobre as injustiças que elas mesmas muitas vezes provocam. As poupam do esforço de reconsiderar as próprias atitudes e as eximem das responsabilidades que os males de suas atitudes causam. É mais fácil racionalizar o sofrimento alheio, afirmar que a vítima merecia. E torcer para que a próxima bicicleta debaixo do ônibus não seja a do seu amigo, que a próxima lâmpada não acerte a cabeça de um parente seu, que a próxima vítima de assédio não seja você.

O mundo é um lugar injusto. Mas, se tivermos compaixão com o sofrimento dos outros, essa injustiça pode diminuir. E assim a injustiça será reduzida para todos.

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6 comentários

Flavio Molinari

Parabens Marcos Caparica, belo texto!!! Compactuo de sua indnação…

Marcos

Texto incrível! Consegue falar de uma fatalidade específica e ao mesmo tempo ser extremamente abrangente. Parabéns ao autor!

Paulo B.

Nossa!!
Eu to querendo acreditar imensamente que o João foi irônico no seu comentário, de coração!!

João

Rua não é lugar para bicicleta. Só um idiota completo não vê que sempre vai acontecer acidente. Chega de burrice. Ciclistas saiam das ruas. E pessoas de bem, que compraram seu carrinho, pagam seu IPVA e têm responsabilidade, vamos reagir aos bandidos que apregoam que bicicletas podem – usando corpos humanos como escudo – arriscar e atrapalhar o trânsito. Vamos buzinar, vamos expulsar esses ciclistas bandidos das ruas!

Marcio Caparica

Sempre vai acontecer acidente – assim como os tantos que acontecem todos os dias de colisão entre carros? Só um idiota completo não vê que uma bicicleta não mata ninguém – são os carros que matam motoristas, ciclistas, pedestres, animais…

Jean

Este João me cheira a alguém que me parou na Ciclofaixa no domingo de votação (primeiro turno) na avenida Jabaquara, e falou para mim e vários outros ciclistas que estávamos invadindo o seu espaço. Até argumentei e por fim, ignorei. Este individuo não merecia nem resposta à pergunta. Ainda acho que nasci no país errado, vai demorar anos-luz para se chegar a um país que sem citar nome, preza o ser humano em primeiro lugar, onde o ser coletivo vem antes do individual.

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