Todo mundo sofre com a patrulha do que é “normal” e “bonito”. Todo mundo encontra um defeito em seu corpo, ou em seu jeito de ser. Todo mundo se preocupa com o que vão pensar a seu respeito. Todo mundo, mas, como discutimos no Lado Bi do Feminismo, as mulheres são alvo de uma patrulha ainda mais perniciosa, porque por mais que sigam todas as regras do que é “certo”, ainda serão alvo de patrulha e críticas. Mas por que isso, e, tão importante quanto, pra quê?
A ilustradora Carol Rossetti levanta esses questionamentos e outros ligados à individualidade, diversidade e feminismo com a série de ilustrações que vem produzindo nos últimos meses. Publicadas em sua página no Facebook, a série Mulheres apresenta inúmeras questões com que todas se deparam diariamente, em maior ou menor intensidade: vigilância sobre seus cabelos, seus amores, suas roupas, suas sexualidades. Para a própria surpresa da autora, suas ilustrações despertaram interesse em todo o mundo – vários voluntários já traduziram suas mensagens para mais de 20 línguas, até o momento. Entre trabalhos, encomendas e mais ilustrações inspiradoras, Carol encontrou um tempinho para responder à seguinte entrevista por e-mail:
LADO BI Por que você começou a produzir essa série de ilustrações? Você acha que as mulheres de hoje em dia precisam se educar mais com relação às liberdades de que (talvez sem querer) abrem mão?
Carolina Rossetti Este projeto começou de forma muito pessoal, e nunca imaginei que fosse ter repercussão alguma. Quando comecei, queria simplesmente treinar minha técnica com lápis de cor, e pensei em fazer isso deixando uma mensagem legal para meus amigos mais próximos que já acompanhavam minha página. A temática sempre transita entre o feminismo, o amor próprio, o respeito pelas múltiplas identidades que o ser humano pode apresentar e a representação mais abrangentes das tantas gentes que existem por aí. Não acho que devemos jogar a responsabilidade toda para as mulheres em se reeducar. Este não é um processo fácil. É libertador, mas pode ser bem dolorido ter que rever tantos conceitos que foram tão profundamente internalizados em nós durante toda a vida. Isso joga na nossa cara todas as vezes que fomos coniventes com um quadro de opressão, e isso nunca é fácil. Acredito que seja importante discutir, sempre dialogar para descontruirmos e reconstruirmos alguns conceitos.
Você acha que esse formato torna a mensagem mais acessível para quem tem uma aversão inicial a mensagens feministas ou em prol da igualdade?
Sim, totalmente. Eu acredito que a arte tenha uma capacidade fantástica de cutucar o emocional das pessoas e fazê-las repensar alguns conceitos. Eu sempre tento provocar empatia com as minhas ilustrações, e mostrar como a pessoa que vivencia uma determinada situação se sente em relação a isso.
Seus desenhos apontam o machismo escondido em atitudes “normais” como exigir que as mulheres pintem os cabelos brancos, escondam seus corpos fora dos “padrões aceitáveis” ou se limitem a uma vida sexual tradicional e heteronormativa. Você recebe feedback negativo sobre seu trabalho? Já conseguiu convencer alguém de que suas posições não são corretas?
Já recebi alguns comentários negativos sim, mas são muito poucos comparados aos positivos. Realmente, são muito raros. Eu não me envolvo em discussões na internet, no sentido de bater boca e tentar convencer o outro. Já fiz isso algumas vezes, mas tem um tempo que não faço mais de jeito nenhum. Gosto de uma coisa que o Saramago disse um vez. Ele disse que nunca tentava convencer ninguém, porque esse tipo de posicionamento era uma forma de tentar “colonizar”o pensamento do outro. Acho isso muito bonito e muito sábio. Eu tenho coisas a dizer, e digo através da minha arte. Eu acho ótimo quando meu trabalho toca alguém de forma positiva, e fiquei imensamente feliz em receber mensagens de pessoas dizendo que meu trabalho a/o ajudou a “abrir a cabeça”, e repensar algumas ideias. Se isso acontece, prefiro que seja de forma espontânea, e não através de uma discussão “colonizadora”.
Você aponta as discriminações cotidianas sofridas também por travestis e mulheres trans. Educar sobre identidade de gênero é mais difícil?
Surpreendentemente, as respostas diretas têm sido positivas. Não é fácil, ainda não está claro na cabeça da maioria das pessoas a diferença entre sexualidade e identidade de gênero – e como nem sempre elas estão interligadas. Falta difundir muitos conceitos básicos para tornar os debates mais produtivos.
Suas ilustrações também estão fazendo sucesso fora do Brasil. Isso quer dizer que (infelizmente) a patrulha da vida das mulheres é universal? No que as respostas do exterior diferem das brasileiras? Quais tópicos se mostram mais relevantes no exterior (e vice-versa)?
Sim, foi uma surpresa e tanto ver meu trabalho ser tão amplamente compartilhado. A patrulha sobre a identidade de cada um é universal, e portanto muita gente se identifica. Atualmente, este trabalho está sendo traduzido para 24 línguas diferentes. Eu sempre converso com os tradutores, peço ideias, tento entender quais ilustrações são mais relevantes em cada país, quais temas seria interessante que eu abordasse etc. Por exemplo, fiquei sabendo que o aborto não é uma questão tão delicada na Índia, na Tunísia ou na Suíça. Ainda assim, elas acharam interessante traduzir, para que as pessoas destes países saibam também que isso ainda é algo que mata mulheres diariamente em outros lugares do mundo. A luta não acaba completamente se nossas irmãs continuam sofrendo em outro lugar.
Entre os tópicos de discriminação que você aborda, estão alguns que raramente são tratados, como a assexualidade, tentativas falhas de suicídio e nanismo. De onde vem a inspiração para esses temas? Você já se surpreendeu ao perceber agora formas de discriminação que passavam batidas por você antes de começar esse trabalho?
Algumas dessas vieram de sugestões de pessoas que acompanham meu trabalho, outras eu já tinha planos de fazer mesmo. Essas pessoas estão por aí, e precisam se sentir representadas. Em geral, se olharmos ao nosso redor, vamos encontrar essas pessoas, elas não estão escondidas – apenas mal representadas. E várias formas de discriminação me passavam (e com certeza ainda passam) batidas por mim. Não é fácil rever alguns conceitos e privilégios, mas garanto que é muito gratificante!
Por fim, o grande tema de suas ilustrações é como as pessoas deixam de ser si mesmas por conta da opinião alheia. Você acha que estamos evoluindo para uma sociedade mais tolerante com relação às diferenças individuais?
Eu sou uma otimista, acredito que sim. Acho que hoje está melhor do que há 30 anos, que por sua vez já estava melhor do que 30 antes. O problema é que ao mesmo tempo que vemos crescer or discursos de igualdade e inclusão, vemos também extremismos que apontam para o lado oposto. E aí, realmente, dá um certo desânimo. Mas no geral, acho mesmo que tem melhorado.