Um menu que até recentemente vivia meio esquecido no rodapé das páginas do YouTube ganhou notoriedade essa semana entre os internautas LGBT. Pode conferir: lááá embaixo, em qualquer página, há uma opção de ligar ou desligar o modo restrito no maior site de vídeos do mundo. O alarme soou no começo da semana: quando ativada, essa opção faz com que vídeos com conteúdo LGBT desapareçam das páginas de buscas e canais. É como se simplesmente não existissem.
“Essa opção foi criada para filtrar páginas com conteúdo sensível, como cenas de violência, conteúdo adulto, situações de distúrbio alimentar”, explica Mola, dono do canal O Lado Bom do Mundo. “Percebemos que vídeos relacionados à comunidade LGBT são censurados quando o modo restrito fica ativado. Canais inteiros, como Põe Na Roda, Canal das Bee e Mandy Candy passam a ficar praticamente sem conteúdo. Até canais que não abordam sexualidade diretamente, como o de Federico DeVito, têm grande parte de seus vídeos limados quando se navega em modo restrito”. E isso provavelmente não é de agora – esse tipo de peneira certamente já vem acontecendo há meses, desapercebidamente.
Essa bela bola fora não prejudica apenas os pageviews dos youtubers – ela pode causar danos, principalmente, a inúmeros usuários do site que vieram a depender desses vídeos para se informar e encontrar apoio para seus dilemas pessoais. Isso é particularmente importante para jovens LGBT. “Todos os dias recebemos mensagens de garotos e garotas de todo o país dizendo que nós somos seus únicos amigos”, conta Pedro HMC, co-criador do Põe Na Roda.
Antes do advento da internet, era comum que jovem que percebia ser homossexual ou transgênero pensasse que era a única pessoa no mundo que sentia isso. A informação era bastante restrita, gay, lésbicas, bis e trans raramente apareciam na mídia (a não ser em retratos extremamente depreciativos), e a educação sexual, quando existente, se limitava à mecânica da relação heterossexual. Já se saía da adolescência com a chave do armário no bolso.
Mas eis que o mundo criou as interwebs, e entre vídeos de bichinhos engraçadinhos, memes criados na velocidade da luz e comentários mal-educados em blogs, abriram-se frestas para que a comunidade queer se reunisse. Com uma simples busca todos aqueles que não se encaixavam nos padrões descobriam que não estavam mais sozinhas no mundo. Esse é um dos maiores benefícios que a vida virtual trouxe à vida analógica: graças à internet, ninguém mais pensa que é o único ponto fora da curva das pessoas-padrão. A comunidade assexual, por exemplo, só veio a se aglutinar graças às comunidades online.
E isso, é claro, incomoda quem quer impor um comportamento normativo sobre os outros. Não é à toa que muitas vezes o primeiro passo de pais que querem tolher a sexualidade emergente dos filhos é cortar-lhes o celular, a internet e o convívio com amigos. Ainda presos à falácia de que “se é” heterossexual, mas “se aprende” a ser LGBT, familiares (às vezes até bem-intencionados) fazem o possível para reprimir jovens queer. Mas eles agora têm maneiras de burlar essa patrulha.
“Esse tipo de filtro é um problema porque ele é a configuração padrão utilizada em bibliotecas, escolas e várias instituições públicas”, explica HMC. Ou seja, a maioria dos locais procurados por alguém que está se descobrindo e quer navegar pela web longe da vigilância da família. Ao colocar conteúdo queer no mesmo balaio que violência, incitação a ódio, tutoriais de bulimia e outras pautas realmente questionáveis, o YouTube acaba privando internautas queer de informações que podem salvar suas vidas.
Não há dúvida que os assuntos de interesse LGBT necessariamente tangenciam assuntos que muita gente considera tabu. “A gente fala sobre sexo, é claro. Não apenas sobre aquilo que já vivemos e achamos importante explicar, como também compartilhamos o que está acontecendo com a gente no momento, na vida de uma mulher de 25 anos”, afirma Jessica Tauane, do Canal das Bee. “Mas fazemos isso de maneira responsável. Nossa intenção é somar. Enquanto as informações que oferecemos são consideradas perigosas pelo modo restrito, vídeos de pastores incitando o ódio continuam ignoradas por qualquer tipo de filtro.”
Quando se trata de uma população especialmente vulnerável a DSTs e ao abuso de drogas, esse tipo de censura é particulamente prejudicial. “A gente recebia tanta dúvida dos internautas com relação a saúde que passamos a fazer uma série de vídeos chamada Ajuda, Põe Na Roda, em que um médico tira as dúvidas do público”, relembra HMC. “Depois disso, a quantidade de questões só aumentou. Como não conseguimos responder a todos, criamos um grupo no Facebook com o mesmo nome, em que os membros ajudam-se uns aos outros e encontram um ambiente amistoso para esclarecerem suas questões.”
Essa formação de uma comunidade é outro efeito tão importante para a sobrevivência de LGBTs quanto a informações sobre questões de saúde. Mesmo depois de tantos avanços sociais, a incidência de suicídios e tentativas de suicídios entre gays, lésbicas e pessoas trans é muito maior que a média da população heteronormativa. Quem vive em São Paulo, Rio de Janeiro ou outras cidades com uma comunidade queer de bom tamanho se esquece que, em grande parte do país, ser homossexual ou transexual é sinônimo de isolamento. Os vídeos gerados pela comunidade queer para a comunidade queer são a única janela para um mundo diferente para essas pessoas. Os comentários com os criadores e o acesso a outros internautas com os mesmos interesses tornam-se uma rede de apoio fundamental. “Vivemos num diálogo constante com nosso público”, continua Tauane. “Pessoas de todas as idades buscam nosso apoio. É incrível ver que alguém mais velha passa pela mesma coisa que uma menina.”
Incidentalmente, os vídeos educam não apenas LGBTs, mas também héteros. “Isso também é muito recorrente: pessoas HT que nos dizem que estão aprendendo a se desfazerem de seus preconceitos porque assistem a nossos vídeos”. E, no entanto, o modo restrito do YouTube coloca uma tarja preta de invisibilidade em qualquer coisa queer: casamentos entre lésbicas, clipes de cantores gays, tutoriais de maquiagem para pessoas trans, divagações sobre as indentidades bissexual e pansexual. Tudo tão chocante quanto uma cena de atropelamento, aparentemente.
Como grande parte do maquinário vitual do Google (que no passado já tirou do ar, indevidamente, um dos principais blogs feministas do Brasil, o Escreva Lola Escreva), o processo de avaliação do que é permitido ou não no modo restrito é feito automaticamente por algoritmos, levando em conta “avisos da comunidade, restrições por idade e outros significantes para identificar e filtrar conteúdo possivelmente inapropriado”. Ao que tudo indica, alguns desses significantes são as palavras “gay”, “lésbica” e “transgênero”. Devido à repercussão internacional negativa contra essa peneira, o YouTube publicou em seu blog um pedido de desculpas oficial:
Nos últimos meses, e sem dúvida durante os últimos dias, nós recebemos muitas questões vindas da comunidade LGBTQ e outras mais querendo saber o que é o Modo Restrito e como ele funciona. Nós compreendemnos que isso foi causa de confusão e irritação, e muitos demonstraram preocupação sobre como seu conteúdo pode ser afetado de maneira injusta pelo Modo Restrito. A verdade é que essa ferramente não está funcionando da maneira que deveria. Nòs pedimos desculpas, e nós vamos consertá-la. (…)
O sistema nunca será completamente perfeito, mas nós temos que fazer um trabalho melhor, e vamos fazê-lo. Graças a seus alertas, nós revisamos manualmente os vídeos citados e tratamos de liberá-los para o Modo Restrito – e também utilizaremos essa informação para treninar nossos sistemas de maneira mais adequada. Vai levar algum tempo para fazer uma auditoria completa de nossa tecnologia e colocar no ar novas mudanças, então por favor tenham paciência.
Estamos aguardando, meus caros, mas não com tanta paciência. Vidas LGBT dependem do seu serviço. Não nos deixem na mão.