Como David Bowie liberou a sexualidade de todos nós

Ele já disse que era gay, depois bissexual, depois casou-se com mulheres duas vezes e teve filhos. O tempo todo ele se negou a identificar ou fixar sua sexualidade. Bom para ele - e para nós

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Tim Teeman para o site The Daily Beast

Pode parecer estranho para a geração mais jovem de hoje – para quem o orgulho gay já vem com seu próprio acrônimo, LGBT – que um pop star seja capaz de colidir com as normas tradicionais de sexualidade e gênero, e destroçá-las de maneira radical. Mas David Bowie fez exatamente isso no início dos anos 1970, e o desafio que ele estabeleceu, no que diz respeito a confrontar as definições de sexualidade e as imagens da masculinidade, continua tão inovador hoje quanto era naquela época.

Pessoas como eu, que descobriram-se gays no Reino Unido durante o final da década de 1980, escutavam os gays que então tinham 30 ou 40 anos contarem como David Bowie havia sido um marco revolucionário, um relâmpago pessoal, em suas infâncias e adolescências na década de 1970. Lou Reed podia cantar “walk on the wild side” e fazer o que dizia, com certo efeito, mas Bowie, como Ziggy Stardust, litaralmente havia se teleportado de outro planeta.

De acordo com o escritor e crítico cultural Mark Simpson, quando Bowie apareceu na instituição do horário nobre britânico Top of The Pops em 1972 cantando “Starman”, “calculadamente envolvendo com seu braço lânguido ao redor de Mark Ronson, seu belo guitarrista, ele protagonizou o que é provavelmente a ‘parada gay’ mais importante da história do Reino Unido”.

Simpson declarou ao The Daily Beast que “a primeira parada gay de verdade no Reino Unido havia acontecido em Londres há poucos dias (em 1o. de julho de 1972) e as pessoas mal se deram conta. Mas Bowie então desfilou nas salas da nação. Todo mundo assistia àquele programa – e toda uma geração de jovens adorou a reação apoplética que Bowie provocou em seus pais da década de 1970.”

Bowie tinha muito a dizer sobre sua sexualidade – mas também a manteve misteriosa o suficiente para manter-nos todos no escuro até agora, o fim. Ele era pós-gay e polissexual antes que a maioria das celebridades tivessem coragem o suficiente para declararem-se qualquer coisa que não fosse absolutamente heterossexual.

Em  Melody Maker, de 1972, Bowie disse que era gay. Em 1976, ele declarou à Playboy que era bissexual, dizendo que havia “feito muito bom proveito desse fato. Acho que é a melhor coisa que já aconteceu comigo.”

Mais tarde, Bowie disse à Rolling Stone: “eu nunca senti que era realmente bissexual”. Ziggy Stardust era uma imagem que era projetada sobre si, ele disse, uma mentira – não algum tipo de manifestação externa radical de algo pessoal. Declarar-se bissexual tinha sido “o maior erro que eu já fiz”. A ironia quanto a Ziggy Stardust, Bowie disse, “era que eu não era gay. Eu tomava atitudes físicas quanto a isso, mas francamente não era prazeroso.”

Em um livro sobre a vida sexual de Bowie publicado em 2014, Tony Zanetta, ex-assistente de Bowie, disse: “Quando nós estávamos juntos na cama, ele era mais sensual e narcisista. Para ele, era tudo uma questão de ser adorado… Eu não acho que o sexo importava para ele.”

Esse mesmo livro esboçava as orgias que Bowie e sua primeira esposa Angie promoviam em sua casa em Londres – ela já afirmou que encontrou Mick Jagger e Bowie juntos na cama.

Em sua vida heterossexual, Bowie e Angie – mãe de um dos filhos de Bowie, Duncan (“Zowie Bowie”), nascido em 1971 -divorciaram-se em 1980. Bowie então conheceu a modelo Iman em 1990, casou-se com ela em 1992, e com ela teve uma filha, Alexandria (“Lexi”), nascida em 2000.

Bowie também teve relacionamentos com Susan Sarandon e Oona Chaplin, a viúva de Charlie Chaplin.

Quando em 2013 entrevistei Tony Visconti, amigo de Bowie de longa data e produtor de vários de seus álbuns mais memoráveis, Visconti revelou que Bowie e Iggy Pop não estavam num relacionamento quando moraram juntos em 1977, época em que Bowie estava se separando de Angie.

“Nós bebíamos muito juntos. Mas ele vivia uma vida muito espartana. Iggy tinha seu quarto, Bowie tinha o dele.”

Iggy Pop tuitou seu próprio tributo para David Bowie essa manhã.

Quanto à sexualidade de Bowie, Visconti relatou: “Eu nunca o vi com um namorado. Eu tenho certeza que ele queria que as pessoas pensassem que ele tinha um, mas o que ele costumava pegar era mulher. Havia muita homofobia naquela época. Ele dizia que a melhor tática era seguir na direção contrária e chocar as pessoas. Ele dizia que Ziggy Stardust era um personagem que confundia as pessoas. Até hoje eu escuto pessoas dizerem ‘você trabalha com aquela bicha’. Isso nunca se foi.”

A influência cultural de Bowie persiste hoje em cada pop star masculino que não apresenta uma imagem heterossexual dentro da caixinha e projeta uma imagem que desafia as barreiras. Há uma linhagem cultural e estética visível que liga a influência de Bowie aos mais diversos músicos, como Boy George e Adam Lambert.

No programa de entrevistas da BBC Friday Night with Jonathan Ross, em 2002, o entrevistador enxerido destemidamente perguntou a Bowie a respeito de sua orientação sexual.

Qual é o seu negócio?, Ross perguntou. Bowie é gay, bissexual, trissexual?

“Eu era muito… você sabe… Eu dei um passo muito grande”, respondeu Bowie, claramente querendo discutir qualquer outra coisa.

Ross insistiu. Bowie já havia se relacionado com homens?

“Não se eu pudesse evitar. Eu era incrivelmente promíscuo, e vamos deixar nisso.”

Por que ele contaria qualquer outra coisa para Ross, brincou Bowie, se ele podia ganhar uma fortuna contando tudo ele mesmo num livro.

Ross não se deu por vencido: disse que nunca havia experimentado “homem com homem” ou “homem no homem”, apesar de ter ficado tentado recentemente por David Beckham.

Será que ele não deveria experimentar o sexo gay?, Ross consultou Bowie.

“Essa é uma questão tão séria e desafiadora para toda a vida”, respondeu Bowie, devagar e grandiosamente. “A resposta que eu posso lhe dar provavelmente criaria tanto tumulto na sua alma. Eu não estou certo que você conseguira aguentar, ou, sendo sicenro, chegar até o final do programa. Temo que vou ser obrigado a, educadamente e relutantemente, não responder sua pergunta.”

Esse véu de mistério e intriga, trinta anos depois de tê-lo estendido pela primeira vez na figura de Ziggy Stardust, dizia muito sobre Bowie, e o serviço público inspirador que ele fazia ao turvar nossas águas sexuais.

Em nossa era moderna de classificações e categorias, Bowie sempre recusou dar-se um rótulo simples. Não era o que queria para si mesmo.

Quando negava-se um rótulo, ela não demonstrava covardia, mas sim a honestidade e maturidade quanto a como, pelo menos para ele, a sexualidade não era algo fixo. Isso acabou sendo sua própria liberação, ou pelo menos algo liberador, e também a de tantas pessoas de todos os tipos de orientação sexual e identidade de gênero.

“É claro que Bowie acabou não se transformando no ‘Elvis gay’ que tantos queriam”, pondera Mark Simpson. “Mas, ao recusar-se deliberadamente a se restringir por expectativas do que é ‘masculino’ ou ‘feminino’, e tornar-se um estudo do que é a beleza e glamour masculinos, ele ofereceu inspiração para milhões, seja qual fossem seus gêneros ou sexualidades. Bowie era o protótipo da metrossexualidade – algo que é, de várias maneiras, a versão esnobe e pré-fabricada, no século 21, de seu experimentalismo nos anos 1970. Seja qual for a ‘verdade’ a respeito da sexualidade de Bowie, ele tirou do armário a bissensualidade masculina pra valer. Um legado liberador e inestimável – seja qual for seu gênero ou sexualidade.”

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2 comentários

Daniel Rodrigues

“O tempo todo ele se negou a identificar ou fixar sua sexualidade. Bom para ele – e para nós”

Não pra mim. Gente que usa a sexualidade e identidades que não tem para causar e ganhar holofote não me beneficia em nada.

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