Deficientes físicos são uma delícia

“Pessoas com deficiência são uma delícia”, afirma militante LGBT

“Quem quiser comprovar, é só passar uma noite comigo”, afirma o ativista Andrew Morrison-Gurza em entrevista exclusiva. Saiba mais sobre seu trabalho para que deficientes físicos sejam vistos como pessoas atraentes e sexuais.

por Marcio Caparica

Pode-se dizer sem medo de errar: a presença de deficientes físicos na cultura LGBT beira ao zero. A cultura em geral tende a enxergar pessoas com qualquer tipo de deficiência como incapazes, coitados e, principalmente, pouco atraentes – e praticamente assexuados. Quando aproxima-se do mundo LGBT, então a coisa fica ainda pior. Entre tantas figuras descamisadas e padrões de beleza que já são inacessíveis até mesmo para quem tem o corpo “nos conformes”, ser homossexual e pessoa com deficiência acaba tornando-se sinônimo de ser discriminado entre os discriminados.

É isso que o canadense Andrew Morrison-Gurza quer mudar. Ele é o fundador da consultoria Deliciously Disabled (Deliciosamente Deficiente), que trabalha para mudar a percepção que se tem de pessoas com deficiência física. Morrison-Gurza luta para que enxergue-se a deficiência física como parte da diversidade, e batalha para que pessoas como ele (Morrison-Gurza nasceu com paralisia cerebral) sejam vistos como pessoas sexuais, sensuais e deliciosas. Entre as várias ações que sua organização já promoveu, destaca-se a “Oasis Aqualounge Reveals Deliciously Disabled”: uma sex party realizada numa sauna em Toronto, feita para pessoas com deficiência, à qual todos (mesmo não deficientes) eram convidados a participar. Mais de um veículo de comunicação espalhou manchetes sensacionalistas sobre a “orgia para aleijados”. Morrison-Gurza riu com o espanto daqueles que, provavelmente pela primeira vez na vida, deram-se conta que deficientes físicos têm tanto tesão e vontade de trepar quanto qualquer outro.

Morrison-Gurza faz questão de ir contra a maneira costumeira de se enxergar pessoas com deficiência física, a começar pela linguagem. Em entrevista exclusiva por e-mail, ele repetidas vezes utiliza o termo que cunhou, “deliciosamente deficiente”, para afastar as conotações negativas que estão inculcadas em nosso cérebro. Confira a seguir as ideias desse ativista. Muito provavelmente, ao fim do texto, você vai encarar deficientes físicos de maneira mais… deliciosa.

LADO BI A primeira coisa que você questiona na página do Deliciously Disabled é a linguagem que se utiliza com relação aos deficientes físicos. Você afirma que ela é antiquada e se concentra nas diferenças. Você poderia explicar isso melhor, e sugerir algumas maneiras alternativas de se referir a pessoas com deficiência?

ANDREW MORRISON-GURZA A linguagem que costuma-se utilizar para se descrever a deficiência física em geral parte de dois modelos opostos de pensamento sobre a deficiência: o modelo médico, que enxerga apenas a patologia da deficiência física e tudo que não funciona “normalmente”. Essa linguagem em geral é muito técnica, e consistentemente ressalta os defeitos da deficiência. Costuma soar assim: “Andrew é incapaz de andar e tem contrações em suas pernas em um ângulo de 90 graus. Ele jamais terá funções normais em suas pernas.”

O outro modelo que também utiliza uma linguagem muito específica é o da justiça social. Essa é uma forma de linguagem muito política, que se concentra nos direitos, no acesso e na igualdade. Soa assim: “Andrew é uma pessoa com deficiência física que faz uso de sua cadeira de rodas para acessar o mundo a seu redor. Ele é uma pessoa antes de mais nada, e sua deficiência não é razão para se negar seus direitos como cidadão…”

Como você pode ver, a linguagem que se utiliza só funciona ou para patologizar ou politizar os deficientes físicos. Nenhuma dessas maneiras de se discutir a deficiência é divertida, sensual ou provocante, nem demonstram as realidades complexas e cheias de nuances de se viver com uma deficiência física. O Deliciosamente Deficiente, já com seu nome, torna a deficiência uma opção lúdica que aceita a deficiência não pelo que ela poderia ou deveria ser, mas pelo que ela é AGORA. Precisamos aceitar o que é a deficiência física; as partes boas, as partes ruins e as partes feias. O Deliciosamente Deficiente oferece essa perspectiva de uma maneira que muitos nunca sequer consideraram possível.

Andrew Morrison-Gurza

Andrew Morrison-Gurza

A comunidade gay em particular idolatra o corpo “perfeito”. Você sente que o esforço para se esconder os deficientes físicos é mais forte dentro da comunidade LGBT?

Olha, devo dizer que conforme eu fui desenvolvendo esse trabalho, eu aprendi que não se trata tanto de um esforço deliberado para se a apagar o corpo com deficiência física da comunidade LGBT. Esse desconforto tem mais a ver com o fato de que, como comunidade, vende-se para o homem queer um tipo físico muito específico pelo qual deve-se sentir atração: branco, sem deficiências, “pronto pra foda”. Há tantas pessoas dentro das comunidades LGBT que não sentem-se representadas! Quando o assunto são “bichas aleijadas”, ou, melhor dizendo, os Deliciosamente Deficientes, acho que a comunidade como um todo não tem um ponto de partida para desenvolver essa discussão. Os gays não veem o corpo de uma pessoa queer com deficiência em sua cultura – ele está ausente das revistas, da pornografia e das casas noturnas. Como eles poderiam ter um contexto para avaliar a deficiência física? O Deliciously Disabled trabalha com afinco para tornar o corpo e a vivência dos deficientes físicos acessíveis para a comunidade em geral. Eu quero convidar todos para fazerem parte dessa conversa, e quero dar à cultura LGBT permissão para me curtirem.

Como o processo de sair do armário, tanto para si mesmo como para a sociedade, difere (ou não) daquele de uma pessoa sem deficiência física?

Declarar-me gay aos 15 anos foi para mim bastante similar a todos os outros gays. Eu passei pelos mesmos medos que uma pessoa comum quando sai do armário, com a preocupação adicional de que eu seria um fardo ainda maior porque agora eu também era homossexual. Eu me preocupava com como essas duas identidades interagiriam entre si, mas não muito.

Na verdade eu descobri que é muito mais difícil “sair do armário” como deficiente físico nos espaços queer. Isso acontecia muito (e ainda acontece): eu tenho que primeiro me declarar deficiente físico, porque minha comunidade é muito carente de contexto ou exposição à deficiência física. Eu tenho que sair do armário como deficiente físico antes de fazer o mesmo como queer para que as pessoas compreendam minha realidade. Isso é parte da razão por que criei o Deliciously Disabled, para que eu pudesse assumir uma identidade que inclui minha realidade.

Acho que sair do armário também pode ser difícil quando a pessoa tem que lidar com enfermeiros, e torce para que isso não afete o cuidado que ela precisa receber, mesmo depois de sair do armário. Muitos deficientes físicos LGBT têm esse tipo de preocupação quando declaram sua sexualidade ou identidade de gênero. Isso varia muito de acordo com o lugar em que se vive.

O que é mais difícil de superar, a pena que um deficiente físico pode vir a sentir por si mesmo, ou a pena que outras pessoas sentem pelo deficiente físico?

Acho que quando falamos sobre o sentimento de pena, seja por si mesmo ou vinda de outros, precisamos reconhecer que, pelo menos na minha opinião, muitas vezes não é pena de verdade. Para o indivíduo com deficiência física, na maioria das vezes esses sentimentos são uma oportunidade que eles têm de se expressar e mostrar como eles se sentem nessa situação com honestidade. Acho que, como sociedade, precisamos reconhecer como se sente um deficiente físico. Admito que em alguns dias minha deficiência não é tão deliciosa assim, mas eu tento me lembrar que dentro de cada obstáculo que a deficiência física apresenta, há também uma oportunidade. Quando eu me sinto triste ou desanimado, eu tento me lembrar disso.

Quanto à pena das outras pessoas, mais uma vez, eu não acho que é pena de verdade. Na realidade, elas apenas precisam ser educadas. Muitas vezes os caras vêm me perguntar o que aconteceu comigo, e quando eu digo que nasci com paralisia cerebral, eles respondem dizendo que sentem muito etc. Eles precisam ter acesso a todas as coisas que me tornam sexy e delicioso. Quando eu estou fazendo esse trabalho, eu jamais permito que alguém sinta pena de mim; eu tento lidar com a maneira que eles aprenderam a enxergar a deficiência física.

Muitos acham que uma pessoa sem deficiência física que demonstra um interesse sexual por um deficiente físico é, no mínimo, esquisito – quando não se trata de fetiche mesmo. E que isso seria, portanto, inerentemente prejudicial. Confere? Mesmo que essa atração tenha um quê de fetiche, isso faz mal para a pessoa com deficiência?

Realmente há essa crença de que sentir atração por alguém com deficiência física é esquisito ou fetiche. Mas eu acredito que todos nós temos fetiches. Eu gosto de ruivos com sorrisos grandes e paus enormes – é uma forma de fetiche, não é? Se as rodas da minha cadeira forem a razão do tesão de alguém, é claro que eu vou usar esse trunfo! [risos] Isso só vai fazer mal quando a pessoa quiser aumentar minha deficiência de alguma forma, como maneira de me dominar. Se isso não estiver acontecendo, acho é ótimo que as pessoas estejam enxergando toda a delícia da minha deficiência.

andrew-morrison-gurza2Em outras entrevistas, você comenta como deficientes físicos são infantilizados sexualmente, tanto quanto ao que são capazes de fazer quanto a suas necessidades. Você pode dar alguns exemplos de como isso acontece, e o que podemos fazer para mudar isso?

Já me perguntaram na hora da transa se eu consigo ou não ficar de pau duro, já me disseram que “ficaram felizes por me ajudar”, e que eu “com certeza era passivo/submisso”. As pessoas precisam perceber que eu sou capaz de fazer muitas coisas sexualmente, e que, se tiverem a oportunidade de mergulharem na minha deficiência, vão descobrir tudo. Mais uma vez, é uma questão de expor-se a esse tipo de situação. Se os gays vissem deficientes físicos empunhando sua sexualidade e sua maneira de fazer sexo, as atitudes preponderantes mudariam. Quem quiser mudar seu ponto de vista pode vir passar uma noite comigo.

Experiência própria: quando eu saí com um deficiente físico, eu não sabia muito bem o que fazer. Não sabia se devia ignorar totalmente que ele tinha deficiência física, ou se devia perguntar tudo logo de uma vez e assim tirar isso do caminho. Como você recomenda que alguém que não é deficiente físico se comporte na primeira vez que vai sair com alguém que tem deficiências?

A coisa mais gostosa que um cara pode me dizer é: “eu não sei muito sobre sua deficiência, ela me dá um medinho, mas eu estou afim de você e quero descobrir mais”. Eu uso o humor para lidar com minha deficiência e deixar as pessoas mais confortáveis. Eu discuto abertamente a deficiência fazendo piadas a respeito dela. Quando o encontro vai chegando ao fim, se tudo der certo, você vai estar me vendo como alguém deliciosamente deficiente. O pior que um cara pode fazer é dizer que não tem problema nenhum com minha deficiência, porque não quer demonstrar algum tipo de preconceito, mas daí na hora da pegação demonstrar que está apavorado e ser incapaz de fazer qualquer coisa. A vulnerabilidade é muito sexy, e aceitar seu medo da deficiência é ainda mais.

Que tipo de peculiaridades sexuais deve-se esperar na primeira vez em que se vai para a cama com um deficiente físico, e como podemos fazer isso mais fácil, mais respeitoso e, principalmente, mais divertido e sensual para todos os envolvidos?

Eu não diria que há peculiaridades, mas devo dizer que as coisas provavelmente não vão ter a aparência que você costuma ver. Hoje em dia, antes de catar alguém, eu explico bem minha realidade numa sessão do que eu chamo de “storyboard sexual”. Eu falo quais são meus desejos e minhas necessidades, e permito que o parceiro compartilhe como está se sentindo. Essa conversa sobre o que será feito com uma pessoa deliciosamente deficiente pode ser uma das partes mais tesudas da pegação, e estabelece um nível de comunicação bom. Nós temos essa ideia errada de que a sexualidade TEM QUE SER ESPONTÂNEA. Quando se tem uma deficiência física, você tem a oportunidade de pisar no freio e conversar sobre o que estamos fazendo. Isso permite que os parceiros se conectem de uma maneira completamente nova e muito, muito excitante.

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5 comentários

Gabriel

Sou deficiente físico, mas a minha deficiência é de ordem mais estética que, necessariamente, física. Acompanho o “Lado Bi” já há algum tempo, e não posso quantificar como estou feliz desse assunto ter sido abordado por aqui, e de maneira tão interessante, desprendida, esclarecedora e… “normal”. A deficiência que tenho (situada no rosto, apenas) fez com que eu, tendo me descoberto gay entre os 14 e 15 anos, me assumisse para minha família apenas aos 21 anos de idade, fato de que hoje me arrependo, porque poderia ter feito isso antes, bem antes. E eu realmente sinto muito dessa “seletividade” que foi dita no início da matéria. A aparência é aspecto primordial nas relações, isso é inegável, e principalmente nas relações LGBT, onde o culto ao corpo impera de maneira estratosférica. Ainda sofro um pouco com isso, por não conseguir me relacionar, e por querer me relacionar de fato… mas estou aprendendo a não deixar que isso me deprima , tampouco que me coloque pra baixo. E essa matéria é mais um estimulante pra que eu corra atrás do meu bem estar, ainda que a minha condição de gay e deficiente me faça ser “duplamente discriminado” socialmente. Valeu, Lado Bi! Sou ainda mais fã do trabalho de vocês, a partir de hoje.

Jose Barreto

Concordo com o Raphael. Trabalho na noite e conheço deficientes que não se deixaram intimidar pela cultura do corpo perfeito. Aliás, o que é um corpo perfeito? Se a resposta for, o corpo que atrai e excita, então deixemos a palavra deficiencia de lado e vamos a parte interesante, a do prazer. Ja sai com um e foi muito bom.

Daniel

Meu namorado é PNE. Achei a matéria muito interessante, na vdd foi ele que me indicou. Eu nunca tinha parado pra pensar no lado amoroso de um cadeirante ou qualquer deficiência, e ainda GAY. Eu nunca enxerguei meu namorado como um coitado, ou como se tivesse fazendo um favor(como aconteceu com o ativista na entrevista) o que achei terrível, mas ao mesmo tempo na continuação fico feliz pq agora percebi que fiz as perguntas certas pra ele. Meu namorado não é cadeirante, ele apenas “anda diferente” eu apenas queria entender como ele era, porque eu conheci pelo facebook.

Mas é legal enxergar outras realidades que poucos desconhecem, principalmente pra pessoas que não tem nada do tipo, como eu. Só sei que amo muito meu namorado e não pretendo trocá-lo por ninguém.

Raphael

Muito legal a matéria, contudo, queria dizer que a afirmação sobre a participação de deficientes físicos na comunidade LGBT está errada e parece bem preconceituosa. Eu conheço muitos e já vi vários no meio, não presuma algo só pq vc não conhece muitos. Dito isso, eu na verdade sempre admirei as pessoas que tem alguma deficiência e mesmo assim vivem suas vidas normalmente.

Rodrigo Mendes

Adoro as matérias de vocês!
Elas são divertidas, descontraídas, e sempre nos fazendo pensar no que fazer de melhor pra nossa sociedade.
Confesso que nunca havia analisado tão à fundo a questão da deficiência, mas acredito que agora tudo será melhor avaliado e pensado.

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