“Eu não sabia que era menino”: como é crescer sem pronomes de gênero

A blogueira trans Meredith Talusan cresceu falando uma língua em que os pronomes são neutros, e só reparou que havia nascido homem aos 11 anos

por Marcio Caparica

Traduzido do post escrito por Meredith Talusan em seu blog, A Self Made Woman

Eu não sabia que eu era menino até o dia em que meu irmão mais novo me chamou assim. Eu devia ter uns onze anos, e Tonton tinha cinco. Nossa tia Rosa, supercatólica, estava nos visitando em nossa pequena cidade de Talacsan, nas Filipinas, quando Tonton mostrou para ela um truque que eu havia lhe ensinado. Nós havíamos encontrado algumas camisinhas no armarinho do meu pai, e eu tinha ensinado ele a assoprar dentro e transformá-las em bexigas. As camisinhas ficavam escondidas junto das revistas Penthouse do meu pai, então eu sabia que a gente não devia pegá-las. Mas eu esqueci de falar para o Tonton que não era para mostrar isso para mais ninguém. A tia Rita falou para ele que ele ia pegar Aids, e perguntou onde é que ele tinha encontrado as camisinhas.

“Foi Kuya quem me mostrou”, ele disse em tagalog, e então ele tentou me encontrar com sua voz: “Kuya! Kuya!“. Eu fingi não ouvir.

Essa não foi a última vez que eu traí meu irmão. Mas é a minha primeira memória de ser um garoto.

Os pronomes em tagalog não têm gênero, mas a língua tem um termo particular para irmão mais velho homem: Kuya. E esse incidente foi a primeira vez que eu me lembro claramente em que Tonton me chamou por essa palavra, a primeira vez que eu me lembro em que alguém me designou como homem sem sombra de dúvida.

Ele deve ter me chamado de Kuya antes, mas eu não me lembro. E eu não me recordo de confrontar a realidade do meu gênero de nascimento até que eu folheei uma das revistas Penthouse do meu pai e pensei comigo mesmo: isso mesmo, eu sou menino.

Talvez eu devesse retomar a história antes de Tonton ter nascido. Eu fui filho único por seis anos e meio. Minha avó me chamava de Apo (neto/neta), meus pais me chamavam de Anak (filho/filha), minhas tias de Pamangkin (sobrinho/sobrinha). Quando as pessoas se referiam a mim na terceira pessoa, eles usavam siya ou niya ou kanya, todos pronomes de gênero neutro.

Meredith Talusan

Meredith Talusan

Suponho que eu sabia que havia dois tipos diferentes de pessoas e que eles se comportavam de maneiras distintas. Eu também sabia que minha Nanay, a palavra em tagalog para mãe que eu usava para me referir a minha avó, que me criou, usava vestidos, e ela não comprava vestidos para mim. Ela tinha cabelo comprido e eu não tinha cabelo comprido.

Mas ela me levava ao mercado e me ensinou a regatear. Ela me deixava brincar com crianças de vestido. E às vezes ela cortava o cabelo dela curto. Muitas vezes ela vestia calças. Eu a ajudava a cozinhar ralando coco. Eu não gostava de sentar e beber com o meu avô, apesar de às vezes sentar em seu colo enquanto ele jogava cartas, e eu me sentava no colo de minha avó enquanto ela jogava mahjong.

Todas as vezes em que alguém falava de mim, diziam kanyasyianyia, pronomes que não me identificavam como pertencente seja ao grupo de quem tinha cabelo comprido, seja ao grupo de quem tinha cabelo curto, seja ao grupo de quem usava saia, seja ao grupo de quem usava calças. Eu não era filho, mas sim criança, não era sobrinho, mas sim um termo equivalente cujo gênero não havia sido especificado.

Ao julgar das fotos em página dupla de que eu gostava nas revistas do papai, eu tinha desejo por pessoas que tinham genitália masculina. Mas, pela primeira vez, eu reconhecia que eu também tinha essa genitália. Aos onze anos eu finalmente era um garoto.

Eu cresci até me tornar uma mulher, mas primeiro eu cresci e me tornei homem. Um homem sem a menor vergonha de ser feminino. Um homem que era muitas vezes tomado por mulher. Um homem que comprava roupas na seção feminina as lojas de departamento. Mas homem. Ao descobrir que eu era um menino tão tarde na minha vida, eu não via nada de errado em ser um homem que fazia compras na seção feminina, que usava batom quando tinha vontade, que fantasiava em ser ele mesmo uma mulher. Mas eu também era um homem que não podia usar um vestido sem que as pessoas olhassem estranho, que não podia deixar seu cabelo crescer sem que as pessoas o vissem como uma drag queen, e que tinha que ouvir o tempo todo as pessoas se referindo a eleele com o cabelo dele e as roupas dele.

Então um dia, em fevereiro de 2001, eu falei para meu chefe no trabalho na sexta-feira que eu queria experimentar usar roupas de mulher o tempo todo. Eu voltei na segunda-feira com um top de estampa fúcsia e uma saia de veludo verde, na terça-feira com um vestido preto, e assim foi. Em agosto eu mudei meu nome e meu gênero legalmente na minha carteira de identidade. E em novembro eu visitei um terapeuta que fazia parte do time que ditava as regras que me obrigavam a visitar um terapeuta, e falei para ele que presumir que eu tinha um problema mental  por querer ser uma mulher era me tratar como os gays eram tratados nos anos 1970. Ele me receitou terapia hormonal na hora. Em março de 2002, em minha segunda consulta, ele concordou em escrever uma carta recomendando minha cirurgia de mudança de sexo. Eu a realizei em junho de 2002.

Hoje em dia meus irmão se referem a mim como Ateh, irmã mais velha. Eles passaram a usar esse termo imediatamente, assim que eu pedi, e o único resquício da minha transição para minha família é que Tonton ainda é chamado de Diko, o segundo irmão mais velho, quando ele é agora o irmão mais velho de todos e deveria ser chamado de Kuya. Isso deixa as outras pessoas que falam tagalog confusos, mas ninguém mais enxerga a diferença.

Agora que eu sou uma mulher, eu posso vestir saias ou calças. Eu posso deixar meu cabelo crescer ou usá-lo curto. Eu sou considerada inferior, mas posso chorar em público. Eu posso ser forte ou fraca. E me chamam com ela, mas eu não me importo se usam ele às vezes. Para os meus ouvidos, eles são próximos o suficiente, apesar de não serem bem a mesma coisa.

Minha família por volta de 1985. Eu estou de óculos, e Tonton está na fileira de baixo, o terceiro da esquerda para a direita, sentado no colo do meu tio.

Minha família por volta de 1985. Eu estou de óculos, e Tonton está na fileira de baixo, o terceiro da esquerda para a direita, sentado no colo do meu tio.

Aos 22 anos, por volta de 1997. Imagem por Ken Rudolph

Aos 22 anos, por volta de 1997. Imagem por Ken Rudolph

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3 comentários

Marcos

Interessante.
Os valores sociais exercem uma força terrível nas pessoas.

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