“As grandes editoras não querem ter seus nomes associados à homossexualidade”

Alexandre Willer de Melo, da editora Escândalo, comenta a literatura LGBT brasileira às vésperas da festa Escandaliza, que reunirá autores e leitores homoafetivos em SP

por Marcio Caparica

O que é uma barreira para muitos pode se tornar uma oportunidade para quem tiver visão. O mercado editorial sempre fez pouco caso dos autores com histórias ou ideias ligadas à homoafetividade; a maioria dos editores viam essas obras como nada além de encalhes em potencial. A editora Giselle Jacques e o escritor Roberto Muniz Dias, no entanto, enxergaram aí um nicho a ser explorado, e fundaram há dois anos a editora Escândalo, especializada em literatura LGBT.

A Escândalo conta em seu catálogo com títulos de ficção (romances, contos, poesia, ensaios e literatura infantil) e não-ficção (psicologia, auto-ajuda, religião, ciência, direito e política). Ano passado a editora promoveu pela primeira vez a festa Escandaliza, com a intenção de apresentar seus títulos e seus autores ao público. Esse ano, às vésperas da parada LGBT, o evento se repete. A confraternização entre autores e leitores vai acontecer amanhã, 2 de maio, a partir das 18h, no Telstar Hostels (Rua Capitão Cavalcanti, 177, Vila Mariana). Durante o evento serão lançados os livros A sesmaria esquecida, de Luciano Cilindro de Souza, e Homossilábicas vol. 3, mais uma adição à série de contos homoafetivos da editora.

Veja a seguir a entrevista que Alexandre Willer Melo, editor da Escândalo, deu ao LADO BI.

LADO BI – Uma editora especializada no segmento LGBT seria considerado um negócio insano até bem pouco tempo atrás. Como surgiu a editora Escândalo, e como tem sido sua recepção?

ALEXANDRE WILLER MELO – A Escândalo surgiu quase como uma desforra. Não porque nós, autores, fôssemos rejeitados pelas outras editoras. Ao contrário, muitos dos autores da Escândalo já tiveram outras obras publicadas. Mas, mesmo assim, éramos tratados como produto e tínhamos, muitas vezes, de arcar com despesas de edição e fazer malabarismos pra divulgar o livro por conta própria. O objetivo da Escândalo, além de promover a boa literatura LGBT, com qualidade e consideração pelo leitor, é tratar o autor com o respeito que ele merece. Hoje temos quase 30 autores em 20 livros lançados. Isso em dois anos de atuação apenas. Acho que estamos conseguindo conquistar nosso espaço, e a recepção tem sido muito boa, tanto entre autores como leitores. O público LGBT é uma fatia do mercado extremamente carente de literatura de qualidade. As grandes editoras fazem vista grossa para o assunto, não querem ter seus nomes associados a homossexualidade.

Como são escolhidos os autores com quem vocês trabalham? Vocês buscam novos autores?

Estamos abertos para o recebimento de originais, que são submetidos à leitura crítica de todos os editores. Como é nossa política não cobrar do autor a edição do livro, todos passam por uma avaliação criteriosa que considera a linha de trabalho adotada pela editora. Sempre buscamos trazer aos nossos leitores novidades e há muitos autores talentosos esperando apenas uma oportunidade.

Há quem pense que literatura LGBT é necessariamente literatura homoerótica. Isso é um problema para vocês? Vocês evitam esse tipo de literatura ou a abraçam como parte de seu repertório?

Optamos, na Escândalo, por não publicar erotismo exagerado e/ou pornografia. Nossa linha se baseia em ficção e não ficção que realmente acrescente informação e cultura sobre o universo homossexual, sem usar do apelo ou estereótipos sexuais para isso. Obviamente que o assunto faz parte do universo LGBT mas esse é um universo tão amplo, de aspectos tão sublimes e diversificados, que pode se transformar em literatura de qualidade sem apelar para esse tipo de truque, e até mesmo  romper as questões e barreiras do gênero. Essa é a nossa visão.

Escandaliza 2014

A literatura LGBT é essencialmente urbana? O que se encontra fora dos grandes centros urbanos, em termos de autores e de leitores?

Muitos autores estão nas capitais, sendo que a maioria é paulista. Entretanto, vários vêm de cidades menores e de outras regiões do país, como Luciano Cilindro de Souza (que é da Bahia) e seu A Sesmaria Esquecida. Não há como negar que as grandes capitais, por seus aspectos culturais e sociais, atraem mais autores, mas é um erro pensar que apenas nelas existe gente com talento e com algo a dizer que vale a pena se ouvido. Quanto aos leitores, a maior parte das vendas é para a região nordeste, superando São Paulo e Rio de Janeiro. É uma contradição no mínimo curiosa e que, talvez, possa ser explicada pela dificuldade em obter acesso a esse tipo de literatura fora dos grandes centros.

É difícil para o autor homoafetivo brasileiro competir com os estrangeiros? O que a voz brasileira traz de especial para esse segmento literário?

Não entendemos que haja essa concorrência, mesmo porque até a literatura homoafetiva estrangeira tem dificuldade em ser publicada aqui, pelos mesmos motivos que “vetam” a local. Os melhores títulos são importados, e apenas uma pequena parcela dos leitores pode ter acesso a eles, não somente pela questão do preço como também pela barreira do idioma. Também não há como comparar o mercado editorial homoafetivo brasileiro com o estrangeiro, seria uma comparação injusta. Talvez a maior contribuição que a nossa literatura homoafetiva possa dar, falando bem amplamente, seja ajudar a construir nossa identidade, evitando que emulemos a de fora. Somos um país extremamente rico culturalmente, o que se reflete na literatura homoafetiva local.  Essa diversidade  efetivamente lhe dá um brilho único, já que pode aproveitar-se dos costumes de um país continental como o nosso, dos diferentes tipos de linguagem que temos, do folclore local, dos regionalismos, tudo isso é nossa grande contribuição.

Por fim, quais títulos vocês recomendariam, da Escândalo e fora dela, para os leitores que queiram se aventurar pela primeira vez na literatura LGBT?

Temos títulos excelentes tanto na ficção como não ficção, seria injusto com nossos autores mencionar apenas alguns, mas uma boa introdução ao nosso trabalho é a coletânea Homossilábicas, que está em seu terceiro volume. É uma seleta de contos, vários dos autores que participam dela estão em nosso cast com obras individuais, e se tornou algo como nosso carro chefe. Fora de nossa editora, uma boa escolha para iniciar contato com a literatura homoafetiva seria O Bom Crioulo de Adolfo Caminha, que, até onde se sabe, foi o primeiro romance homoafetivo brasileiro.  Se você tem interesse em literatura mais acadêmica, outra boa opção seria Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan, que traça um panorama bem expressivo da homossexualidade no Brasil. São, claro, apenas sugestões, você precisa achar o estilo que lhe agrada e explorá-lo. Lembre-se que a cada dia a literatura homoafetiva ganha mais espaço, não é fácil mas somos muitos, persistentes e jamais iremos embora.

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