Hoje pode parecer ridículo, mas por muito tempo, principalmente na primeira metade do século 20, atores brancos subiam aos palcos com a pele pintada de preto para interpretar personagens negros – algo que ficou conhecido como blackface. O século 21 tem sua própria versão desse problema: a presença cada vez maior de personagens transgênero em obras da cultura popular, que. no entanto, são quase que totalmente interpretados por atores cis. Essa semana a revista Variety revelou que Matt Bomer, ator regular da série American Horror Story, foi escolhido para interpretar uma profissional do sexo trangênero numa futura adaptação do livro Anything, de Timothy McNeil. A lista de outros filmes com essa tendência já está bastante longa: Eddie Redmayne em A garota dinamarquesa; Jared Leto em Clube de Compras Dallas; Felicity Huffmann em Transamerica; Dakota Fanning em Meu nome é Ray; Jeffrey Tambor em Transparent… No Brasil isso também acontece, como quando Cauã Raymond é escolhido para interpretar uma personagem trans num videoclipe.
Invariavelmente esses papéis são tratados como “um desafio”. A solução para a “dificuldade” desses personagens seria muito simples: escolher atores e atrizes trans, que já vêm com a carga dramática necessária para esses papéis de sua própria vida, para interpretá-los. Melhoraria a produção da obra e a qualidade da atuação. Sem falar na maior visibilidade da população trans, que passaria a ser vista como mais do que “um homem vestido de mulher” ou “uma mulher vestida de homem”. Várias atrizes trans já explicaram qual é o problema desse tipo de escolha de elenco (afinal, são forçadas a opinar sobre isso em literalmente todas as entrevistas que fazem). Então vamos deixar que Laverne Cox, Hari Nef, Mya Taylor, e outras cinco atrizes já expliquem quais são os problemas inerentes a esse tipo de casting errado.
Jen Richards (protagonista, co-escritora e co-produtora da websérie Her Story, indicada ao Emmy)
“O que as pessoas internalizam quando, por exemplo, Eddie Redmayne interpreta Lili Elbe [em A garota dinamarquesa] é que uma mulher trans na verdade é um homem… Por trás da personagem Maura, em Transparent, vemos um homem hétero, Jeffrey Tambor…. Por trás de Rayon, em Dallas Buyers Club, vemos Jared Leto. É isso que o público conhece. Então, quando vemos essa mulher linda na tela, não há como não pensar ‘na verdade esse é Jared Leto. Na verdade esse é um homem’. Essa é a atitude que é internalizada. Consequentemente, quando um homem hétero me vê, ele se atrai por mim como mulher, e isso dispara uma crise nele. Ele fica pensando que todos vão achar que ele é gay porque para todo mundo uma mulher trans na verdade é um homem, e, em certas comunidades, isso leva à violência.” – Q, CBC Radio One
Mya Taylor (protagonista de Tangerine, Diane from the Moon, e Happy Birthday, Marsha!, vencedora do Independent Spirit Award)
“É claro que eu gostaria de ver pessoas trans interpretando papéis trans, mas não chega a ser um problema para mim se uma pessoa cisgênero interpretar um papel transgênero, desde que o interprete verdadeiramente. Seja honesto com o papel e tenha certeza que a história está sendo contada corretamente e verdadeiramente. Por outro lado, acho que as pessoas trans deveriam interpretar papéis transgênero para que mais pessoas trans consigam entrar na indústria do entretenimento e arranjem trabalho. Nós não temos muitas oportunidades porque sempre somos discriminades.” – Fusion
Laverne Cox (protagonista da série Doubt, prestes a estrear, coadjuvante de Orange Is The New Black, vencedora do Daytime Emmy como produtora)
“É tudo uma questão de negócios, e nós fazemos parte, como diz a escritora Bell Hoooks, de um ‘Patriarcado Capitalista Imperialista da Supremacia Branca’… Escolher Andrew Garfield, o carinha do Homem-Aranha, para interpretar um papel trans no vídeo do Arcade Fire é algo que ganha as manchetes. É inevitável que as pessoas cliquem na matéria e falem sobre isso. Tanto que vocês [da mídia] estão me perguntando sobre isso, não passa de uma escolha comercial… Se pedissem para eu fazer o vídeo do Arcade Fire, eu não sei se ele receberia a mesma repercussão.” – Bustle
Hari Nef (atriz recorrente na série Transparent e modelo da IMG)
“Eu sinto que o tempo está se esgotando para atitudes como essas dos estúdios, de escalar pessoas cis para papéis trans quando, tipo, aqui estou eu… Laverne Cox está aqui. Trace Lysette está aí. Alexandra Billings está aí. Estamos todas aqui, e somos trans… Podemos chegar no set com anos de vivência, algo que um ator cis terá que estudar por meses e meses e meses… Sim, Jeffrey Tambor manda muito bem [no papel de Maura em Transparent]. Eddie Redmayne é um grande ator e está fabuloso em A garota dinarmaquesa… Mas no fim das contas, as pessoas trans merecem a oportunidade de contarem suas próprias histórias, e eu espero que, daqui para frente, nós possamos ver mais atores e atrizes trans sendo selecionades.” – Queer Voices, Huffington Post
Shakina Nayfack (atriz de teatro vencedora do prêmio Lilly Award e participante da série online Difficult People)
“Quando se deixa que outra pessoa conte sua história, essas pessoas vão errar nos detalhes. A representação trans é uma grande tendência nesse momento. Estamos vendo ela acontecer cada vez mais na cultura pop e em conversas nacionais sobre direitos civis e proteções legais. Quando se introduz personagens trans que não são interpretados por pessoas trans, você na verdade não está fazendo nenhum favor para a visibilidade trans. Não são apenas nossas narrativas que estão em jogo; são nossos corpos, nossa presença – nossa própria existência. No ano passado, nós vimos um aumento dramático nos crimes de ódio e nos assassinatos das mulheres trans negras e latinas, e não é coincidência que esse pico de violência acontece numa época de maior representação trans na cultura popular e no discurso político.” – Next Magazine
Trace Lysette (participante da série Transparent)
“Os talentos trans não estão sequer chegando às audições, e nós não ganhamos sequer a oportunidade de contar nossas próprias histórias. Eu acho que isso é problemático… Se uma pessoa cis conseguir ser mais trans do que eu, que seja… mas eu duvido muito. A não ser que você já tenha vivido como uma pessoa trans e tenha tido que lidar com as batalhas cotidianas e vivenciado os sabores culturais específicos da identidade trans, é inevitável que haja algo de inautêntico aqui… É tão comum que as pessoas trans sejam marginalizadas e não tenham os recursos e oportunidades que as pessoas não-trans têm. Em qualquer momento em que se dá uma oportunidade para uma pessoa trans, especialmente uma oportunidade de sermos nós mesmes, se promove uma mudança na maneira como a sociedade nos vê.” – The Advocate
Alexandra Billings (atriz de teatro, vencedora do prêmio Joseph Jefferson Award, participante de série Transparent, estrela recente da série How to Get Away with Murder)
“Todes na comunidade já estão com raiva porque Eddie Redmayne foi escalado para A garota dinarmaquesa, e ninguém nem viu o filme ainda. Nossa comunidade transgênero precisa tomar as rédeas. Não podemos apenas ficar apontando o dedo. Precisamos nos melhorar artisticamente, e mostrar para os diretores de elenco e para os escritores e criadores de TV, filmes e peças que nós existimos. Por outro lado, os diretores de elenco e os escritores e os produtores precisam ser mais valentes. Eles precisam fazer mais ligações, sair mais e ver mais gente. Com certeza eu não estou dizendo que está tudo OK. Isso não me deixa feliz. Se eu preferiria que Elle Fanning não tivesse sido escolhida para interpretar um adolescente trans em Meu nome é Ray? Claro. Se eu conheço alguns atores trans que poderiam ter atuado nesse papel? Sim. Ô se conheço. Se eu conheço alguns atores trans famosos o suficiente para bancar um filme em um grande estúdio? Não, nem você.” – Cosmopolitan
Jo Clifford (dramaturga, autora de O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu)
“Há algo diferente quando se é trans. Nós temos uma vibração diferente. E não importa quanta maquiagem um ator cis coloque, não importa se a peruca dele é ótima, se ele passa fome até ficar magrinho – o ator cis ainda não vai vibrar da mesma maneira. Eu vi as atuações de Jared Leto em Clube de compras Dallas e de Eddie Redmayne em A garota dinarmaquesa. Eles são atores incríveis, mas ainda não está certo! E mesmo Felicity Huffman em Transamerica. Acaba sendo tudo muito superficial. Chega a ser ridículo como eles interpretam: imaginam que é uma questão de ser esbelto, ser glamuroso, de andar de uma certa maneira, eles treinam vários maneirismos… Mas não é nada disso! Ser transexual é algo muito mais profundo. É algo que está em seu corpo todo, a maneira de se observar e se colocar no mundo. Nós temos um jeito muito diferente e especial de ser, e é muito importante que as pessoas o vejam!” – Lado Bi
Nos casos em que é preciso que o personagem seja mostrado no sexo oposto e/ou tenha muitos traços do outro gênero, me parece fazer sentido que seja escalado um ator homem. O Joffrey Tambor dispensa comentários (a série basicamente mostra o antes/depois dele, meio complicado conseguir uma trans para fazer o mesmo) e o Jared Leto está fantástico na pele do seu personagem porque tem por detrás de uma atuação maravilhosa traços masculinos fortes, se fosse uma atriz trans feminina interpretando talvez, naquele caso, não teria a mesma força e nem seria condizente com a realidade histórica (e vamos lembrar que nem todas as trans são ou devem ser “passáveis”). É COMPLETAMENTE diferente do Black face, não tem porque colocar um ator branco com traços brancos atuando como negro. Mas é claro há preconceito contra atores e atrizes Trans e para resolver isso só mesmo com o tempo, conforme a aceitação dessa comunidade crescer…
E odiei a atitude do matt bomer naquela confusão, se eles sentiram que era melhor um ator homem interpretando uma transexual o mínimo que ele deveria ter feito é tentar conversar com a comunidade trans, mas ao contrário bloqueou a Jaime e fechou o diálogo. Ridiculo.
P.S; Há atores que interpretam papéis de mulheres cis (e vice versa) sem que o personagem caia no comico/deboche – Louie Anderson vive uma mulher cis e é elogiadíssimo por sua performance em “baskets” e Meryl Streep como um rabino idoso.
Então Márcio, o que eu entendi é que você não aceita uma opinião diferente da sua! E usa qualquer tipo de argumento, esse racial realmente não tem cabimento nessa situação! A Jen Richards fez o teste e não foi escolhida, parece que o motivo dela estar assim é um pouco de despeito! Os produtores do filme fizeram a escolha do ator pelo talento demonstrado no teste, daqui a pouco vão começar a exigir cotas para trans!
Bem, como você não quer entender porque o argumento da raça é relevante, eu vou te explicar. A questão da homossexualidade é exceção quando se fala de características de atores que afetam casting na TV e no cinema. Se o personagem exige por sua história na trama ser gordo, não se escala atores magros. Se precisa ser negro, não se escala brancos. Se precisa ser homem, não se escala mulheres. Qualquer escalação dessas transformaria um filme dramático numa farsa/comédia – razão por que o elenco de Sol Nascente é uma piada. Othelo de Shakespeare não pode ser interpretado por atores brancos. Um negro reclamar de tal casting não é mimimi ridículo, é constatar o óbvio para nós hoje, apesar de que por muito tempo não se considerou esse tipo de elenco a coisa mais normal do mundo. A homossexualidade é a exceção porque dá pra ficar no armário quando se é homossexual – não existe armário para corpo, para a maioria das etnias, e para sexo biológico. Infelizmente o cissexismo vigente hoje em dia faz que pessoas, como você, pensem que a identidade de gênero não é uma característica tão importante quanto etnia ou sexo biológico. Mas é. Você prefere acreditar que Jen Richards não foi escolhida por uma suposta “falta de talento”. Eu acho que é igualmente possível que ela não tenha sido escalada para A garota dinamarquesa porque os produtores consideraram que seria mais seguro para a bilheteria escalar o ator que já era conhecido por Les Miserables e A teoria de tudo. Afinal de contas, não é como se Richards fosse a única atriz trans do mundo – se ela não é talentosa o suficiente e realmente quisessem colocar uma atriz trans no papel principal, encontrariam uma. Mas não o fizeram. É como colocar uma atriz branca como protagonista de A Cor Púrpura porque Kerry Washington não foi escolhida para o papel, como se não houvesse inúmeras outras atrizes negras. Não exijo cotas para atores e atrizes trans. Apenas gostaria que PAPÉIS TRANS fossem dados a PESSOAS TRANS.
Entendi toda essa questão racial! Então eu acho que para interpretar um serial killer, um de verdade tem que ser escalado para dar mais veracidade, o mesmo com papel de doméstica ou de mutantes, até mesmo os de super heróis, afinal ninguém pode interpretar uma pessoa trans a não ser uma trans, então exijo veracidade em tudo do cinema! Você acha que nenhum ator cis pode representar uma pessoa trans? Uma pessoa trans ser escalada para um papel de trans, onde fica a atuação, não seria fazer ela mesma?
Você acha mesmo que todas as pessoas trans são definidas por nada mais que serem trans, e portanto todas são idênticas? Eu não acho que todas pessoas cis são idênticas. Atores cis têm desafios de sobra ao interpretarem outros personagens cis. Igualmente, há infinitas personalidades de atores e personagens trans. Que reducionista e preconceituoso de sua parte afirmar que todos os atores transgênero essencialmente interpretariam a si mesmos apenas pelo fato de seus personagens também serem transgênero.
Isso não se chama atuar? Querem agora acabar com isso também? Então para um personagem assassino vão ter que escalar um assassino? Acho sinceramente que esse mimimi todo está passando dos limites!
Vamos imaginar um cenário hipotético em que Jim Carrey colocasse próteses de nariz e de orelha de última geração, a melhor maquiagem cor de chocolate, peruca afro de primeira, e fizesse um filme interpretando Martin Luther King. Ganharia o Oscar? JAMAIS. Por melhor que fosse sua atuação. As reclamações sobre essa atitude seriam consideradas “mimimi”? Não. Ser mulher trans vai muito além de se vestir de mulher. Vai muito além de “atuação”. Principalmente em meios propensos ao realismo como o cinema.
Aqui em Portugal, quando é para interpretar uma mulher trans, no máximo quem interpreta é uma mulher cis, nunca um homem cis. Acho que isso, de certa forma é uma coisa boa… Assim como acho que as atrizes trans também deviam interpretar personagens cis.
Toda mulher trans já teve a identidade de homem, corpo de homem e roupas, nenhuma saiu da maternidade como bebê trans, então qual o problema de um homem cis interpretar uma trans? Então deveria ser proibido qualquer atriz trans interpretar uma mulher cis por exemplo, já que vamos limitar isso a identidade, atuação é muito mais que isso, é dar vida e se tornar o personagem que se está interpretando! Acho um exagero da comunidade trans, essa é minha opinião.
Essa proibição contra mulheres trans interpretarem personagens cis é algo que já acontece “por debaixo do pano” – ainda vai demorar muito tempo para que se veja um filme com uma atriz ou ator trans interpretando alguém cis. E, portanto, essa reação da comunidade trans não é exagero, é algo legítimo, já que pessoas trans não obtêm papéis nem trans, nem cis. Pessoas trans poderão falar disso melhor que eu, mas todas as que eu conheço dizem que sua identidade sempre foi trans. Roupas não definem o gênero ou identidade de gênero de ninguém – eu, homem cis, me vestir como mulher não me fará trans, mesmo que eu faça isso pelo resto da vida – assim como o corpo também não define a identidade de gênero: fazer cirurgias ou tomar hormônios não são essenciais para que uma pessoa trans seja trans. A identidade de gênero é algo muito mais profundo. Como dizem as atrizes acima, colocar atores cis em papéis trans só faz reforçar a ideia de que a identidade de gênero trans é algo superficial, que se resume à roupa ou à aparência do corpo. Não é.
Mas atuar é isso, você não precisa ser para personificar aquele personagem! Uma pessoa trans “interpretando” uma pessoa trans, onde está a interpretação nisso? Todos atores e atrizes fazem personagens absolutamente diferentes da sua realidade! Charlize Theron quando fez o filme Monster, ela era uma serial Killer? Não, mas ela se personificou naquele papel e venceu um Oscar por isso, então é isso que quero dizer, atuação é isso, viver um personagem fora da sua realidade. Só trans poder viver papel de trans é ridículo, daqui a pouco um homem hétero não poderá interpretar um gay e um gay não poderá interpretar um hétero, esse mimimi todo está sim passando do limite!
Estou vendo que você ignorou completamente minha hipótese racial do começo. Estou aqui esperando você escrever que apenas atores negros poderemos interpretar papéis negros é absurdo. E que os atores orientais que estão reclamando por terem sido excluídos dos papéis de orientais na novela em detrimento de atores caucasianos estão com um mínimo ridículo.