Traduzido do artigo de Jessica Nordell para o site New Republic
Cinquenta anos depois da publicação de A mística feminina e 40 anos depois da aprovação da Title IX, a legislação nos EUA que proíbe discriminação baseada em gênero, a razão por que as mulheres acabam ficando para trás na carreira profissional continua sem explicação, um enigma tanto para acadêmicos quanto para leigos. Apesar de as mulheres ingressarem no mercado de trabalho em posição de igualdade com os homens, elas são promovidas mais lentamente, e raras vezes chegam ao topo da hierarquia. Elas estão presentes em menor número nos altos escalões em setores tão diversos como ciências, artes e administração.
Há que sugira que há algo diferente nas mulheres – as mulheres empacam por causa de suas escolhas pessoais, ou por causa de suas características cognitivas e emocionais, sejam inatas ou adquiridas socialmente. Outra possibilidade seria que os obstáculos para o avanço das mulheres estão localizados dentro dos ambientes em que trabalham – elas enfrentam barreiras específicas a seu gênero. Já foi demonstrado, por exemplo, que tanto mulheres como homens atribuem os sucessos de mulheres mais frequentemente à sorte, e os sucessos dos homens à habilidade. As mulheres também recebem menos recompensas por emitir suas opiniões e tomar posições de comando. Um estudo demonstrou que mulheres que concorrem a bolsas de estudos têm que ser 2,5 vezes mais produtivas que a média dos homens para serem consideradas igualmente competentes.
Apesar da discriminação ter sido demonstrada experimentalmente, é difícil estudá-la no mundo real: assim com é difícil isolar o efeito de um único poluente sobre a saúde humana, é quase impossível isolar o gênero como variável no mundo real e observar como ele afeta as experiências cotidianas de uma pessoa.
Até agora. Pessoas trans estão trazendo maneiras completamente novas de abordar essa discussão. Como pessoas trans agora permanecem nas mesmas carreiras (e, às vezes, até no mesmo emprego) depois de readequação de gênero, eles têm uma qualificação única para discutir como mulheres e homens são tratados de maneira diferente no ambiente de trabalho. Suas vidas são o mais próximo que se pode chegar ao método científico: ao isolar-se e manipular-se o gênero como uma variável e manter-se todas as outras variáveis constantes – habilidade, carreira, personalidade, talento – esses indivíduos revelam exatamente a maneira como a aparência exterior de alguém afeta as interações do dia-a-dia. Se queremos realmente entender as mulheres no trabalho, nós deveríamos ouvir atentamente a homens trans e mulheres trans: eles podem nos dizer mais sobre a questão do gênero no ambiente de trabalho que qualquer outra pessoa.
Ben Barres é um biólogo em Stanford que vivia e trabalhava como Barbara Barres até chegar aos quarenta anos. Durante a maior parte de sua carreira, ele passava por discriminação, mas não dava muita importância para isso – encarava incidentes como eventos isolados. (Quando ele resolveu um problema matemático difícil, por exemplo, um professor disse “Você deve ter pedido para seu namorado resolvê-lo.”) Quando ele se tornou Ben, no entanto, ele percebeu imediatamente a diferença em seu cotidiano: “As pessoas que não sabem que eu sou transgênero me tratam com muito mais respeito”, afirma. As pessoas ouvem o que tem a dizer mais atentamente, e sua autoridade é questionada com menor frequência. Ele deixou de ser interrompido em reuniões. Numa conferência, um cientista disse: “Ben apresentou um seminário excelente hoje – mas, até aí, seu trabalho é muito melhor que o de sua irmã.” (O cientista não sabia que Ben e Barbara eram a mesma pessoa.) “Essa é a razão por que as mulheres não avançam nas carreiras acadêmicas em proporções consideráveis”, ele escreveu em resposta à famosa gafe de Larry Summers, que deu a entender que as mulheres são inatamente menos competentes nas ciências exatas. “Não é por causa dos filhos. Não é por causa das responsabilidades familiares”, alerta. “Eu já reparei nisso um milhão de vezes: as pessoas me levam mais a sério.”
Esse tipo de vivência é típica para homens trans. A socióloga Kristen Schilt entrevistou dezenas de indivíduos FTM (female to male, mulheres que fizeram a transição para homens) para seu livro Just One of the Guys? Transgender Men and the Persistence of Gender Inequality (“Um cara como os outros? Homens transgênero e a persistência da desigualdade de gênero”, em tradução livre). Um entrevistado apontou que quando ele emite uma opinião, agora os outros presentes anotam o que ele disse. Outro reparou, “Quando eu era mulher, não importava quantos fatos eu havia recolhido, as pessoas diziam ‘Você tem certeza disso?’. É tão estranho não ter que defender minhas posições.” Quando sugerem mulheres para promoções, outros homens dizem “Puxa, eu não tinha considerado ela” – eles foram capazes de promover mulheres porque agora seus conselhos são aceitos com maior seriedade. Características de personalidade que antes eram vistas negativamente quando eram mulheres agora são consideradas positivas. “Costumavam achar que eu era agressiva”, lembra um entrevistado. “Agora dizem que eu estou ‘no comando’. As pessoas dizem ‘Adoro sua atitude de comando’.”
Os efeitos da transição FTM, porém, não são universalmente positivos. A raça, ao que parece, tem a habilidade de sobrepujar o gênero quando se trata da estima alheia. Homens trans, por exemplo, descobrem que são considerados “perigosos” depois da transição. Um entrevistado relatou que deixou de ser uma “mulher negra detestável” para se tornar “um homem negro assustador” – e agora sempre pedem para que atue no papel do “suspeito” em exercícios de treinamento.
O que acontece quando a transformação oposta ocorre – quando um homem faz a transição para uma mulher? Joan Roughgarden é outra bióloga de Stanford que viveu e trabalhou como Jonathan Roughgarden até o início de seus 50 anos, e sua experiência é praticamente o espelho do que viveu Barre. Em suas próprias palavras: “considera-se que os homens são competentes até que se prove o contrário, enquanto as mulheres são consideradas incompetentes até que prove o contrário”. Numa entrevista, Roughgarden também reparou que se ela questionava um conceito matemático, as pessoas presumiam que era porque ela não havia entendido. Outras mulheres trans descobriram mudanças não apenas na percepção de suas habilidades, mas também na de sua personalidade. No trabalho de Schilt com mulheres trans para um livro futuro, ela descobriu que comportamentos que mulheres trans tinham enquanto eram homens agora são vistos como perturbadores. O que antes era “autoridade” agora é “agressividade”. Elas tiveram que se adaptar; as mulheres trans aprenderam rapidamente que “continuar a agir da mesma maneira seria danoso à sua carreira”.
Ao contrário daqueles entre nós que só vivenciaram o mundo dentro de um único gênero, as pessoas que Schilt entrevistou são capazes de reparar claramente que “homens têm mais sucesso no ambiente de trabalho que as mulheres por causa de estereótipos de gênero que privilegiam a masculinidade, não porque têm maiores conhecimentos ou habilidades”. A discriminação é algo difícil de se admitir. “Até que uma pessoa sofra uma discriminação que explicitamente faça mal a sua carreira”, Barres escreveu em resposta a Summers, “ela não acredita que isso existe”. E as pessoas tendem a pensar que o problema está em outro lugar: “Todos pensam que existe preconceito por aí, mas ‘eu não ajo assim'”, afirma Schilt.
Mas, continua Schilt, o preconceito é ao mesmo tempo mais sutil e menos detestável. E para resolvê-lo é necessário mais do que esperar que a velha guarda se aposente: a “fantasia da mudança demográfica simplesmente não é verdade”, afirma Schilt. “Nossa cultura é assim. É como nós organizamos o gênero, separamos por gênero, ambientes para homens e ambientes para mulheres – pensar que essas coisas são diferentes está enraizado em nós. E não apenas com homens, as mulheres também têm essas mesmas ideias.” As vivências das pessoas trans estão trazendo à luz esses fatores de uma maneira completamente nova e clara.
É claro que a amostra aqui é pequena. E não há opinião formada sobre causa e efeito. Chris Edwards, um executivo de contas trans, diz que depois da transição ele ganhou níveis maiores de responsabilidade – mas ele pensa que é porque a testosterona que ele tomou mudou seu comportamento. Ele se tornou menos tímido e mais franco – e foi considerado, no trabalho, mais como um líder. De fato, há quem sugira que os homens trans passam a usufruir desses benefícios no ambiente de trabalho em parte porque, depois da transição, eles são mais felizes e mais confortáveis consigo mesmos, e que essa confiança faz com que tenham maior sucesso profissional. Mas, se fosse essa a razão, seria de se esperar que mulheres trans, donas da mesma confiança recém-adquirida, percebessem os mesmos ganhos. O que está acontecendo parece ser o oposto.
É necessário mais pesquisa para se compreender completamente as vivências das pessoas trans com relação aos preconceitos de gênero no ambiente profissional. Mas a janela de oportunidade para se fazer isso pode estar se fechando, conforme as pessoas estão se tornando capazes de migrar de gênero cada vez mais jovens. Medicamentos que inibem a puberdade estão se tornando mais comuns, o que significa que jovens trans podem optar por suprimir as características sexuais secundárias desde relativamente pequenos. (Esse tratamento se tornou disponível nos EUA em 2009.) Uma criança que se identifica com o gênero oposto e busca tratamento agora é capaz de vivenciar o mundo, durante a maior parte de sua vida, dentro apenas do gênero que escolheu.
E o grupo de pessoas que se pronunciam sobre essa questão já é bastante reduzido; muitos parecem ter problemas bem maiores para encarar. Quando indagados sobre como as pessoas reagem quando ela descreve o tratamento diferenciado que ela recebe por ser mulher, Roughgarden se limita a responder “Eu não discuto isso”. No fim das contas, aponta Schilt, não é a responsabilidade das pessoas trans resolver a discriminação de gênero. Roughgarden concorda. “Nós estamos tentando construir uma vida”, ela considera. “Nós temos que viver dentro dos nossos papéis de verdade, nós não podemos sentar num café e ficar reclamando sobre como o mundo é. O mundo é assim e nós temos que viver nele. Nós temos que navegar isso.”