Jornalista tenta tirar atletas do armário usando Grindr na Vila Olímpica

Nico Hines, do site The Daily Beast, publicou matéria em que relata o que aconteceu quando abriu o aplicativo gay no Rio de Janeiro, fornecendo informações que torna possível identificá-los

por Marcio Caparica

Existe o interesse do público. E existe colocar a vida de personagens em risco. Essa manhã o site The Daily Beast publicou uma matéria irresponsável com o título “I Got Three Grindr Dates in a Hour in the Olympic Village” (“Consegui três encontros no Grindr em uma hora na Vila Olímpica”), em que o jornalista Nico Hines descrevia o que aconteceu quando decidiu abrir os aplicativos de paquera no Rio de Janeiro. Ao longo da matéria (para a qual não vamos linkar aqui), ele acabava por fornecer detalhes que poderiam identificar os atletas com que conversou.

"Eu arranjei três encontros no Grindr em uma hora na Vila Olímpica"

“Eu arranjei três encontros no Grindr em uma hora na Vila Olímpica”

Como um típico exemplar do pior espécime de homem hétero, Hines achou muito engraçado entrar no Grindr para enganar os atletas. Hines explorou o mundo do Bumble, Grindr, Jack’d e Tinder. Em sua matéria ele descreve, chocado, que a Vila Olímpica é “um viveiro de atletas em festa, pegação, e sexo, sexo, sexo”.

E, aparentemente, mais chocante ainda, “sexo sexo sexo” gay. O jornalista justifica que não tinha a intenção de escrever especificamente sobre os atletas homossexuais, apesar de que o texto se concentrava quase que totalmente neles. A matéria era ilustrada pelo ícone do Grindr mesclado com os anéis olímpicos, destacando ainda mais o enfoque no sexo gay do texto.

Na lista dos possíveis encontros de Hines estava um atleta que, afirma o próprio, vem de um país em que a homossexualidade é considerada crime. Hines tenta se eximir de culpa dizendo que “só para constar, eu não menti para ninguém ou fingi ser alguém que não era – tirando estar no Grindr, para começar – já que sou hétero, tenho esposa e filho. Eu usei minha própria foto (apenas de meu rosto…) e admiti que era um jornalista assim que alguém perguntava quem eu era”. Sim, mentiu. O Grindr é um aplicativo voltado para homossexuais. É razoável supor que todos lá são homossexuais. Ao infiltrá-lo apenas para “ver o que acontece”, se está mentindo por omissão. E o que aconteceu para os atletas homens e mulheres que não tiveram a presença de espírito de perguntar a profissão do indivíduo com quem conversavam?

Vamos deixar bem claro: o que Hines fez não é apenas mau jornalismo, é perigoso. Não se tira pessoas do armário, principalmente aqueles que vivem em países em que as consequências podem ser muito mais sérias que um simples constrangimento. É notório que há inúmeros atletas que não declaram sua homossexualidade. É notório que acontece muito sexo na Vila Olímpica. Qual é o interesse jornalístico numa matéria como essa? Apenas atiçar a curiosidade sobre quem seriam os atletas, e inflamar a imaginação de leitores sobre as “festas de sexo” que podem acontecer entre atletas de corpos que tradicionalmente são considerados impressionantes. Mas as consequências de uma matéria como essa são muito sérias. Como escreveu Mark Joseph Stern para o site Slate:

Pior é o dano real que essa matéria provavelmente vai causar para seres humanos reais – consequências inevitáveis que Hines ignorou placidamente. Vários atletas que vivem dentro do armário em seu país de origem (e possivelmente até para seus próprios colegas de equipe) acordaram na quinta-feira com a notícia de que o Daily Beast revelou sua sexualidade. Seus colegas de equipe podem vir a ostracizá-los e aliená-los; suas famílias podem deserdá-los; seus países podem aprisioná-los. E para quê? Por um artigo homofóbico sobre como um homem hétero conseguiu enganar atletas gays de países anti-LGBT e fazê-los tentar seduzi-lo via Grindr? A matéria de Hines é um desastre perigoso, uma desgraça antiética que deveria ser tirada do ar imediatamente para evitar maiores danos a seus personagens. Hines pode achar que esse tipo de manobra no Grindr é muito engraçada e divertida. Para as vítimas de seu mau jornalismo, no entanto, essa matéria nojenta tem o poder de arruinar vidas.

Desde que o texto começou a repercutir, a matéria já foi editada em vários pontos: seu título foi alterado para “The Other Olympic Sport in Rio: Swiping” (“O outro esporte olímpico no Rio: passar o dedo na tela”, em referência ao Tinder, “mais neutro”), e a imagem que ilustra a reportagem foi alterada para uma foto de uma pessoa segurando um celular contra o fundo dos anéis olímpicos.

John Avlon, editor-chefe do The Daily Beast, respondeu às críticas em comunicado:

Há preocupações de que a versão original de nossa história possa tirar do armário atletas gays, mesmo que por sugestão, ou colocar em risco sua segurança. Essa nunca foi a intenção de nosso repórter, é claro. Nenhum nome jamais foi utilizado e alguns dos perfis descritos eram de mulheres heterossexuais. Mas há a preocupação de que mesmo mencionar o país de origem de alguns atletas gays possa colocar em risco sua segurança. Como resultado, removemos todas as descrições dos perfis dos homens e mulheres que havíamos descrito anteriormente.

A ideia da matéria era ver como aplicativos de paquera e pegação estavam sendo utilizados pelos atletas no Rio. Apenas calhou que Nico obteve muito mais respostas no Grindr que em aplicativos que atendem a um público predominantemente heterossexual, então ele escreveu sobre isso. Se ele houvesse recebido convites heterossexuais, ele escreveria sobre eles.

O interesse público pode vir a sobrepujar o direito à intimidade, em situações em que alguém esteja causando danos ao público de alguma forma – como, por exemplo, quando um indivíduo que condena veemente a vida sexual alheia é pego tendo uma conduta inegavelmente vergonhosa em sua própria vida sexual. O que acontece com consenso entre dois adultos, no entanto, não é da conta de ninguém. Podemos incentivar as pessoas a declararem sua homossexualidade, mas jamais fazer isso por elas. Principalmente quando sua liberdade e carreira podem ser colocadas em risco. Não há prazer perverso em ler descrições palpitantes que valha o futuro de qualquer pessoa.

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2 comentários

Manu

A matéria do jornalista Nico é uma exposição absolutamente desnecessária. Tratou-se de alguém que criou um perfil falso, postou uma foto original, de si próprio, para arrancar informações que muitos guardam para si, predispondo-se a marcar encontros aos quais não compareceu. Nico é tipico exemplar mediano da cultura heteronormativa que ainda (em 2016!) encontra motivo para especular a sexualidade alheia. Esse direito não lhe assiste! É de ser rechaçada qualquer motivação que submeta o outro a um padrão determinado de comportamento, diminuindo-lhe. O interesse em divulgar informações submete-se ao direito do outro de se ver resguardado em sua privacidade, quando isso não é respeitado, afronta-se a dignidade da pessoa humana; não precisamos ir muito além e chegar a países representados nas Olimpíadas no RJ em que a homossexualidade seja crime. Provavelmente aqui, no Brasil, mata-se mais homossexuais do que em qualquer outro lugar do mundo. No resultado dessa olimpíada pela sobrevivência, todo viado tem lugar potencial no podium… e Nico, diante dessa postura que afronta o jornalismo apenas contribui para a segregação e para violência!

Félix

Um deserviço!
Ele foi totalmente desagradável em tentar expor as pessoas que utilizam o app. Essa “matéria jornalistica” não ajudaria em nada.a população LGBTT,

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