Sao Paulo/ SP - Dezembro, 2014 STILL Longa ' Mae So Ha Uma ' , de Anna Muylaert. Fotos: Aline Arruda

Anna Muylaert: “Minha geração não entende a falta de rótulos dos jovens de hoje”

Em “Mãe só há uma”, a diretora de “Que horas ela volta” explora a fluidez das relações amorosas e da identidade de gênero dos jovens de hoje. ENTREVISTA EXCLUSIVA

por Marcio Caparica

“Essa história me interessava para discutir a identidade”, explica Anna Muylaert. “Conhecendo o novo universo da noite, que voltei a frequentar, comecei a ver que hoje há uma maneira totalmente diferente de colocar os rótulos do que no passado. Então eu quis trazer essa questão da identidade de gênero para esse filme, para deixá-lo mais contemporâneo, e falar sobre identidade de gênero em um filme que também é sobre identidade”.

O filme em questão é Mãe só há uma, que estreia essa quinta-feira nos cinemas do país. Após o sucesso de Que horas ela volta?, Muylaert inspirou-se no Caso Pedrinho, de 2002, para mergulhar na maneira como os jovens de hoje lidam com a sexualidade e a identidade de gênero. “O heteronormativo é um rótulo, e esse filme quebra rótulos. O Pierre [personagem principal do filme, interpretado por Naomi Nero] é muito difícil de definir, não é possível colocar rótulos nele. Esse lugar do não-rótulo é algo que para minha geração é muito difícil de entender, mas não é para os meninos de 15, 20 anos.”

Voltar a se relacionar com a vida noturna fez com que a diretora observasse como as gerações estão lidando de maneiras diferentes com a descoberta da sexualidade. “Amigos meus de 25 nem falaram para a mãe que são gays, levaram o namorado para casa e tudo bem. Já os de 35 já tiveram que passar por aquele processo de contar para a família, enfrentar a decepção. Enquanto isso, os de 45 anos sequer contaram para os pais. A cada geração há mais espaço de diálogo a respeito disso.”

Durante Mãe só há uma, a troca de família faz com que Pierre intensifique um processo de vestir-se e maquiar-se com roupas tradicionalmente do gênero feminino, algo que já havia começado quando morava com a mãe não-biológica. Anna Muylaert pondera: “Talvez, se ele tivesse ficado com a primeira mãe para sempre, ele tivesse demorado muito mais para abrir essas atitudes. Há um tanto de rebeldia contra os novos pais, mas acho que fica claro que isso faz parte da identidade dele, ele sempre fazia isso escondido. Ele estava num estresse interno, mas bem com a família, e usava roupas femininas e maquiagem para aliviar o estresse. Quando ficou mal com a família, o estresse interno fica tão grande que ele destrói as barreiras, e acaba aliviando seu estresse transferindo-o para os outros.”

Quem for assistir Mãe só há uma esperando outro Que horas ela volta? vai sair bastante frustrado: além de mais agressivo para as sensibilidades de família tradicional brasileira, esse é um filme que não tem a intenção de, em momento algum, oferecer resoluções para os vários conflitos que apresenta. “Que horas ela volta é um romance, ele é inteiro completo, fecha tudo. Esse é um conto, um filme mais provocativo”, resume Muylaert. “Que horas é um filme muito terno, mas que te coloca ao final num lugar bem confortável. Mãe só há uma te deixa num lugar desconfortável. Por isso, em todas as entrevistas eu aviso, não venham atrás da mesma coisa. Espero que os espectadores possam entrar nessa proposta de chacoalhar as próprias convicções, os próprios rótulos.”

E é até exatamente por essa fuga do conforto que vale a pena asssistir Mãe só há uma. Muylaert sobrepõe e evidencia todas as situações impossíveis de serem resolvidas causadas pelo drama que vive Pierre. O jovem tem que encarar a descoberta de que sua mãe não é a pessoa que ele pensava que era (literal e metaforicamente). Seus novos pais têm que lidar com um filho real, depois de tantos anos de idealização – principalmente quando o filho foge dos padrões de gênero, como é o caso. No meio de tantos conflitos familiares, a maneira como Pierre não sofre quanto a sua sexualidade chega a ser um alívio.

Entre tantas dificuldades, a relação do protagonista com os irmãos é a faísca de ternura que aponta para um futuro menos turbulento. Isso também faz parte da visão de Muylaert para esse filme: “Você pode ter amigos que estão no mesmo lugar, que não estão numa posição de ter nem mais nem menos poder que você. Talvez haja, nessa relação horizontal, relações melhores, mais produtivas, menos estressantes do que essas relações em que há alguém determinando o que você vai vestir, o que você tem que fazer. Eu acho que a gente está num momento em que ninguém mais está afim de ser rotulado por ninguém.”

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