Adaptado do artigo de Alexandra Hernandez Muro para o site Sin Etiquetas
Hoje é o Dia Internacional de Combate à Homofobia, data que no Brasil é especialmente necessária – segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, a cada 25 horas uma pessoa LGBT é assassinada aqui em nosso território nacional.
Assassinada. Não estamos aqui computando as outras inúmeras violências causadas a LGBTs por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero: espancamentos, expulsões, discriminações no trabalho, agressões psicológicas… O Brasil ostenta esse triste troféu há muitos anos, e não parece estar fazendo muito para descer desce pódio.
Como em todo tipo de violência discriminatória, a LGBTfobia faz parte de um sistema de poder que a sustenta e normaliza. É por isso que existem até gays homofóbicos que afirmam tranquilamente que a “ideologia de gênero” homossexualiza a população, e que não é necessário contar para os outros que se é gay, lésbica, bissexual ou transgênero, porque esses “assuntos de identidade sexual” são “íntimos”. É um tipo de homofobia internalizada resultante da patologização de nossas identidades, uma autocensura gerada pelas mensagens negativas que a sociedade emite constantemente a nosso respeito.
Mas a homofobia, a bifobia e a transfobia também acontecem de maneiras sutis, que muitas vezes não acontecem “por mal”, vindas de pessoas que acreditam que nos aceitam (ou nos apreciam). São tão repetidas que alguns até pensam que são ideias razoáveis, mas carregam a mesma mensagem de ódio e discriminação que as agressões físicas, os insultos e a negligência do Estado.
1. “Detesto bicha escandalosa”
Essa forma de discriminação é uma das mais recorrentes, sendo comum inclusive dentro da comunidade LGBT, especialmente entre os homens homossexuais. Aqui a homofobia vem carregada de machismo, porque se parar bem pra pensar, o “escândalo” na verdade significa “agir como mulher”. Ser “mulherzinha”, ser feminino, ser delicado e ser expressivo são características associadas ao estereótipo feminino. Como ser mulher é sinônimo de ser inferior, por que um homem “se sujeitaria” a agir assim? Essa pessoa tem que ser então castigada sendo censurada, discriminada e tachada de “escandalosa”.
Eis o cerne da questão: a homofobia, a bifobia e a transfobia são discriminações de gênero. Ser gay, lésbica, bissexual ou transgênero transgride a norma hierárquica da supremacia masculina. Transgride a necessidade da heterossexualidade e abala a ideia de que se nasce homem ou mulher. O desprezo ao escândalo é o desprezo por alguém que não segue as regras da heteronormatividade.
2. “Você gosta mais de homens ou de mulheres?”
Essa é a pergunta típica que assola pessoas bissexuais ou pansexuais. À primeira vista parece ser fruto apenas da curiosidade mais genuína e inofensiva, mas esconde atrás de si a necessidade social de colocar alguém em um extremo ou outro. Uma pessoa não pode estar numa posição intermediária, porque ficar no intermediário não promove em nada o conceito de binarismo (ou seja, de que tudo se divide em duas categorias, como homem e mulher). O binarismo sustenta que o homem complementa a mulher. E, portanto, a heterossexualidade e o sexismo seriam “o natural”.
É claro que existem pessoas bissexuais que têm preferências – em geral, não por um sexo ou gênero em específico, mas sim por certas expressões sexuais. Mas questionar, ou insinuar que uma pessoa é capaz de adivinhar qual é a preferência de uma pessoa bissexual, apenas por sua aparência ou por i parceire que com quem a pessoa está envolvida no momento é bifobia.
Quando uma pessoa pergunta qual é a preferência de uma pessoa bissexual ela em geral está se referindo à genitália. É típico de uma sociedade heteronormativa genitalizar o sexo e a orientação sexual. Costuma-se pensar que os genitais são fundamentais quando é esse o assunto porque essa são as partes do corpo que costumam serem utilizadas no ápice da relação sexual, mas essa é uma ideia heteronormativa, apoiada no conceito de que a capacidade de se reproduzir é um pilar fundamental da sociedade (e que, de quebra, glorifica a heterossexualidade).
A verdade é que o prazer sexual pode acontecer de várias maneiras, e não existem papeis determinados para homens ou mulheres dentro da relação sexual, a não ser que se reduza o sexo à penetração/reprodução. Para quem passou a vida inteira pensando que o sexo é assim, pode ser muito difícil olhar além dos parâmetros limitados que a sociedade oferece para o sexo. A homossexualidade e a bissexualidade contestam essas ideias engessadas ao mostrarem que sim, alguém pode fazer sexo sem penetração, ou que a penetração pode acontecer apenas por prazer, sem qualquer fim reprodutivo.
Como bissexual, posso dizer que é muito desgastante ter que explicar o tempo todo que ser bissexual ou pansexual significa que não me interessa o sexo ou os genitais das pessoas. Mas isso acontece cotidianamente. Também é terrível reparar como a maneira que se é tratada muda dependendo da pessoa com quem se está envolvide. Se é alguém de um sexo diferente, a aceitação é automática; se é o do mesmo sexo, a relação ou se torna invisível, ou inaceitável.
3. Beijo homossexual é polêmico, beijo heterossexual é sussa
Podemos colocar aqui também as pessoas que afirmam que um beijo homossexual é imoral e que, quando chamadas de homofóbicas, dizem que também ficam incomodadas quando um casal heterossexual se beija na rua. A princípio parece lógico que alguém prefira não ver quaisquer demonstrações de afeto, mas se parar para olhar bem, essa lógica não se aplica igualmente entre casais homossexuais e casais heterossexuais. A verdade é que estamos rodeados de afeto heterossexual. Presenciamos amostras de afeto heterossexual em todos os filmes, novelas, e até no noticiário, tratadas sem aversão nem questionamentos, porque são “normais”. Esse tipo de reclamação e contestação só surge quando se expõe a homofobia evidenciada pela expressão de afeto entre duas pessoas do mesmo sexo em público.
É só contar quantas vezes os pais cobrem os olhos dos filhos quando veem um casal heterossexual passar de mãos dadas, e quantas expressões de incômodo se vê quando o galã beija a mocinha no final do filme. Pois é.
4. “Para mim você sempre vai ser do sexo que nasceu”
A adaptação da família à identidade verdadeira de uma pessoa transgênero pode ser complicada devido à pouca informação e educação que se tem sobre a construção da identidade de gênero. Muitas pessoas, forçadas pelo laço familiar que as une (filhos, pais, irmãos, esposos) acabam por “aceitar” a pessoa trans, mas se negam a validar sua identidade verdadeira. Dizem coisas como “para mim você sempre será minha irmã”, “eu te vejo como meu esposo, não como minha esposa”, “eu vou continuar a usar seu nome de registro porque é o nome que eu lhe dei”, como se a pessoa transgênero tivesse feito algo ruim, ou tivesse feito isso de propósito.
Não reconhecer a identidade e não tratar a pessoa transgênero como ela prefere é transfobia. Acostumar-se a um novo nome pode exigir algum esforço, utilizar o pronome que a pessoa prefere também, mas esses são trabalhos e responsabilidades que cabem a nós. As pessoas trans não têm o dever de aguentar ou de educar as pessoas que insistem que suas identidades não são válidas. Muitas pessoas trans se dispõem a educar os outros, mas elas não têm que ser pacientes o tempo inteiro.
De qualquer maneira, se em algum momento cometer-se um deslize, a coisa certa a se fazer é pedir desculpas e evitar recair no erro. Nossa comodidade e costumes não estão acima da identidade de outra pessoa.
5. “Casar tudo bem, mas adotar não”
Essa é a reação típica de uma pessoa que se acha muito moderninha porque tem amigue LGBT, como se isso justificasse sua homofobia. Ter amigue LGBT, gostar deli, sair com eli ou apresentar-li à família não quer dizer que a pessoa não se opõe a alguns direitos dessa pessoa, como adotar filhos.
Não faz o menor sentido alguém dizer que aceita a homossexualidade, e até o casamento igualitário, mas não a adoção. O medo (o preconceito) por trás dessa ideia é que as crianças podem ser homossexualizadas por seus pais. Se alguém aceita a homossexualidade, por que seria ruim que uma criança se tornasse homossexual? Essas pessoas, no fundo, pensam que a homossexualidade é anormal, e que uma criança deve crescer em um ambiente que lhe permita desenvolver-se de maneira “normal” (ou seja, heterossexual).
Além disso, o que não falta são exemplos de que crianças criadas por casais homossexuais não têm sua sexualidade afetada pela sexualidade dos pais – tornam-se HT ou LGBTs independente das orientações e identidades dos pais. Também vamos nos lembrar que a imensa maioria de LGBTs foi criada por pais heterossexuais, o que não impediu que se tornassem homossexuais, bissexuais ou trans.
6. “Eu não preciso dizer que sou gay, lésbica, bissexual ou trans, isso não é da conta de ninguém”
Uma coisa é não poder sair do armário porque não vivemos num ambiente seguro onde se pode expressar sua orientação sexual ou identidade de gênero de maneira tranquila, ou por medo de se perder o emprego por causa da discriminação; outra é afirmar que alguém deveria mantê-la oculta porque ninguém tem nada a ver com isso, e reclamar de quem sai por aí dizendo para todos que são LGBTs, ou exigindo direitos.
Não me entenda mal: é claro que as pessoas têm a liberdade de não falarem de sua orientação sexual ou identidade de gênero, mas ficar incomodado porque os outros falam e rejeitar a necessidade de direitos (“a gente não precisa de leis que nos protejam”) são indícios de homofobia internalizada. Ou seja, quando alguém, apesar de ser LGBT, se considera um indivíduo numa posição inferior dentro de uma hierarquia social em que a cis-heterossexualidade é preferível a qualquer outra forma de identidade sexual.
Isso acontece com todo mundo: é raríssimo que alguém, quando se descobriu LGBT, não tenha negado sua identidade e não tenha tentado se ajustar aos ditames da sociedade, por medo de rejeição ou por se considerar doente. Isso acontece porque crescemos em uma sociedade heteronormatizada, em que a regra é ser heterossexual, e para ser heterossexual uma pessoa tem que ser ou homem ou mulher, e ser homem ou mulher exige seguir algumas determinadas normas. Quem não se encaixa nesses padrões é censurade, chamade de esquisite e castigade com discriminações.
E assim muitas pessoas LGBT internalizam essas normas e só expõem sua orientação sexual ou identidade de gênero em círculos muito restritos, e negam a necessidade de direitos, a proteção do Estado e, claro, rejeitam os LGBTs que são visíveis.
É por isso que muitos LGBTs têm aversão pelo ativismo, pelas celebrações do orgulho LGBT e qualquer outra manifestação que implique em maior visibilidade. Isso, aliado ao privilégio aquisitivo, social ou racial, faz com que a pessoa se torne mais relutante em compreender por que é tão importante que sejamos visíveis, que utilizemos alguns rótulos como forma de manifestação política, ou que insistamos tanto na criminalização da homofobia, ou exijamos melhores formas de representação na mídia.
Quando lutamos contra o preconceito, às vezes nos esquecemos que no dia-a-dia convivemos com formas de homofobia, bifobia e transfobia que passam desapercebidas, mas que afetam nossa qualidade de vida de forma significativa. É importante que todos nós tornemos visíveis nossas experiências e existências. A melhor arma contra a discriminação é a visibilidade.