Ann Leckie, a escritora que se recusa a revelar o gênero de suas personagens

A mais nova expoente da ficção científica mundial cria no romance Ancillary Justice um futuro em que ser homem ou mulher é indiferente

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo para a revista Wired

Ano passado o romance Ancillary Justice (“Justiça Auxiliar”, em tradução livre), de Ann Leckie, ganhou quase todos os maiores prêmios da ficção científica. Ele conta a história de Breq, uma consciência coletiva composta de uma nave espacial senciente e sua tripulação de soldados conectados em rede. Quando um ato de traição destrói a nave e toda sua tripulação, exceto um membro, Breq parte no último corpo que lhe restou em busca de vingança. A história de Breq se desenrola sobre o império Radsch, um cenário deliciosamente complexo e instigante. Leckie se esforçou muito para criar um futuro plausível e livre de quaisquer cacoetes contemporâneos, uma falha comum da ficção científica situada no futuro distante.

“Isso é algo que se percebe mais facilmente na ficção científica mais antiga”, aponta Leckie. “Você tem essa sociedade futurista, com uma tecnologia completamente diferente, mas as pessoas estão fumando cigarros e usando réguas, e as relações sociais são exatamente como eram nos anos 1950. Tipo, a esposa chega servindo um café.”

Esposas servindo café são a última coisa que se encontra no império Radsch, em que os cidadãos são tão indiferentes ao gênero que homens e mulheres agem e se vestem da mesma maneira, e muitas vezes são difíceis de diferenciar, especialmente no que diz respeito a uma inteligência artificial como Breq. O idioma Radsch não faz qualquer distinção entre homens e mulheres, um fato que se reflete no texto pela decisão de usar os pronomes “ela” e “dela” para todas as personagens, não importa o gênero. O fato de que os leitores jamais realmente saberão os gêneros da maioria dos personagens principais criou um desafio interessante para os fãs artistas, que têm que se apoiar em suas impressões pessoais na hora de retratar as personagens.

“Fica claro que cada um desses artistas que se propuseram a fazer isso tem uma visão bastante específica em sua mente no que ser refere à aparência das personagens”, reflete Leckie. “E elas são todas muito diferentes umas das outras, e todas muito diferentes da minha visão interna dessas personagens, e mesmo assim, ao mesmo tempo, todas funcionam.”

Essa característica também transforma o livro em uma espécie de teste de Rorschach para os leitores, que às vezes formam opiniões fortes sobre o gênero de diferentes personagens e se convencem que seus palpites foram confirmados pelo texto. Na maior parte das vezes, estão errados.

“Em uma crítica, o escritor afirmava que as personagens que se envolviam em relações sexuais eram heterossexuais”, lembra Leckie. “E eu fiquei pensando, ‘de onde ele tirou isso?'”.

Muitos criticaram a maneira em que ela utiliza os pronomes em seu romance. “Eu fiquei muito surpresa pela quantidade de pessoas que ficaram enfurecidas por eu tentar exprimir a neutralidade de gênero utilizando um pronome feminino. Apesar de eu utilizar ‘ela’, que sabota o padrão masculino da língua, essas pessoas ainda sentem que seria muito melhor se eu houvesse utilizado um pronome genuinamente neutro, que a ideia seria transmitida de uma maneira melhor. Há também muita gente que fica com raiva porque as personagens masculinas na história são entendidas como sendo do outro gênero o tempo todo, porque o texto se refere a elas como ‘ela’ sem parar. Eu até entendo a razão disso, e com certeza não era minha intenção fazer com que qualquer pessoa sentisse que eu estava criando confusão propositalmente, e às vezes eu também sinto a frustração dos leitores a respeito dos pronomes neutros de terceira pessoa. Quem dera que eles fossem usados mais frequentemente. Na época em que eu escrevi o texto, eu trabalhava sobre uma presunção muito forte de que o gênero é realmente algo binário, e as consequências disso realmente se refletem no texto. Muitos já apontaram isso, e eles têm razão. Se eu fosse escrever aquilo hoje em dia eu trataria esses momentos da história de maneira diferente, mas acho que eu ainda utilizaria ‘ela’, porque acho que isso causa um efeito muito mais forte e visceral.”

Durante a entrevista, Leckie também deu sua opinião sobre as religiões. “Parte importante da narrativa da história do Cristianismo é que essa era a religião ‘de verdade’, que envolvia espiritualidade e fé reais, e por isso ela soterrou as outras práticas politeístas e pagãs. Eu cresci na igreja Católica Romana numa cidade predominantemente católica romana, e apenas quando eu cheguei à faculdade que eu descobri atitudes diferentes das que eu tinha a meu redor até então. Eu não sou mais católica, eu sou ateia, mas acho que essa opinião é muito ofensiva e cheia de ódio. Se você observar qualquer crença religiosa que não é a sua você vai pensar que ela é rasa, que não faz sentido, que não ressoa… É muito fácil olhar para o passado, especialmente do jeito que nos ensinam sobre o paganismo greco-romano, e pensar que isso não passa de uma porção de fábulas, meras tentativas de ‘explicar’ por que há relâmpagos ou inverno ou primavera. Que eles eram tão ignorantes e não conseguiriam compreender isso de outra forma. Acho que muitas dessas religiões politeístas antigas funcionavam de uma maneira muito diferente da maneira que o cristianismo, mas não acho que elas eram de forma alguma menos importantes para as pessoas que viviam com essas religiões.”

A autora também refletiu sobre música e artes. “Muitas vezes nossa cultura tem uma atitude a respeito da arte e da produção da arte que separa os artistas do resto das pessoas, como se criar arte ou música ou pintura ou seja o que for fosse algo mágico que você tem que estar inspirado para conseguir fazer, algo de que apenas pessoas especiais são capazes. Às vezes quando um escritor cria um personagem que é musical surgem indícios disso, uma coisa que parece conto de fadas, ‘ele atua e canta com tanta beleza que os animais param para ouvir’. É um pouco de exagero meu, mas eu não me sinto confortável com esse tipo de fetichização da música e do talento musical e do canto. Eu acho que arte – e a música, em particular – é algo que, sério, todo mundo consegue fazer com algum nível de habilidade, e quando você separa isso como algo que apenas pessoas especiais são capazes de fazer, apenas quem tem um talento especial, você arranca essa via de expressão artística de milhões de pessoas que seriam capazes de apreciá-la, mas que consideram que isso é algo de que são incapazes.”

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7 comentários

Caio

“…no império Radsch, em que os cidadãos são tão indiferentes ao gênero que homens e mulheres agem e se vestem da mesma maneira, e muitas vezes são difíceis de diferenciar…”, que horror! O que o politicamente correto está fazendo, não? Ainda bem que isso é apenas ficção. E ficar utilizando apenas pronomes femininos para identificar a quase todas as personagens é querer inverter o machismo e não diminuí-lo.

Carlos Henrique

Não vejo opção da autora como politicamente correto ou um combate ao machismo e promoção do feminino.

Defendo que foi uma escolha inteligente dela ao perceber que outras sociedades podem se estruturar sem levar em conta a questão de gênero; algo tão essencial a nossa sociedade

Fabio Fernandes

Muito bom ler este artigo aqui, Marcio. Vou traduzir o livro (vai sair pela Editora Aleph ano que vem) e vai ser um desafio – além do livro ser MUITO bom, não é fácil lidar com a questão da troca dos gêneros (mas é fascinante).

Posso fazer uma sugestão? Uma matéria sobre o escritor que (pelo menos em língua inglesa) criou a inversão de gênero: Samuel Delany. Um autor genial, que infelizmente só foi publicado aqui nos anos 60/70 e depois nunca mais, infelizmente (está vivo ainda, inclusive foi meu professor numa oficina literária em Seattle ano passado). Vale a pena. Abraços!

Antonio

Tu leu o livro, Márcio? É bom? Fiquei curioso, parece que tem potencial de ser fudidamente bom ou uma tremenda porcaria

Carlos Henrique

É tremendamente bom, esperando a versão em português para desfrutar melhor

Stefânia

Vale lembrar que a Bernadette Lyra (escritora capixaba) também tem um livro que não identifica os gêneros dos personagens. Se eu não me engano é o “Tormentos Ocasionais”. 😉

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