Traduzido do artigo de Damon L. Jacobs para o site TheBody.com
No dia 18 de outubro, durante a conferência 2016 HIV Research for Prevention em Chicago, o clínico de HIV veterano Howard Grossman compartilhou as informações de um paciente que adquiriu o vírus HIV apesar de apresentar resultados laboratoriais que indicavam o uso consistente de Truvada (tenofovir/FTC) como forma de profilaxia pré-exposição (PrEP).
A utilização de PrEP aumentou rapidamente nos Estados Unidos durante o ano passado. Ao longo de um período em que Grossman estima por volta de 100 mil pessoas ao redor do mundo começaram a fazer PrEP, esse é apenas o segundo caso registrado de uma aquisição do vírus HIV por uma pessoa que havia aderido à PrEP. O primeiro caso foi registrado em fevereiro durante a CROI 2016.
Grossman, que já escreveu sobre sua própria decisão de fazer PrEP, conversou com Damon L. Jacobs, um especialista em prevenção do HIV para o site TheBody.com, para explicar os detalhes desse caso. Ele afirma que, com apenas dois casos registrados até o momento de infecção pelo HIV por pessoas que aderiram ao tratamento da PrEP, essa estratégia de prevenção continua sendo a tecnologia mais eficaz de evitar o vírus à disposição.
Como no primeiro caso, o novo paciente foi infectado por uma mutação muito rara do HIV que é resistente às duas drogas presentes no Truvada (assim como a uma gama de outras medicações contra o HIV). Grossman afirma que dessa vez, no entanto, a situação de risco do paciente provavelmente aconteceu durante o sexo anal insertivo (ativo), uma posição com risco de aquisição do HIV menor que o sexo anal receptivo (passivo).
O que aconteceu dessa vez?
Um homem que estava fazendo PrEP desde dezembro de 2015 veio fazer sua consulta de acompanhamento rotineira e realizou um teste para HIV de quarta geração. Seu parceiro é do sexo masculino e soropositivo, mas tem carga viral indetectável desde que obteve seu diagnóstico em 2012. O paciente havia feito sexo insertivo sem preservativo com seu parceiro, mas usava preservativo quando era receptivo. Quando fizemos mais perguntas, eles informaram que haviam se divertido com duas outras pessoas. Em ambas as vezes a pessoa que estava fazendo PrEP e havia adquirido o HIV havia sido o ativo.
Apenas uma parte do teste do HIV deu positivo – o teste qualitativo para HIV, que é o teste de amplificação de ácido nucleico (NAAT). Em outras partes desse teste e em outros exames, não havia sinais de antígenos ou anticorpos contra o HIV, nem havia carga viral.
Essa é a segunda vez que ficamos sabendo de uma infecção pelo HIV enquanto alguém fazia PrEP adequadamente. Isso quer dizer que a PrEP não funciona tão bem quanto se pensava?
Dois casos dentre mais de 100 mil pessoas é uma taxa de infecção muito baixa. A PrEP ainda é a ferramenta mais eficaz para a prevenção do HIV que se tem à disposição. Todos os estudos científicos sobre PrEP demonstram que ela não é 100% eficaz. Mesmo no estudo Partners, em que ninguém se infectou ao longo do estudo, os modelos matemáticos previam uma taxa de infecção de até 4% se os pacientes fossem acompanhados ao longo de 10 anos. Os cientistas consistentemente mantêm que a PrEP não é 100% eficaz. São as pessoas na comunidade gay que espalham a mensagem de que o tratamento é a prova de tudo.
Por que a PrEP não impediu a infecção pelo HIV nessa pessoa?
Ele foi infectado por um vírus resistente a várias drogas. Ele apresenta mutações que resistem à maioria dos medicamentos nucleosídeos e a alguns NNRTIs (inibidores de transcriptase reversa não-nucleosídeos). Não havia razão para que a PrEP funcionasse contra um vírus HIV resistente assim.
Como você sabe que essa pessoa havia tomado o Truvada corretamente?
Nós fizemos análises de sangue e análises de cabelo, assim como foi feito durante o estudo iPrex. Ambos exames confirmaram bons níveis de medicamento no organismo, o que indica uma aderência prolongada. Nenhum desses testes está disponível comercialmente.
Existe a crença de que ser o parceiro insertivo (“ativo”) coloca a pessoa em menor risco de contrair HIV. Isso mudou?
Bem, esse é o primeiro caso documentado, dentre aqueles que contraíram HIV fazendo PrEP, em que o paciente era ativo. Não há razões para se duvidar do paciente ou de seu parceiro. Eles foram muito solícitos. Assim como existe o mito de que ativos não contraem HIV, parece que aqueles que dizem que é impossível que um ativo contrair HIV fazendo PrEP também estão errados. No entanto, esse ainda é um evento extremamente raro. Nada é impossível na medicina.
Isso quer dizer é errado afirmar que um parceiro soropositivo com carga viral indetectável não transmite HIV?
De jeito nenhum. Teríamos esse receio caso houvesse indicação de que o vírus foi transmitido pelo parceiro do paciente, mas nós sabemos que não foi isso que aconteceu. Portanto, manter indetectável a carga viral de um paciente soropositivo continua sendo uma ferramenta de prevenção incrivelmente importante.
Agora que essa pessoa contraiu o HIV, como será seu tratamento?
Ele nunca teve carga viral e ainda é negativo para anticorpos do HIV. Ele continuou tomando Truvada enquanto nós tentávamos descobrir o que havia acontecido, e depois que ficou claro que ele provavelmente havia sido infectado, nós intensificamos seu tratamento com dolutegravir (Tivicay). Fizemos então análises de resistência no DNA proviral (mais uma vez, um exame disponível apenas para pesquisadores) que demonstrou resistência a todas as drogas análogas a nucleosídeos. Então reforçamos o tratamento ainda mais com Prezcobix, o darunavir fortalecido pelo cobicistat. Ele ainda está com a carga viral indetectável. Nós mantivemos o Truvada em seu tratamento, já que há indícios de que, mesmo com a resistência, os pacientes se saem melhor quando há drogas que contém medicamentos análogos a nucleosídeos em seu coquetel.
Há alguma maneira de uma pessoa soropositiva descobrir se a PrEP não funcionaria como maneira de proteger seus parceiros, já que há a possibilidade de que tenham sido infectados por um vírus resistente ao medicamento?
Essa é uma questão importante. Se o paciente é soropositivo e não está com a carga viral indetectável (já que a chance de se transmitir o vírus HIV quando a carga viral está indetectável é desprezível), ele pode procurar fazer um exame de resistência para determinar se há alguma mutação em seus vírus. Se os vírus dessa pessoa mostram resistência ao tenofovir e à emtricitabina, que são os componentes do Truvada, então a PrEP não vai funcionar como forma de prevenção para o parceiro soronegativo. Mais uma vez, quando se tem um parceiro fixo, é bem provável que essa informação esteja disponível.
Se a pessoa que está fazendo PrEP está fazendo sexo sem preservativo com um parceiro conhecido que não tem carga viral indetectável, o risco é bastante reduzido. Quando entram em jogo parceiros desconhecidos de status sorológico desconhecido, que podem não estar controlando bem sua infecção e talvez tenham algum vírus resistente – sim, pode haver risco.
Quais são as outras questões que esse caso traz à tona?
Outra questão importante levantada por esse caso é o fato de que nosso algorítmo atual de testagem para HIV pode não ser adequado para pessoas que fazem PrEP. Nesse caso, sem o auxílio dos profissionais dos laboratórios da Universidade da Califórnia em San Francisco, nós jamais conseguiríamos fazer o diagnóstico do paciente como fizemos, nem determinar sua aderência, determinar que seu vírus era geneticamente diferente do vírus de seu parceiro, ou determinar que tipo de mutações para resistência existiam nesses vírus. A maioria dos médicos não vai ter acesso a esse tipo de recursos.
Nós só conseguimos realizar um teste Western porque o laboratório Marty Markowitz nessa universidade era capaz de fazê-lo. Os laboratórios comerciais não fazem mais esse tipo de teste. Precisamos repensar se esse tipo de teste não seria útil e não deveria voltar ao circuito comercial. Ele também nos faz refletir sobre com o que deveremos tratar esses pacientes, já que esse tipo de teste para resistência a medicamentos também não está disponível para a maioria dos médicos.
Tomando por base esse novo caso, isso vai mudar muito a maneira como você ensina ou explica a PrEP para seus pacientes?
Eu sempre afirmei que acho que há maiores riscos de infecção quando se faz sexo com parceiros desconhecidos. Não há qualquer motivo para se pensar que a PrEP vai proteger alguém contra vírus que já desenvolveram resistência a essas drogas, então fazer sexo com pessoas que poderiam estar infectadas por um vírus resistente sem saber – ou que podem não tomarem seus remédios com assiduidade e estão com a carga viral alta – oferece, sim, algum risco. Fazer sexo com parceiros conhecidos, sejam eles soropositivos ou soronegativos, ainda apresenta riscos muito menores de infecção, na minha opinião. Isso posto, obviamente que as probabilidades são favoráveis para a imensa maioria das pessoas.
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Excelente entrevista, detalhada e informativa. Obrigado lado Bi!