Primeiro diplomata americano para questões LGBT: “direitos civis e religião não são antagônicos”

Em entrevista exclusiva durante sua passagem pelo Brasil, Randy Berry compartilha os esforços EUA para que todos LGBTs do mundo tenham seus direitos reconhecidos. “A diversidade nos torna mais ricos, a exclusão, mais pobres”

por Marcio Caparica

A opinião pública da população norte-americana mudou rapidamente com relação aos direitos civis da comunidade LGBT. Em poucos anos, o casamento igualitário passou a ser aceito em mais de 30 dos 50 estados dos Estados Unidos, e em poucas semanas a Suprema Corte dos EUA deve fazer com que ele se torne uma realidade em todo o país. Pesquisas também apontam uma opinião cada vez mais favorável aos direitos civis igualitários para homossexuais e heterossexuais.

E como é um político muito mais hábil e inteligente que os politiqueiros brasileiros, Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, acompanhou o movimento. Das tímidas declarações, feitas no início de seu primeiro mandato, de que sua opinião sobre o casamento igualitário estava “evoluindo”, hoje Obama demonstra seu apoio irrestrito à igualdade entre todas as sexualidades e identidades de gênero. Tanto que sua administração decidiu que era hora de ter um representante oficial dos EUA para espalhar pelo mundo os ideais do país para os direitos civis da população LGBT. Randy Berry, que faz carreira nos consulados e embaixadas dos Estados Unidos pelo mundo desde 1993, foi escolhido em abril de 2015 como o primeiro Enviado Especial de Direitos Humanos LGBTI dos EUA.

O diplomata Randy Berry tem um marido e dois filhos, com idades de 2 e 3 anos. Mal ocupou a posição já saiu em viagem pela América Latina, passando pelo Chile, Argentina e Uruguai. Ele chegou no Brasil na última semana, a tempo de presenciar a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, que aconteceu no último dia 7 de junho. Com o auxílio de João Geraldo da Silva Netto, consultor técnico do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde (e convidado do Lado Bi dos Soropositivos), o LADO BI entrevistou Berry por telefone na noite de segunda-feira, 8 de junho, com exclusividade. Durante a conversa, ele explicou como sua função pode melhorar a vida de LGBTs ao redor do globo, e como o Brasil e os Estados Unidos são semelhantes quanto às questões LGBT – para o bem e para o mal.

LADO BI Esse seu cargo é algo inédito não apenas nos EUA, mas no mundo todo. Você pode por favor nos explicar exatamente no que ele implica?

randy-berry

Randy Berry, enviado especial dos EUA para direitos humanos da população LGBTI

Randy Berry: Ela é realmente algo muito novo. Eu não completei nem dois meses nesse cargo ainda! Sou um novato num cargo que em si é novidade. A responsabilidade que o presidente Barack Obama e o secretário de estado investiram em mim é a de promover os direitos civis da população LGBT num âmbito global. Essa iniciativa conta com um apoio extraordinário da sociedade civil, do próprio governo norte-americano e de várias entidades do setor privado. Também contamos com várias parcerias pelo mundo. Desde 2011 o governo dos EUA oferece auxílio monetário para causas LGBTI que precisam de apoio urgente, o Global Equality Fund. Os Estados Unidos querem proteger os direitos LGBTs e desejam aprender o que for possível sobre essa questão com nossos aliados. Pensamos que o progresso nos direitos civis só acontecerá com a formação de parcerias entre os países. E essas parcerias só vão dar certo se estivermos todos em pé de igualdade: meu país não quer tomar uma posição de liderança, mas sim de igualdade com países como o Brasil. Há quem questione: qual é a necessidade de uma posição como a minha hoje em dia? Num momento em que ainda há tantos países em que a homossexualidade ainda é um crime passível de pena de morte, esse tipo de ação se faz mais necessária do que nunca.

Realmente é impressionante como a opinião pública mudou em poucos anos nos Estados Unidos. A maior parte dos candidatos do partido Republicano, no entanto, declaram-se contrários ao casamento igualitário, que está prestes a ser decidido pela Suprema Corte. Você acha que é possível hoje em dia que um candidato com esse posicionamento se torne presidente?

Todas as pesquisas demonstram um apoio cada vez maior da população norte-americana não só com relação ao casamento igualitário, como também quanto à igualdade de direitos em geral. Eu não vejo mais razão para muita controvérsia quanto a isso. Essa mudança em direção à igualdade é mais que uma questão bipartidária, já é uma questão apartidária. Todos os jovens já demonstram ser abertos à igualdade.

Sem dúvida, mas o problema é o que os mais velhos fazem nesse meio-tempo. No estado da Carolina do Norte, nesse momento, estão tentando aprovar uma lei que daria aos funcionários do cartório o poder de se negar a dar a licença para se casar a qualquer casal, homoafetivo, interracial, interreligioso, seja o que for, baseado apenas em suas crenças religiosas…

A questão dos direitos igualitários ainda está em andamento no meu país. Mas eu gostaria de deixar claro que os Estados Unidos é um país em que se aplicam as leis. A legislação não é algo opcional. Não acredito que venha a se estabelecer qualquer tipo de iniciativa que enfraqueceria isso.

Apesar de todas suas iniciativas contra a população LGBT, não parece haver muitas represálias contra a Rússia. Vocês têm planos para promover esses direitos civis igualitários por lá?

Nós estamos, sim, preocupados em garantir a todos o direito de se expressar livremente. Não temos planos no momento para visitar a Rússia, mas eu não descartaria essa possibilidade. Nós queremos desenvolver valores consistentes por todos os países, sejam eles o Brasil ou a Uganda. Todos os países estão passando pelo processo de evolução nesses valores – e o progresso pode acontecer de forma desigual pelo mundo por causa disso. Alguns países simplesmente levam mais tempo para mudar. Acho difícil que alguém venha a se negar a ter uma conversa sobre por que a violência contra a população LGBT deveria parar, se a conversa for feita de maneira construtiva. Minha presença nesses países pode dar início a essas conversas. Nós estamos descobrindo que o espaço que a sociedade civil tem em alguns países é muito pequeno. Isso dificulta o avanço dos direitos civis. Mas a partir do momento em que as pessoas reconhecem que LGBTs são humanos como eles, mudanças muito poderosas começam a acontecer. Esse espaço para a sociedade civil começa a aumentar. Temos que começar esse processo em algum ponto. Depois que isso tem início, começa a ser possível a conquista dos direitos igualitários.

As leis homofóbicas que foram sancionadas em Uganda foram fruto da ação de entidades religiosas que saíram dos Estados Unidos, onde não conseguiam mais ter esse tipo de influência, para pregar o ódio contra LGBTs na África. Como vocês pretendem tentar reverter essa situação?

Realmente algumas igrejas dos Estados Unidos tiveram seu papel no desenvolvimento dessa situação. Nós estamos conversando com religiosos dos Estados Unidos. Descobrimos que nem sempre quem grita mais é a voz com maior autoridade. Nós tentamos fazê-los ver que não há antagonismo entre os direitos LGBTs e suas crenças. Queremos que eles vejam como algumas mensagens que proclamam fazem mal – quando dizem a jovens LGBTs de 14, 15 anos, que devem curar-se ou permanecerão condenados. Acreditamos que todos têm o direito de seguirem suas crenças religiosas, mas isso pode ser feito em harmonia com os direitos civis de todos.

As questões LGBT estão desencadeando vários pedidos de boicote de ambos os lados. Aqui no Brasil mesmo houve uma reação dessa espécie contra um comercial do Boticário. Você acha que boicotar é uma arma que deve ser usada na luta pelos direitos civis? Esses boicotes podem fazer com que empresas tornem-se mais acolhedoras a LGBTs?

Acho que as pessoas devem gastar seu dinheiro da maneira que acharem melhor. Os boicotes correm em ambas as direções. Faz parte de uma sociedade livre que as pessoas possam decidir o que fazem ou deixam de fazer com seu dinheiro. Quanto às empresas, já está claro que as principais companhias globais estão tomando atitudes para garantir a inclusão no ambiente de trabalho. Seja qual for a razão para isso – conscientização, medo de processos, um modelo de negócios mais produtivo – o que importa é que esses avanços estão acontecendo.

Apesar de todos os avanços dos últimos anos, a comunidade transgênero ainda permanece à parte de muitas das ações por direitos civis. A atenção com homens e mulheres trans é a última fronteira da luta por direitos? Há planos seus específicos para a comunidade trans?

Em quase todos os países nossos irmãos e irmãs transgênero encaram mais violência e muito mais dificuldade para conseguirem desenvolver todo seu potencial. Há poucos países em que a cultura reconhece, respeita e valoriza transexuais, mas esses são a absoluta minoria, infelizmente. Na maior parte do mundo, trans têm menos acesso a educação e a emprego. Mais uma vez, acho que quando trazemos esse assunto à pauta, começamos um movimento para que essa situação mude. Precisamos fazer isso inclusive entre gays, lésbicas e bissexuais, pois há uma tendência dentro de nosso movimento de ser excludente. Quando somos abertos com relação a isso, damos um passo em direção ao mundo que quero construir, como marido e como pai.

A epidemia de HIV/Aids ainda assola desproporcionalmente a comunidade LGBT em todo o mundo. Quais são as ações que os EUA estão tomando para tentar diminuir esse problema?

Os Estados Unidos veem a questão do HIV e Aids como um problema de segurança nacional. Esse é um tópico muito relevante para mim, pois eu trabalhei na implementação de um programa de combate ao HIV na África do Sul antes de ocupar meu cargo atual. Queremos atacar essa questão em duas frentes, a do acesso aos cuidados médicos e a do combate ao estigma. Consideramos muito importante que todos, seja uma mulher na África do Sul, seja um gay em São Paulo, tenham acesso aos cuidados médicos que podem prevenir a contaminação pelo HIV. O estigma também tem que ser resolvido, porque ele faz com que as populações mais vulneráveis ao HIV não tenham acesso às informações que podem salvar sua saúde. A discriminação social contra a comunidade LGBT em muitos países faz com que muitos tenham medo de buscar apoio médico e informações. Com isso, a prevalência do HIV entre homens que fazem sexo com homens nesses países é muito maior.

Você já encontrou em suas viagens algum tipo de ação que você poderia apontar como exemplo a ser seguido?

Na verdade, há um grande exemplo bem aqui no Brasil. Eu visitei um centro em São Paulo que oferece apoio legal e médico para a comunidade LGBT, os auxilia com questões de HIV/Aids, e também os ajuda para que voltem a estudar. Principalmente junto a homens e mulheres trans. Eu conversei com pessoas da comunidade trans que estavam voltando a estudar depois de 20 anos. Eles haviam saído dos trilhos por causa de sua identidade de gênero, mas agora haviam recuperado a esperança de ter um futuro melhor. Por causa da educação, estavam recuperando sua dignidade básica.

Como os Estados Unidos e o Brasil se comparam quanto à diversidade?

O Brasil e os EUA são muito similares nessa questão. Assim como os Estados Unidos, o Brasil se desenvolveu a partir da união de várias culturas. Eu gostaria que todos pudessem ver o que vi ontem durante a Parada LGBT de São Paulo: pessoas de todas as idades, todas as cores, todas sexualidades, uma diversidade imensa e muito bela. Nossos países estão florescendo com isso. A diversidade nos torna mais ricos, a exclusão, mais pobres.

Apoie o Lado Bi!

Este é um site independente, e contribuições como a sua tornam nossa existência possível!

Doação única

Doação mensal:

Um comentário

Lucas

Nossa que incrível o cargo dele!!! Adorei a essa iniciativa dos EUA de se preocupar com as minorias de outros países. A esperança de viver em um mundo sem preconceito toma mais força com coisas assim. Excelente matéria, como sempre!

Comments are closed.