Fingir que gays não são mais vulneráveis ao HIV que héteros é perigoso e irresponsável

A solução para o estigma que recai sobre os soropositivos não é fingir que o vírus afeta a héteros e gays igualmente, mas tratar a vida com HIV com respeito, dignidade e serenidade

por Marcio Caparica

A Aids é uma doença terrível, e ninguém – nem grupo nenhum – gosta de estar associado a ela. Numa sociedade que enxerga o sexo de maneira tão negativa quanto a nossa, uma doença sexualmente transmissível mortal tornou-se a confirmação de que os devassos estavam sendo punidos. Muita coisa mudou nos 30 anos desde que a epidemia do HIV começou, mas essa associação entre “comportamentos sexuais errados” e castigo continua presente.

O post “6 clichês gays que são a mais pura verdade” gerou muitas críticas, vindas aparentemente de quem acha que a única maneira de se combater estereótipos é negar sua existência totalmente. Em especial, o último clichê da lista, “Aids é doença de gay”, causou muito desagrado. Esse texto é uma tradução, mas não estaria nesse blog se eu não concordasse com sua argumentação. É compreensível que, devido às conotações negativas já citadas, e ao uso “inocente” e calhorda que muitos fazem da Aids para destilar sua homofobia, os gays façam todo o possível para se dissociar do HIV. A escolha de palavras pode não ter sido a melhor. Quem sabe se em vez de afirmar que “Aids é doença de gay”, como estava no original, talvez o ideal tivesse sido dizer que “Aids faz parte da vida e da cultura gay”. Porque negar que o vírus (ainda) faz muito mais parte da vida dos homossexuais masculinos, travestis e mulheres trans não ajuda a reverter esse quadro.

De início, vamos reafirmar: hétero também pega HIV. E cada vez mais. Quando afirmamos que o HIV afeta muito mais a população LGBT, não estamos dizendo que a transmissão ocorre apenas no sexo entre gays, travestis e trans. Como bem apontaram nossos leitores, 67,5% das novas infecções reportadas em 2012 foi de heterossexuais, sendo que 58,2% delas era de mulheres. Isso, no entanto, não quer dizer que a maioria dos soropositivos hoje em dia seja heterossexual –  essas são novas infecções. Vamos concordar que, se isso é notícia em 2014, certamente a situação era a inversa nas três décadas antecedentes.

O Brasil tinha uma população de 201 milhões de habitantes em 2013. Um relatório da ONU divulgado esse ano aponta que o Brasil tenha 730 mil soropositivos, ou 0,3% da população. Um estudo do Ministério da Saúde feito em 2010 estimou que 10% da população homossexual masculina dos grandes centros urbanos seja soropositiva.  Para que os heterossexuais corressem o mesmo risco de serem infectados com o HIV ao fazer sexo sem proteção que um homossexual, o número de soropositivos total no Brasil teria que ser de 20 milhões (10% da população brasileira). Felizmente estamos bem longe disso. Mas não há como negar que os gays ainda estão correndo muito mais risco de serem infectados que os héteros.

Ao contrário do que pessoas mal-intencionadas tentam vender, a culpa disso não é de uma suposta maior promiscuidade dos gays – os homens héteros são tão promíscuos quanto os homens homossexuais. A maior prova disso é que em países da África subsaariana, onde a epidemia é um problema muito mais grave do que no Brasil, há 25 milhões de infectados, ou 4,5% da população total – chegando a extremos de 26.5% da população da Suazilândia, 23% da população de Botsuana, e 17,5% da população da África do Sul. A causa para que a epidemia ainda se concentre na população HSH (homens que fazem sexo com homens) no Brasil é biológica. O Center for Disease Control dos Estados Unidos publicou em julho a seguinte tabela sobre os riscos de transmissão de HIV:

Tipo de Exposição Risco por 10.000 exposições
Parenteral
Transfusão de sangue 9.250
Compartilhamento de seringas para uso de drogas 63
Percutâneo (com agulha) 23
Sexual
Sexo anal receptivo 138
Sexo anal insertivo 11
Sexo pênis-vaginal receptivo 8
Sexo pênis-vaginal insertivo 4
Sexo oral receptivo baixo
Sexo oral insertivo baixo
Outros
Morder desprezível
Cuspir desprezível
Arremessar fluidos corporais (incluindo sêmen ou saliva) desprezível
Compartilhar brinquedos sexuais desprezível

Como fica claro, o sexo anal é muito mais infeccioso que o vaginal. Pessoas heterossexuais e homossexuais fazem sexo anal. Mas os HSH fazem sexo anal muito mais. Vivemos numa situação em que dois fatores se acumulam para aumentar nosso risco: fazemos um tipo de sexo mais arriscado, numa população com uma prevalência de vírus muito maior. Querer então promover a ideia de que gays correm o mesmo risco de serem infectados que os héteros é uma irresponsabilidade, uma tentativa de manobra de relações públicas que não beneficia a população gay, pelo contrário, a mantém ignorante e a expõe a maiores riscos.

O que todos deveriam promover é a prevenção do HIV, como o uso de preservativos, o uso da profilaxia pré-exposição (PrEP), e gerenciamento consciente de riscos. Há também uma maneira social de se incentivar a prevenção: eliminar o estigma que ainda recai sobre os soropositivos. O medo de se descobrir portador do HIV faz com que muitos evitem fazer o teste (54% dos portadores do vírus HIV não sabem disso). Pessoas que não conhecem seu status não se tratam, ficam por mais tempo com sua carga viral alta, e portanto têm mais chance de transmitir o vírus para outras pessoas (soropositivos que se tratam e têm a carga viral indetectável são praticamente não-infecciosas). O medo do sofrimento social decorrente da soropositividade faz com que muitos prefiram “não saber” para que tudo continue “normal” por mais tempo.

Tornar-se soropositivo não é legal, nem é “de boa”. Tenho certeza que a imensa maioria dos soropositivos prefeririam nunca terem sido infectados. Há problemas físicos (cada vez menores), mas, visto que terão que conviver com o HIV pelo resto da vida, de nada ajuda jogar por cima uma camada de culpa, vergonha e segregação social. Quem é soropositivo hoje vai ter uma vida tão longa, produtiva e feliz quanto um soronegativo, desde que se trate. Podem fazer planos e amarem como qualquer outro ser humano, desde que administrem o vírus em suas vidas. Quem é soronegativo deve educar-se, livrar-se dos preconceitos relacionados ao HIV e dar ao status sorológico de alguém a mesma importância que a diabetes, colesterol alto ou intolerância a glúten.

E quem precisa fazer isso mais que todos são os próprios gays, que muitas vezes discriminam aqueles que revelam serem soropositivos. Vamos falar claramente: você que hoje não tem HIV, ano que vem pode descobrir que contraiu. Sendo explícito de maneira que o texto gringo não podia ser: todos nós já passamos por uma situação em que ficamos com a consciência pesada, na dúvida se fomos infectados ou não. Quando a camisinha estoura. Quando você bebeu ou se chapou demais e não lembra se transou com preservativo – ou pior, tem certeza que não usou camisinha. Uma transa desprotegida pode ser o suficiente para transformar sua vida toda. Uma cultura que não estigmatiza os portadores do HIV previne novas infecções, e torna melhor a vida dos soropositivos – presentes e futuros.

Por fim, as perguntas mais incômodas, porém necessárias: em seu círculo de amigos gays, quantos deles têm HIV? Quantos amigos contraíram o vírus ultimamente? Quantos amigos seus já namoraram um soropositivo? Quantos soropositivos você já namorou? E com quantos você já transou, sabendo ou não? Agora faça essas mesmas perguntas em relação aos seus amigos heterossexuais.

Ok, você pode dizer que nós conhecemos um número limitado de pessoas, em um espaço geográfico limitado e portanto essa avaliação seria inconclusiva e extremamente subjetiva. Sim, mas a OMS, que lida com números globais, já constatou nossa vulnerabilidade e, por conta disso, indicou o uso de Truvada para os HSH. Este vírus é uma sombra em nossa comunidade. Temos de trazê-lo para a luz.

Apoie o Lado Bi!

Este é um site independente, e contribuições como a sua tornam nossa existência possível!

Doação única

Doação mensal:

12 comentários

Melissa Reis

Artigo muito bem feito e embasado. É uma realidade queiram ou não, e quem tiver o mínimo de sabedoria tenha humildade de aceitar que este grupo é realmente mais vulnerável e se previna.

André Tsuchiya

É inegável a predominância do HIV entre rapazes homossexuais. Não se trata de um preconceito, mas sim de uma realidade amplamente investigada por profissionais pesquisadores, médicos e professores universitários que, convenhamos, não podem ser desautorizados por qualquer um comentando na internet. Opinião e choro são livres, mas o que é descrito a partir do método científico sempre vale mais do que qualquer opinião politicamente correta.

lucas

Querendo ou não, Nos gays somos bem mais vulneráveis a contaminação por hiv sim, ignorar isso é burrice e um des serviço com nós mesmos.

Ramiro Catelan

Uma dica fundamental: aids e hiv não são sinônimos, não são a mesma coisa, como é tratado no texto. hiv é o vírus que causa a aids, e são coisas bem, bem diferentes. Tem que estudar antes de escrever “texto crítico”. Os comentários anteriores feitos ao post anterior deste site não foram no sentido de menosprezar as diferenças entre heterossexuais e homossexuais – que são muitas, ninguém nega -, mas ao tom estigmatizante e preconceituoso usado. Reproduzir senso comum e preconceito não irá ajudar em nada a combater uma questão de saúde que, sim, ainda atinge muito a população LGBT. Mas não porque “aids é doença de gay”. O fenômeno é muito mais complexo do que dizer que gays estão mais vulneráveis. Esse próprio conceito é bastante controverso. Pessoas que são historicamente estigmatizadas, achacadas, perseguidas, violadas e privadas de direito terão menos acesso aos equipamentos de proteção, menos práticas de prevenção, menos profilaxia, comparecerão menos aos serviços de saúde por medo de serem maltratadas e não aderirão ao tratamento por conta de duplo preconceito, pelo hiv/aids e por terem orientação não heterossexual. Todas situações muito mais complexas do que uma “reflexão rasa” sobre como aids é “doença de gay” e gays são mais vulneráveis que héteros. Não é porque são um bando de ignorantes que acham que tem os mesmos riscos que heterossexuais. Até porque existe diferença entre prevalência e incidência de doenças. E não se fala mais em população vulnerável há muito tempo: o conceito atual preconizado pelo Ministério da Saúde é comportamento de risco, e não grupo de risco, pois, segundos dados epidemiológicos recentes – que vocês provavelmente não lerão antes de cometer este post -, as infecções estão se generalizando e não incidem mais sobre grupos específicos. Qualquer dúvida é só consultar este site: http://www.aids.gov.br/. Mais humildade/respeito e menos desinformação.

James Cimino

Eu concordaria contigo se a própria OMS não tivesse contradito essa ideia quando soltou uma recomendação de que HSH usassem o Truvada como método de prevenção contra a infecção de HIV. O texto está coberto de números e dados e se isso ajuda pessoas mal intencionadas a criarem estigmas, também ajuda pessoas esclarecidas e procurar o que fazer e que atitudes tomar. O mal intencionado sempre vai achar uma justificativa rasa para alimentar seu preonceito. E nós não estamos preocupados com esse tipo de gente. Estamos preocupados em nos comunicar com pessoas que estejam dispostas a refletir sobre a realidade dos fatos. Você veio aqui com esse tom autoritário, como se apenas a sua opinião fosse verdadeira e incontestável, mas em nenhum momento se colocou com a tal “humildade” que colocou no final do texto. Novamente, peço que você responda a si mesmo as perguntas que fizemos no fim deste post e responda-as com sinceridade se você acha mesmo que o HIV é algo que não faz parte do dia a dia da comunidade LGBT.

James Cimino

Ah, mais uma coisa: sabemos muito bem que Aids e HIV não são a mesma coisa. Agora, faz alguma diferença nesse debate?

Marcio Caparica

Oi Ramiro. Tomo muito cuidado com essas distinções. Reli o texto e não encontrei o trecho onde uso HIV e Aids como sinônimos, você pode me apontar isso, por favor? Também não nego a diferença entre prevalência e incidência, acho. Aponto que o perfil está mudando quando cito a informação de que a maioria das novas infecções são de heterossexuais. Mas isso não quer dizer que não existam muito mais gays infectados ainda que heterossexuais – e, mesmo se os números absolutos se inverterem, a concentração de soropositivos entre gays (que são no máximo 5% da população total) ainda será muito maior que entre héteros. Fiz muita pesquisa antes de escrever esse texto, como fica claro pela profusão de links que pontua cada estatística que eu cito, inclusive o aids.gov.br . Mas estamos abertos a críticas construtivas. Humildade e respeito não faltam.

Gabriel Dodopoulos

E porque você não faz um texto crítico sobre campanhas para que soropositivos possam se abrir e combater o estígma do preconceito? Quantos profissionais, atores, cantores, estilistas, músicos e celebridades são positivos e não vestem uma camisa para haver um combate ao estigma? Porque a mídia e a classe artística não toma esse partido já que nenhuma empresa privada gostaria de ter seu nome vinculado a esse patologia como o câncer que gera receitas e marketing sociais enormes?

James Cimino

Se você pesquisar nossos posts anteriores irá encontrar um deles em que eu falo exatamente isso: por que os gays brasileiros não comentam seu status sorológico?

Comments are closed.