Panti Bliss on TV

‘Ditadura gayzista’ é forma de oprimir gays, diz drag irlandesa

Repressores são os gays, e homofobia não existe? A drag queen Panti Bliss escancara a injustiça desse discurso

por Marcio Caparica

Não é apenas por aqui que os inimigos dos direitos LGBT usam a artimanha de agir como se os oprimidos fossem os opressores.  Aqui no Brasil acusam os homossexuais de “ditadores gayzistas” e tentam punir o (atrasado) beijo gay da novela com processos. Na Irlanda, há três semanas, a drag queen Panti Bliss disse num programa em rede nacional que dois jornalistas e um grupo católico eram homofóbicos. Os indivíduos em questão entraram com um processo contra o canal RTÉ, que transmitia o programa, e rapidamente foi feito um acordo em que a rede pagou 85 mil euros para que fosse retirada a acusação de difamação. O caso ganhou projeção nacional, principalmente depois que Panti subiu no palco do Abbey Theatre depois de uma peça e discursou sobre o que realmente é homofobia (inclusive a internalizada) e seus efeitos na vida cotidiana, e o vídeo desse discurso tornou-se viral. Ano que vem haverá um plebiscito na Irlanda sobre o casamento gay. A tradução do discurso de Panti você encontra logo depois do vídeo.

Olá. Meu nome é Panti e, para o benefício dos deficientes visuais e dos incrivelmente ingênuos, eu esclareço: sou uma drag queen, uma performer, e acidentalmente (e ocasionalmente) uma ativista pelos direitos gay.

E como vocês provavelmente já perceberam, eu também sou dolorosamente classe média. Meu pai era veterinário em fazendas, eu fui para uma boa escola, e depois frequentei a instituição mais classe média de todas: a faculdade de artes. E isso pode surpreender vocês, mas eu sempre consegui encontrar sustento na minha profissão de escolha: a descombinação de gêneros.

Então eu posso dizer que, felizmente, nunca experimentei a miséria massacrante e abjeta que foi demonstrada na peça dessa noite.

Mas opressão é algo com o que eu me identifico. Ah, claro que não estou comparando minha vida com a dos trabalhadores de Dublin em 1913, mas eu sei como é quando você é “colocada em seu lugar”.

Você já ficou parada ao lado de uma faixa de pedestres, esperando para atravessar, e um carro passa com um bando de rapazes? E então eles colocam o corpo pra fora da janela e gritam “Bichona!” e jogam uma caixa de leite em você?

Bem, isso não provoca nenhum ferimento sério. É só uma caixa de leite usada e, seja como for, eles têm razão: eu sou uma bichona. Mas isso é opressão.

A dor de verdade acontece depois. Mais tarde eu fico me perguntando, e me preocupo, e fico obcecada sobre o que eu tinha, o que foi que eles viram em mim? O que foi que me denunciou? E eu me odeio por isso. Eu me sinto oprimida e, na próxima vez que eu paro antes da faixa de pedestres, eu me vigio para descobrir como é que eu “dei bandeira” e me controlo para não fazer o mesmo dessa vez.

Algum de vocês já chegou em casa à noite e ligou a televisão, e viu um grupo de pessoas – pessoas boas, pessoas respeitáveis, pessoas inteligentes, o tipo de pessoas que todo mundo quer ter como vizinho, e que escreve para jornais. E eles estão tendo um debate muito racional sobre você. Sobre que tipo de pessoa você é,  se você é capaz de ser um bom pai, se você quer acabar com o casamento, se é seguro deixar crianças perto de você, se Deus, ela mesma, acha que você é uma abominação, se você na verdade não tem uma “desordem intrínseca”. E mesmo a apresentadora de TV, tão educada, parece até que vocês se conhecem de tanto que você já viu ela, até a apresentadora acha que não tem problema nenhum em se fazer esse debate tão racional e quais são os direitos que você “merece”.

Isso é opressão.

Alguma vez você já esteve num trem cheio com um amigo gay, e um pedacinho de você está se retorcendo por dentro porque ele está sendo TÃO bicha, e você se pega tentando compensar agindo como “macho” ou tentando levar a conversa para um lado mais “hétero”? Mesmo tendo passado os últimos 35 anos tentando ser o gay mais gay que dá, e mesmo assim tem um pedacinho seu que fica constrangido com a viadagem do outro.

E eu me odeio por isso. E isso é opressão. E quando eu estou esperando o sinal de pedestre abrir, eu estou me vigiando.

Você já parou na sua padaria preferida do seu bairro com o jornal que você compra todo dia, e quando você abre esse jornal você encontra uma coluna escrita por uma mulher educada, de classe média, o tipo de mulher que provavelmente doa dinheiro para instituições de caridade, o tipo de mulher que você ficaria tranquilo de deixar cuidando dos seus filhos. E no artigo ela argumenta, tão racionalmente, que você deveria ter tratamento inferior a todos os outros, argumenta que você deveria ter menos direitos que o resto. E quando a mulher da mesa do lado se levanta e pede licença e se espreme para passar por sua cadeira sorrindo, você se pergunta “será que ela também acha a mesma coisa?”.

E isso é opressão. E quando você sai dali, você espera para cruzar a faixa de pedestres e se vigia para não dar bandeira, e eu me odeio por isso.

Você já ligou o computador e assistiu vídeos de pessoas iguais a você em países distantes, e outros países nada distantes, apanhando e sendo presos e torturados e assassinados porque eles são assim como você?

Isso é opressão.

Três semanas atrás eu fui na televisão e disse que achava que pessoas que lutam para que pessoas gays tenham tratamento inferior ou diferenciado são, na minha opinião de bicha, homofóbicos. Algumas pessoas, pessoas que lutam para que pessoas gays tenham tratamento inferior ou diferenciado por lei, ficaram muito ofendidas por serem chamadas assim e ameaçaram entrar com um processo contra mim e o canal RTÉ. A RTÉ, tão sábia, decidiu rapidamente entregar uma quantia enorme de dinheiro para eles e assim acabar com isso. Eu não tenho a mesma sorte.

E assim, pelas últimas três semanas, eu tenho ouvido sermões de pessoas heterossexuais sobre o que é homofobia e quem deveria ser capaz de identificá-la. Um bando de héteros – pastores, senadores, advogados, jornalistas – entraram na fila para me explicar o que é homofobia e pelo que eu posso me sentir oprimido. Pessoas que nunca sentiram a homofobia na pele, pessoas que nunca tiveram que se vigiar enquanto esperavam para atravessar a rua, vieram me dizer que a não ser que eu esteja sendo presa ou jogada num camburão, então não é homofobia.

Isso é opressão.

Então agora os gays irlandeses se pegaram nessa situação ridícula: como se não fosse suficiente não ter permissão de dizer em público o que é que nos oprime,  nós não temos permissão sequer de pensar nisso porque nossa definição de opressão não passa pelo crivo de “quem entende”.

Pelas últimas três semanas eu ouço denúncias contra mim por “pregar o ódio” do púlpito do parlamento, das colunas de jornal e dos atoleiros dos comentários de internet, porque eu me atrevi a utilizar a palavra “homofobia”. Uma bicha moderna como eu deveria saber que a palavra “homofobia” não está mais à disposição dos gays. Veja só que truque incrível, digno de George Orwell, aconteceu: os gays não podem mais ser vítimas de homofobia – só os homofóbicos.

Vou dizer uma coisa: isso não é verdade. Eu não odeio vocês.

É verdade, eu acredito mesmo que provavelmente quase todos vocês são homofóbicos. Mas eu sou homofóbica também. Seria incrível se nós não fôssemos. Crescer numa sociedade que é massacrantemente homofóbica e escapar ileso é um milagre. Eu não odeio vocês por serem homofóbicos. Na verdade, eu admiro vocês. Eu admiro vocês porque vocês são só um pouquinho homofóbicos. Quando se leva tudo em conta, vocês estão mandando muito bem.

Eu odeio é a mim mesma, às vezes. Eu me odeio porque, caralho, eu me vigio quando estou na calçada esperando o sinal de pedestres abrir. E às vezes eu odeio vocês por fazerem isso comigo.

Mas não agora. Nesse momento, eu acho vocês todos muito lindos por me cederem um pouquinho do seu tempo. E por isso eu sou grata.

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3 comentários

Tamiris

Qualquer um sofre um pequeno transtorno psicológico por aquilo que é incomum na sua vida, mas respeito é fundamental de ambas as partes.

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