“Tem tirinhas que hoje eu não faria por considerá-las homofóbicas”, diz cartunista criador de Rocky & Hudson

Precursor da viadagem nos quadrinhos e no faroeste, o cartunist Adão Iturrusgarai acaba de lançar em português livro com mais de 500 tirinhas dos caubóis mais gays do Brasil e presenteia o blog com tira exclusiva

por James Cimino

Muito antes de Brokeback Mountain, o cartunista gaúcho Adão Iturrusgarai já duvidava da sexualidade dos caubóis (e também da dos gaúchos). Quando desenhou Rocky & Hudson, personagens de uma de suas tirinhas mais famosas na Folha de S.Paulo, estava pensando exatamente em ironizar o macho típico de sua terra, o Rio Grande do Sul.

Agora, o autor de outros personagens famosos, como Aline, a menina que namora dois homens ao mesmo tempo, e o iconoclasta Homem Legenda, acaba de lançar em português (e mais cinco outras línguas) um livro com quase 500 tirinhas dos caubóis mais gays do Brasil.

Ele conversou com o Lado Bi por Skype, lá da Argentina, onde vive com sua família e fez, com exclusividade, a tirinha abaixo para o site. Leia a entrevista:

Tirinha de Rocky & Hudson criada exclusivamente para o Lado Bi

Tirinha de Rocky & Hudson criada exclusivamente para o Lado Bi

Lado Bi – Como você teve a ideia do Rocky & Hudson?

Adão Iturrusgarai – Por volta de 1987, em Porto Alegre  eu era sub-editor de uma revista chamada Megazine. Eu pensei em fazer alguma coisa sacaneando o gaúcho, que tem essa coisa de super macho. Aí fiz dois gaúchos gays. Como eu já estava com um pé em SP, conhecendo o Angeli, o Glauco etc, pensei em fazer dois caubóis gays, porque ninguém em SP quer saber de gaúcho, e ia ficar uma coisa muito de nicho. Aí eu estava aprendendo inglês ainda, e o Rock Hudson tinha recentemente morrido de Aids. Coloquei Rock e Hudson no nome, mas um cara que falava inglês e trabalhava comigo me deu a dica de colocar o Y para dar essa ideia de diminutivo. Como sempre achei esses filmes de caubói estranhos, porque só tinha homem, resolvi fazer dois caubóis. Acabei virando o precursor da viadagem nos quadrinhos e no faroeste. 

Por essa tirinha ficou tão importante a ponto de se tornar um livro?

Em 1990 e poucos eu tentei publicar a tira, na época dos Três Amigos, mas a Folha vetou, por causa do politicamente correto. O cara tinha morrido de aids, e o pessoal da redação achou que ia pegar mal. Aí eu comecei a fazer a Aline. E já estava fazendo a Aline por muito tempo e um dia me cansei. Então fiz uma tirinha do Rocky & Hudson e mandei para a redação no esquema do “vai que cola”. Já tinham se passado uns cinco anos, a equipe toda tinha mudado, ninguém lembrava mais do veto e postaram. Aí virou regular… Depois de um certo tempo eu preferia publicar eles à Aline.

Quantas tirinhas do Rocky & Hudson você tem e quantas têm no livro?

O livro tem 120 e poucas páginas, quatro tiras por página, dá umas quinhentas tiras. No total tenho umas entre 600 e 750 tiras deles. Tenho no total, de todos os meus personagens, mais de 5000 tiras.

Tirinha da série Rocky & Hudson no País das Maravilhas

Tirinha da série Rocky & Hudson no País das Maravilhas

Como era a repercussão das tiras?

Na época eu recebia carta de leitor, porque não tinha e-mail. E muita gente gostava. Passei a receber muito mais carta de leitor depois deles. Quer dizer, tinha uma sacada. De cara eu percebi que tinha uma repercussão legal, tanto que publiquei em cinco idiomas [inglês, francês, italiano, espanhol e alemão]. Agora teve comentários de gays que amavam, mas teve gente falando que a tirinha era homofóbica. Então eu comecei a olhar e vi coisas que hoje eu não publicaria, que eu considero homofóbicas. Era um universo que eu ainda estava aprendendo…

Quem eram as pessoas em quem você se inspirava?

Acho que nós todos temos um pouco de ambiguidade…

Ambiguidade, no caso, viadagem, né?

É.. O Homem Legenda diria isso… (risos) E na época que eu vim pra São Paulo tinha a figura da mulher bicha, que era aquela mulher que ficava com homens mais efeminados, bissexuais, mas era hétero. E eu vivia nas baladas com eles e era desses personagens que vinha a inspiração. Gente da noite também, como a Marcelona…

Recentemente o Marcius Melhem disse que o novo “Zorra” não faz piada homofóbica. E muita gente reclama que no humor brasileiro o gay efeminado é sempre a vítima. Como fazer humor hoje em dia sem ofender as pessoas?

Essa conversa tá muito em voga, especialmente depois do Charlie Hebdo, que eram meus ídolos. Georges Wolinski fazia piadas machistas, mas, na França, onde as mulheres estão pau a pau com os homens, não pega tão mal quanto no Brasil. Existe uma diferença entre fazer uma piada gay, como o Brasil, onde se mata e se bate em travesti e em gay. Mas, a princípio, acho que se pode fazer piada com qualquer coisa. E acho que o politicamente correto quando usado em exagero estoura de uma maneira violenta. Eu trabalhei para Globo e fazia redação para o Tom Cavalcante na época do Pit Bicha. Alguns bordões, como quando ele dizia “Eu sou homem com H, H de homossexual”, acabaram pegando. Mas o personagem não era uma sacanagem com os gays, era uma sacanagem com os pit boys. Não tô dizendo que posso fazer o que eu quiser… Mas também acho que quando se coloca um “tem de ser assim” na frente fica estranho.

Capa da edição em português do livro Rocky & Hudson - Os Caubóis Gays

Capa da edição em português do livro Rocky & Hudson – Os Caubóis Gays

Eu estava pensando que a piada boa é aquela que ri daquilo que é risível na gente, você concorda?

Esse lance de ficar sacaneando sempre o agressor e nunca o agredido eu não sei se é legal, porque o lance de dizer “tem que ser assim” eu acho bobagem. E tem um humorista aqui da Argentina, o Peter Capussoto, ele fala que ninguém fala mal da festa que deu certo. O humorista faz piada da festa que deu errado. E o negro, a mulher e o gay, como são as vítimas, acabam sendo essa “festa que deu errado”. Mas algumas coisas simplesmente não têm mais graça, como falar que a mulher é burra, não sabe dirigir etc. E a militância me irrita às vezes, mas às vezes acabo dando o braço a torcer. Quando rolou aquele black face, eu achei estranho invadirem o palco e interromperem a peça, mas depois pensei, refleti e vi que eles tinham razão.

Você ainda escreve o Rocky & Hudson?

Não são personagens que eu esgotei, mas ainda não to pensando em como abordá-los. Tenho gostado muito de escrever o Homem Legenda…

Pensei nisso porque achei que eles eram personagens interessantes para abordar questões de perseguição de religiosos contra LGBTs atualmente…

Então, a última vez que escrevi uma tirinha deles foi quando o Feliciano entrou na Comissão de Direitos Humanos e tava aquele debate de cura gay. O Rocky aparece querendo fazer o tratamento porque cansou de ser gay. E diz que quer ser hetero por um dia para poder coçar o saco sem culpa, mas no fundo ele só quer ir ao médico porque o médico é gato. E vai por aí…

Mais uma tirinha da série Rocky & Hudson no País das Maravilhas

Mais uma tirinha da série Rocky & Hudson no País das Maravilhas

Você falou da Aline, que é uma personagem que tem dois namorados. A gente quer saber de onde veio a inspiração e se os namorados dela já se pegaram…

Na verdade eu não dividi uma mulher com um amigo, se é isso que você quer saber. Assim de ficar casado e tal. Mas já aconteceram umas brincadeiras, óbvio. No início, Otto e Pedro não se pegavam, mas, depois de tantos anos juntos, dormindo na mesma cama… Lembra do ditado? “Água mole em pedra dura”…?

Serviço

Título: Rocky & Hudson – Os Caubóis Gays

Autor: Adão Iturrusgarai

Editora: Zarabatana Books – 120 págs.

Preço: R$ 64

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