Ditadura fazia perseguição sistemática a LGBTs, revela CNV

Relatório da Comissão Nacional da Verdade registra que a população LGBT era alvo de tortura dos militares, e desprezada por movimentos de esquerda

por Marcio Caparica

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entregue ontem à presidente Dilma Roussef, inclui em suas páginas registros das perseguições que os militares faziam a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais entre os anos de 1964 e 1985, época da ditadura militar. Numa iniciativa inédita, o relatório dá grande importância a esse tipo de opressão feita pelos milicos, ao contrário de outros relatórios semelhantes já publicados ao redor do mundo, como no Peru.

Já faz parte do mito internacional batidas que os policiais faziam em Nova York em bares gays clandestinos, que acabaram por desencadear a revolta de Stonewall. O mesmo acontecia no Brasil. Os policiais brasileiros faziam rondas sistemáticas para ameaçar e prender travestis, gays e lésbicas, chegando a prender 1,5 mil pessoas apenas na cidade de São Paulo. Como relata a BBC Brasil:

(a) prática de “higienização” levou ao menos 1,5 mil pessoas à prisão somente na cidade de São Paulo; torturas, espancamentos e extorsões dirigidas sobretudo a travestis; censura à grande imprensa quando abordava a temática das “homossexualidades” (o termo LGBT não era usado na época) e aos veículos gays, como o emblemático jornal “Lampião”; afastamento de cargos públicos por conta da sexualidade, como ocorrido em 1969 no Itamaraty; prontuários de servidores públicos com registros sobre a sexualidade; além de perseguições aos embrionários movimentos de gays e lésbicas na década de 1970.

Desde sempre defensores da “moral e bons costumes” (algo que ainda perdura em figuras como o deplorável Jair Bolsonaro), os militares viam os homossexuais como particularmente subversivos. Um dos responsáveis pelo relatório, Renan Quinalha, afirma: “Dada a natureza e o grau dessa perseguição, seja por atuação ou omissão do Estado, e levando em conta o preconceito e a discriminação com uma dimensão institucionalizada, é possível afirmar que a homofobia foi, sim, uma política de Estado durante a ditadura”.

O pesquisador Rafael Freitas, da PUC-SP, relembra as rondas policiais do delegado José Wilson Richetti no centro de São Paulo no final dos anos 1970. “A primeira dessas rondas data de 1968, quando de uma visita da Rainha Elizabeth 2ª a São Paulo. A polícia quis limpar o centro da cidade. Em declarações a jornais da época, Richetti não fazia questão de esconder este objetivo, ao afirmar que era preciso ‘limpar a cidade dos assaltantes, prostitutas, traficantes, homossexuais e desocupados'”. Travestis chegavam a cortar os pulsos para saírem mais rápido da prisão. “Após três dias de humilhações, em que muitas ficavam sem comida e eram forçadas a limpar a cadeia, algumas chegavam ao ponto de tentar o suicídio para serem soltas mais rapidamente”.

Pedro Dallari, jurista e coordenador da Comissão Nacional da verdade, aponta que homossexuais eram torturados com maior violência por causa de sua orientação sexual. “Homossexuais que eram presos ou perseguidos politicamente acabavam sofrendo mais. Na visão do regime isto era um agravante na condição deles, o que também acontecia com os negros e as mulheres.”

lampiao

Os homossexuais, no entanto, também não eram respeitados pelos movimentos de esquerda. O jornalista João Silvério Trevisan, um dos criadores do jornal Lampão da Esquina, que tratava da temática LGBT entre os anos de 1979 e 1981, relembra: “Muitas vezes chegou até a violência física, quando mulheres lésbicas foram atacadas pelo MR8 em São Paulo. Movimentos indigenistas, de negros, do meio ambiente, e dos LGBTs eram considerados ‘lutas menores’. No início da movimentação no ABC, Lula chegou a dizer ‘não existem bichas na classe operária’. Houve muita indignação e posteriormente os movimentos também marcharam nas grandes greves”.

O diretor do programa de verdade e Memória do Centro Internacional de Justiça de Transição aponta como o relatório da CNV brasileiro é pioneiro em destacar a perseguição à população LGBT. “Tivemos menções superficiais a LGBTs em outros relatórios, e no Peru descobrimos já muito tarde que havia grupos de esquerda que reivindicavam assassinatos de homossexuais, prostitutas e travestis, mas tivemos tempo de incluir apenas uma breve menção”, diz o sociólogo peruano, cuja organização já assistiu mais de 30 países em suas comissões da verdade.

Renan Quinalha vai mais além: esse relatório pode ajudar a provocar mudanças sistemáticas na cultura do país. “Por piores que sejam o direito penal e nosso sistema de justiça, a criminalização da homotransfobia é fundamental para mudarmos a cultura da impunidade e da naturalização das violências contra esses setores. A cada 28 horas, uma pessoal LGBT é assassinada no país. Esse índice é alarmante. Conhecer o passado e dar o devido reconhecimento a esses grupos marginalizados historicamente nos ajudará a romper com o ciclo de violência e de impunidade existente ainda hoje. O trabalho que fizemos não foi só de historiografia, mas de ação política no presente”.

Fonte: BBC Brasil

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