Anna Claudia Ramos: “Levou 17 anos para que meu livro começasse a ser aceito”

“Jornalistas me perguntavam se eu não estaria induzindo os jovens a tornarem-se homossexuais”, lembra a autora de “Sempre por perto”. “Estamos sendo protagonistas dos novos tempos”

por Marcio Caparica

A sexualidade ainda é um assunto espinhoso demais para ser discutido na maioria das escolas. Isso numa época em que a homossexualidade e a transexualidade já estão presentes na mídia. No final da década de 1990, então, o tópico praticamente não existia no ambiente escolar. Escrever um romance que abordasse a homossexualidade de maneira positiva era um gesto bastante corajoso – ainda mais se o livro fosse voltado ao público jovem.

Mas foi isso que a escritora Anna Claudia Ramos fez. Autora de dezenas de livros infantis e infanto-juvenis,  em 1999 ela publicou o livro Sempre por perto pela editora Ao Livro Técnico (hoje ele pode ser encontrado numa nova edição pela editora Cortez). Sua história acompanha as memórias que a protagonista Clara, já adulta, tem ao longo de um dia em que revisita a casa da avó. Depois de rememorar os amores que teve com meninas e meninos desde a infância, ela decide contar ao pai e ao irmão sobre sua sexualidade. É um livro muito sensível, que não apresenta a sexualidade de sua personagem principal como um problema. Ao fim de suas 80 páginas, o leitor sente que conhece intimamente Clara – provavelmente a primeira bissexual que muitos leitores conheceram.

Depois de tantos anos, a homossexualidade já é tratada de maneira mais aberta, mas ainda não é totalmente aceita, principalmente quando se fala para jovens. Foi para discutir o que mudou desde que Sempre por perto foi publicado pela primeira vez que o LADO BI entrevistou Anna Claudia Ramos por e-mail. Com o estilo leve e claro que caracteriza sua escrita, a autora refletiu sobre seus personagens, a maneira como as escolas lidaram com sua obra e contou alguns de seus planos para novos livros. Confira.

LADO BI Já faz quinze anos que Sempre por perto foi publicado. Ao longo desses anos, você recebeu retorno de leitores e leitoras? Mais de meninos ou de meninas? Você sentiu alguma mudança no tipo de reação dos leitores nesse tempo?

Anna Claudia Ramos

Anna Claudia Ramos

Anna Claudia Ramos Sim, recebi, mas como a primeira edição desse livro saiu em 1999, recebi mais comentários de meninas do que de meninos. Naquela época, esse assunto era muito mais tabu do que é hoje. Praticamente não se falava sobre homossexualidade, sobretudo nas escolas. O livro custou para ser aceito.

Na verdade, dezessete anos já se passaram e só agora o livro começa a ser aceito. Nos primeiros anos após o lançamento, recebi cartas de diretores de escola e professores elogiando muito o livro, querendo adotar, mas com receio da reação dos pais. Pensar isso é triste, mas verdadeiro, pois muitos pais não querem falar sobre esse assunto! Perceba então que o preconceito ainda existe, mas a abertura para se falar do assunto é maior e toda a discussão que aconteceu na sociedade civil nestes anos também colaborou.

Em 2000, lancei um livro chamado Todo mundo tem família que, já naquela época, falava de diferentes tipos de família, mas sem fazer juízo de valor. Para não ser barrado na escola, como o Sempre por perto estava sendo, driblei a questão das famílias não convencionais dizendo que, quando o casamento não dava certo, a mãe e o pai podiam ter novos namorados ou namoradas. Foi uma solução possível para aquele momento, e o livro vende muito bem até hoje. Uma vez, um leitor disse que esse livro era muito legal, porque dizia que pai podia ter namorado e o pai dele tinha. Talvez pela primeira vez aquele menino tenha visto sua família ser representada em um livro.

Hoje em dia, já é possível falar abertamente sobre duas mães ou dois pais. Veja então que as coisas começam a mudar, lentamente, mas começam. Assim que o livro foi lançado, um jornalista me perguntou se eu não estaria induzindo os jovens a se tornarem homossexuais com o Sempre por perto. Dei uma risada, porque a pergunta era absurda. Respondi falando o seguinte: se eu escrevesse um livro sobre um assassino psicopata você me perguntaria se eu estaria induzindo um jovem a se tornar assassino? Alguém por acaso perguntou a algum autor de romances policias se ele estaria formando assassinos em potencial? Claro que não! Um livro não vai fazer ninguém se tornar algo que não é. Até porque não acho que seja uma questão de opção sexual, como o jornalista insistia em falar, o debate é muito mais profundo. Mas se por acaso alguém resolver declarar-se após a leitura de um livro, é porque já trazia em si algum desejo e lhe faltava coragem de falar. Livros bons nos redimensionam a vida.

As lembranças de Clara deixam sem explicação os detalhes de como ela tornou-se mãe de Ciça, e também não definem o gênero de seu atual amor. Por que você fez essas opções no texto?

Foi proposital, e não foi porque ela queria esconder algo, foi porque eu queria dizer que cada um poderia ser o que desejasse. Não queria criar rótulos, detesto rótulos. Acho que o mais importante na vida é você ser uma pessoa de bem, ética. E isso não tem nada a ver com a sexualidade de cada um, mas sim com o caráter. A Clara tem uma filha, ponto. Não queria trabalhar o passado da relação da Clara com o pai da Ciça, não era essa a minha intenção. Apenas dizer que ela tinha uma filha, que viveu amores com meninos e meninas e agora, já adulta, tem um amor. Amor não tem gênero. Quando falamos “o meu amor”, pode ser tanto para um homem quanto para uma mulher. O amor de Clara pode ser um homem ou uma mulher, cada leitor pode imaginar o que desejar. Sempre que me perguntam por que não defini o sexo do amor de Clara, eu explico isso. O que eu queria era falar que a vida pode ser mais simples.

Sempre por perto acompanha o dia em que Clara decide contar sobre si para o pai e para o irmão – mas não sai do armário completamente: mesmo já com 35 anos, pede para que seu irmão não conte à esposa sobre sua sexualidade. Na época, seria irreal criar uma personagem que vive sua afetividade abertamente?

Não sei se seria irreal, mas eu já estava quebrando muitos tabus naquela época. Talvez Sempre por perto tenha sido o primeiro livro da literatura juvenil brasileira a abordar o tema pelo ponto de vista feminino. Falar sobre a homossexualidade e ser publicada por uma editora comercial que não fosse voltada para o publico GLS (na época ainda não se falava em LGBTs) já era uma ousadia em 1999. Achei melhor ir aos poucos, vamos dizer assim! Se o livro continuasse, é provável que Clara contasse para a cunhada, mas não naquele momento inicial quando ela resolveu falar de si.

Hoje em dia dá-se mais atenção às denominações da sexualidade que em 1999. Você acha que seria necessário, hoje, deixar claro que Clara é bissexual, não lésbica? Ou a própria essência da personagem evita esses rótulos?

A própria essência da personagem evita rótulos, porque como já disse, não gosto de rótulos. Devemos amar e respeitar pessoas, foi assim que fui educada. Costumo dizer que na minha família, não se fazia distinção entre o que antigamente se falava: brincadeira de menina e de menino. Eu e meus irmãos podíamos brincar de tudo. Eu brincava muito de boneca, mas também jogava bola e tinha time de futebol de botão. Éramos crianças e brincávamos, ponto. Assim como fomos educados para respeitar pessoas. Não interessava se a pessoa era branca, negra, rica ou pobre. Tínhamos que respeitar as pessoas pelo que elas eram e cresci num ambiente que me permitiu entender e aceitar as escolhas de cada um. Meus pais foram sensacionais, pois educaram os filhos para a diversidade.

Como você abordaria esse tema em 2016? Numa época em que a maioria dos leitores jovens já sabe que homossexualidade e transexualidade existem, continua sendo suficiente um livro que retrata LGBTs de forma positiva e nada mais?

Abordaria sempre pelo prisma do amor e do respeito. Acho que Sempre por perto continua atual, e ainda tem muito caminho pela frente. Mas ano passado fui convidada para escrever um livro que vai abordar temas ainda polêmicos, como a transexualidade. E por mais que os leitores saibam que homossexualidade e transexualidade existem, estes temas ainda são tabus na grande maioria das escolas. Sei disso, porque ando este Brasil de ponta a ponta visitando escolas. Então, em breve vem novidade por aí! É um projeto bem ousado de uma editora de Belo Horizonte, mas ainda não posso falar muito sobre isso. Mas o meu olhar vai ser sempre o do autoconhecimento, da busca, do respeito por si mesmo. Minha abordagem vai ser por um caminho humano, com a vida ganhando novas possibilidades, novos caminhos.

Em seu trabalho como educadora e escritora para jovens leitores, como você sente que eles mudaram desde que Sempre por perto foi publicado pela primeira vez?

Sinto que as pessoas estão mudando, devagar, mas estão! Hoje em dia, vemos casais homossexuais andando de mãos dadas ou mesmo se beijando em público, cena que jamais assistiríamos em 1999. Já tem uns três anos que tenho dito que estamos sendo protagonistas dos Novos Tempos, tempos de mudanças e de intensa renovação. Toda mudança precisa de tempo para ser absorvida pelo tempo da vida. E creio que, aos poucos, as mudanças começam a acontecer. Já começamos a discutir temas que antes eram proibidos. Imagine um jovem de 1916, cem anos atrás, e o jovem de hoje. Quanto nós já avançamos se pensarmos em tudo que aconteceu nestes cem anos, mas quanto nós ainda temos que avançar se pensarmos nas questões humanas? Muito! Mas estamos vendo o mundo se transformar, isso acho que ninguém duvida mais. Daqui a cem anos as novas gerações vão poder olhar para trás e avaliar tudo o que aconteceu e mudou. Mas nem os leitores de hoje são mais os mesmos, com o advento da internet e do mundo digital, mas isso já é outra história, pediria uma nova entrevista…

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