Escritor conta como “Will & Grace” revolucionou a TV americana

No livro “The Future of Men: End of the Age of Dominant Males”, Jack Meyers dedica um capítulo sobre as representações dos LGBT na televisão

por Marcio Caparica

Trecho traduzido e adaptado do livro The Future of Men: End of the Age of Dominant Males (O futuro dos homens: fim da era dos machos dominantes) de Jack Myers, publicado no site Huffington Post pelo autor.

A arte, quando em sua melhor forma, permite que as pessoas experimentem a vida de outros e, em última instância, transforma a maneira como veem o mundo. Will & Grace foi um dos raros programas de televisão que conseguiram exatamente isso. Ele era divertido, mas fez mais que apenas entreter seus telespectadores.

Will & Grace levou aos Estados Unidos uma perspectiva que era completamente oposta à crença popular. Em setembro de 1998, depois do fracasso da série Ellen no canal ABC, Will & Grace estreou no canal NBC como o primeiro programa a ter um personagem masculino abertamente gay como protagonista no horário nobre. Desafiando as expectativas, essa sitcom seria exibida de 1998 até 2006, e estaria entre as sitcoms com maior audiência nos EUA entre telespectadores dos 18 aos 49 anos entre os anos de 2001 e 2005. Não há dúvidas de que o programa abriu as portas e fez com que o país se acostumasse à homossexualidade, abrindo o caminho para programas futuros. Ao contrário do que se costuma dizer, no entanto, ele não é um programa sobre homossexualidade. O seriado é na verdade sobre compreender e ser capaz de dar valor e apreciar um dos maiores presentes da vida: a amizade.

Apesar da proposta do show supostamente ser sobre dois melhores amigos, Will e Grace, um que calha de ser heterossexual e outro que não é, a trama na verdade dá seguimento a um velho chavão das sitcoms: será que a união de duas pessoas opostas vai, mais cedo ou mais tarde, se consumar romanticamente? Admitamos, a premissa de que a vida de Grace gira em torno de encontrar o homem perfeito também não é algo muito lisongeiro para as mulheres.

O seriado se concentra nos relacionamentos e encontros sexuais dela e raramente cruza a “linha de conforto” que algumas pessoas teriam traçado debruçando-se sobre os relacionamentos e vida sexual de Will. As pessoas não têm problema quando uma mulher tem um “melhor amigo gay” contanto que elas não tenham que saber muito sobre sua vida pessoal (ou sexual). Isso se torna particularmente fácil de engolir se ele é de classe social alta, branco, estrito, e não tem qualquer “comportamento gay” que deixe as pessoas desconfortáveis. Grace aparece com vários amantes durante o seriado, interpretados por atores como Harry Connick Jr., Edward Burns e Woody Harrelson; Will às vezes tem um casinho de um episódio, mas nunca é visto em um relacionamento duradouro, apesar de que se menciona na primeira temporada que ele teve um relacionamento de sete anos no passado.

Oscar Martinez, de The Office

Oscar Martinez, de The Office

O principal alívio cômico em geral é Jack, o melhor amigo de Will. Ele é assumido e orgulhoso disso, mas também é tão exagerado que não chega a ser uma ameaça. Tudo a respeito de seu personagem raso é pensado para provocar riso. Compare-o com outro personagem gay, Oscar Martinez do seriado The Office. Ambos são espirituosos e sarcásticos, ainda assim o personagem Oscar não é uma caricatura e não é escrito como o gatilho afetado de piadas. Ele é inteligente e meio sério demais – e é um trabalhador de escritório latino.

Jack é afetado, exuberante, ama teatro e fala o que quer, e essa personalidade também tem outra utilidade: ao apresentar um contraste com o comportamento “quase hétero” de Will, ela faz de Will uma representação do homem gay ainda mais segura e fácil de digerir. Isso está alinhado com a nova imagem dos gays apresentada pela mídia como assexuados-porém-“masculinos”, uma imagem que não ameaça a heteronormatividade da sociedade padrão. Will tem autocontrole e um cérebro; Jack é promíscuo e cabeça-de-vento. Apresenta-se duas opções: você é um gay “tipo Will” ou “tipo Jack”?

Pode-se debater se Will & Grace ensinou ao público leigo muito sobre as verdadeiras questões LGBT, ou sobre considerações fora de estereótipos, mas algo não pode ser questionado: há mais personagens gays na televisão hoje em dia. Ninguém pode negar que Will & Grace conseguiu um lugar na história cultural como o veículo que tirou a homossexualidade do armário da TV.

Uma pergunta permanece hoje, no entanto: a quantidade pura e simples de personagens gays na televisão é de alguma forma mais importante que a qualidade dessas representações?

Joe Biden, vice-presidente de Barack Obama, já disse no programa Meet The Press acreditar que Will & Grace fez mais pela evolução da causa da população gay que qualquer outra coisa.

Os críticos num primeiro momento descartaram o seriado, alguns dizendo que ele era um “Seinfeld gay”, e outros duvidando que um seriado sem qualquer tensão romântica entre os protagonistas masculino e feminino pudesse durar muito. Esses críticos estavam errados, já que o seriado durou oito temporadas. Ele também foi candidato a 83 prêmios Emmy e ganhou 16 deles. Parte da razão do sucesso do seriado é que ele realmente é, em parte, simplesmente um Seinfeld gay. No entanto a homossexualidade não é seu tema central. Mesmo os dois protagonistas sendo um homem gay e uma mulher hétero, ele simplesmente não é sobre ser gay. Ele apenas calha de ter personagens gays em seu elenco. Isso abriu caminho para outros seriados que apresentaram questões gays e personagens gays. Em suma, essa falta de ênfase em ser gay fez com que a homossexualidade fosse uma questão menos ameaçadora e a empurrou para o segundo plano.

Muitos dos c0nflitos centrais de Will & Grace tratam de problemas comuns como encontrar emprego, romance, brigar com amigos e ter filhos. Dessa forma, Will & Grace revelou ao público que um programa não tem que ser sobre a comunidade gay se incluir um protagonista gay. Ele também serviu para demonstrar que as preocupações da comunidade gay – amigos e família – são as mesmas preocupações da comunidade hétero.

Antes de Will & Grace

Antes de Will & Grace houve poucos seriados de temática gay de sucesso. No mesmo ano em que Will & Grace estreou, Ellen DeGeneres já havia causado polêmica com um episódio de Ellen em que a personagem-título se declarava gay (assim como a atriz que a interpretava). O episódio em que Ellen saiu do armário amealhou uma resposta muito positiva dos telespectadores, mas o show foi cancelado pouco depois. Quando a personagem Ellen Morgan se assumiu lésbica no seriado, também houve críticas tão intensas que a atriz relatou ser seguida em seu carro por homens desconhecidos, e os produtores do seriado receberam inúmeras ligações de telespectadores enfurecidos. Hoje parece ser muito mais aceitável incluir personagens homossexuais na televisão e evitar fazer da homossexualidade a ênfase do seriado. Mesmo quando a homossexualidade tem grande proeminência dentro dele, há espaço para que a trama se afaste dela para cobrir outros assuntos.

Muitos acreditam que Will & Grace influenciou a televisão gay. Inclui-se nisso programas como Six Feet Under, Glee, The New Normal, Modern Family, Warehouse 13 e Orange Is The New Black. Em todos esses programas há protagonistas gays, mas sua homossexualidade poucas vezes é explorada como tema. Modern Family é um sucessor espiritual direto de Will & Grace. Muito do humor desse seriado envolve o casal gay do elenco, e mesmo assim ele foi bem recebido pelos telespectadores e conseguiu altos níveis de audiência. Volta e meia ele recebe críticas por não exibir qualquer química entre os dois personagens gays, mas ele também já ganhou muitos prêmios, sendo candidato ao Emmy 17 vezes. Assim como Will & Grace, em Modern Family a homossexualidade é uma parte importante do seriado mas não é seu ponto principal.

Os seriados hoje são capazes de ter protagonistas gays sem dar ênfase a isso. Isso comunica que ser gay é algo tão normal quanto qualquer outra característica de personagens, como ser ruivo ou seguir uma certa religião.

Will & Grace também é considerado responsável pela produção de Queer as Folk, Queer Eye For The Straight Guy e Boy Meets Boy. Esses três programas foram bem recebidos pelo grande público e obtiveram sucesso comercial.

Queer Eye For The Straight Guy foi um exemplo excelente de um programa que apresentou ao público hétero um ponto de vista da comunidade gay que havia até então passado despercebida pelos héteros. No programa homens gays realizam uma transformação completa num homem hétero – e, em geral, machão. Apesar de não ser a maneira perfeita de apresentar a comunidade gay, o programa fez muito nos sentido de comunicar que a comunidade gay não é nem jamais será uma ameaça à maneira de viver dos heterossexuais. Queer Eye For The Straight Guy também foi criticado por se apoiar em estereótipos, mas mesmo assim foi extremamente popular.

David e Keith, casal gay de Six Feet Under

David e Keith, casal gay de Six Feet Under

Six Feet Under foi uma série ímpar por contar com dois personagens gays, e mostrar a relação entre eles em peso, apesar de seus temas centrais lidarem com outros assuntos. O relacionamento gay recebe mais ou menos a mesma importância que os outros relacionamentos do seriado, e é apresentada de maneira bastante similar. Six Feet Under acabou por ser um programa de muito sucesso, e não foi penalizado ou prejudicado de nenhuma maneira importante por causa de seus elementos gays. De maneira geral, ele humanizou seus personagens e relacionamentos gays de uma maneira extremamente digna e elogiada pela crítica.

Outra série que apresentou temáticas gays foi Thirtysomething. No sexto episódio da terceira temporada, Russel, um pintor, conhece Peter, um publicitário. Os dois, depois de um empurrãozinho de amigos em comum, são apresentados e combinam um jantar de negócios. Peter dá conselhos profissionais excelentes para Russel com respeito a sua exposição que está por vir, e demonstra um talento para compreender Russel por meio de sua expressão artística. Os dois se dão bem, e Peter acaba passando a noite na casa de Russel.

Desde o primeiro instante Russel tenta se convencer a evitar a atração por Peter. Não é que ele esteja no armário: os dois são um tanto discretos, mas abertamente gays, o que era algo aterrorizante para telespectadores da época. Ser gay no fim dos anos 1980 e no começo dos anos 1990 era algo assustador, já que esse era o auge da epidemia da Aids, e sabia-se muito pouco sobre a doença. Não por opção própria as pessoas da comunidade gay tinham algo em comum: todos conheciam alguém era soropositivo, ou que havia morrido de Aids.

Esse elo é trazido como se não fosse nada demais nesse episódio quando Russel e seu novo interesse romântico vão para a cama pela primeira vez. A informalidade do tom da conversa fala tudo; a epidemia é uma parte muito grande e muito real de suas vidas, e  falar de procurar nomes familiares no obituário com a mesma naturalidade com que se confere a página de esportes ou as palavras cruzadas é algo que apenas dois gays poderiam fazer.

Era fácil para o telespectador se reconhecer nesse relacionamento entre Peter e Russel, apesar de ser homoafetivo, algo estranho à maioria dos telespectadores heterossexuais. A hesitação que Peter sente ao se aproximar de Peter, por exemplo, mesmo com o incentivo e apoio de Melissa, se aplica a todos os novos relacionamentos. Quem assistia podia se ver não apenas em seu medo de estabelecer um compromisso, mas compreender o mundo gay um pouco melhor por causa disso. Sua vulnerabilidade permitia aos telespectadores imaginar como deve ser evitar criar relacionamentos novos por medo de vir a perder mais um amigo íntimo.

Nesse episódio Peter é ainda mais apreensivo que Russel. Ele deixa que Russel tome a iniciativa, e mesmo aceitando cada investida, ele o faz com reservas. Mesmo admitindo que ele é aberto com a maior parte das pessoas quanto a sua sexualidade, algo muito corajoso para a época, ele compartilha do mesmo medo de compromisso de Russel. Ver os dois sentirem atração um pelo outro mas ao mesmo tempo sentirem tanto medo adiciona um elemento de tristeza para a trama. Os dois personagens são pessoas muito simpáticas, atraentes e bem-sucedidas. Os telespectadores automaticamente desejam um final feliz, como costuma acontecer quando se vê duas pessoas que deveriam ficar juntas finalmente se unirem. A oportunidade de se enxergar em dois homens gays foi um presente dos roteiristas do programa para os telespectadores. Isso nunca havia sido feito.

Antes de Will & Grace os programas de TV abordavam temáticas gays com muito cuidado. Em Three’s Company (Um é pouco, dois é bom, três é demais no Brasil) Jack, o personagem principal, tem que fingir que é gay para o dono de sua casa para poder viver com duas mulheres. Depois de Will & Grace programas como Thirtysomething trouxeram um viés totalmente diferente; eles romperam com antigos estereótipos que precisavam ser completamente destruídos. Ser gay não era mais ser o alvo de piadas. Agora era parte da vida, uma realidade que finalmente vinha à luz depois de ser por tanto tempo o elefante na sala. Os roteiristas de Thirtysomething fizeram mais que criar personagens gays em seu programa: eles lhes deram voz própria, lhes tornaram visíveis. Foi polêmico na época, sim, mas algo muito apreciado tanto por gays como héteros que não aguentavam mais a injustiça de ver homossexuais sendo tratados com discriminação.

Harvey Milk, o primeiro político abertamente gay dos Estados Unidos (e que foi assassinado) disse:

Todos os gays devem se assumir. Mesmo que seja difícil, você deve contar para seus parentes próximos. Você deve contar para os outros parentes. Você deve contar para seus amigos, se eles realmente são seus amigos. Você deve contar para as pessoas que trabalham com você. Você deve contar para as pessoas nas lojas em que você faz compras. Quando perceberem que nós somos seus filhos, que nós estamos por todas as partes, todos os mitos, todas as verdades, todas as insinuações serão destruídas para sempre. E quando você fizer isso, você vai se sentir muito melhor.

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Conforme a aceitação da população homossexual aumenta, é bem provável que os seriados vão incluir cada vez mais personagens gays, tanto em papéis coadjuvantes como em protagonistas. Os programas devem passar a dar menos ênfase em ser gay e se concentrar mais nas personalidades dos personagens em si. Isso significa que ser gay não tem mais que ser a característica predominante no perfil do personagem, e que os personagens serão capazes de se tornar indivíduos complexos e tridimensionais que também são gays.

Conforme os gays conquistam maior visibilidade e proeminência na sociedade e na mídia, a imagem cultural do “homem de verdade” vai se alterar na mesma medida, e a objetificação das mulheres em comerciais vai se tornar menos comum. Seja para serem politicamente corretos ou seja um sinal de como os estúdios enxergam a realidade, hoje os personagens gays masculinos na TV são retratados como homens mais sensíveis, criativos, cultos, espertos, honestos e mais ligados com suas emoções.

Jovens heterossexuais expostos a exemplos de homens gays que se dão bem com as mulheres tanto na TV como na vida real serão mais propensos a copiar seu comportamento que os comportamentos menos respeitados e menos bem sucedidos do machão tradicional, misógino e objetificador. É irônico e, tenho certeza, polêmico que a imagem do homem ideal que está emergindo na sociedade e na mídia seja gay, exibindo mais características femininas, e distante do macho alfa que vem dominando a mídia e a sociedade desde o início dos tempos.

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4 comentários

Rodrigo

Que texto maravilhoso! Eu realmente amo Will and Grace acho que ele foi e sempre será formidável em mostrar varias perspectivas de um homem gay afinal somos homens ainda não mudamos pra fadinhas só por sermos gays, muito menos somos ogros somos o que somos a opção sexual não “afeta” sua personalidade.

Rhenan

<3 Six Feet Under. Minha serie favorita até hoje. Nenhuma outra série te, personagens tão humanos e fala tão bem de relações humanas.

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