Por que o homem que era imune à Aids se suicidou ano passado?

Por uma anomalia genética, Steve Crohn escapou à epidemia de Aids que levou seus amigos nos anos 1980; a revista “New York” conta sua história

por Marcio Caparica

Traduzido da matéria de Jesse Green para revista New York

Steve Crohn parecia quase eufórico, como se estivesse aliviado ao riscar os itens de uma lista que já havia se tornado longa demais. Em julho ele voara até Londres para instalar uma de suas pinturas na casa dos amigos que a haviam encomendado. De volta a Nova York, ele conferiu seus e-mails e deixou mensagens em secretárias eletrônicas sem deixar escapar qualquer pista ou exibir um traço de desespero. Durante um almoço com o reitor da faculdade que havia cursado, ele colocou à disposição fotos que havia tirado durante a década de 1960 para uma exposição sobre o movimento dos direitos civis. Steve colocou no correio um cartão de aniversário com uma foto de gatinho para sua irmã, aparentemente já ciente das circunstâncias em que ele chegaria posteriormente. Depois fez uma lista de suas contas bancárias e senhas.

E ele terminou seus mapas. Durante toda sua carreira como artista – ele tinha 66 anos no momento – Steve teve que se sustentar e estruturar sua existência com vários outros empregos “sérios”: preparação de texto, produção de revistas, design de interiores, trabalho social. Mas preparar textos para a editora de turismo Fodor era seu trampo mais duradouro, e talvez o que mais lhe agradava. Ele podia executá-lo em casa, ou aquilo que no momento se passava por sua casa. E para uma pessoa meticulosa, esse trabalho podia trazer uma satisfação incomum. Ele lia cuidadosamente os manuscritos dos livros de viagem que a editora estava preparando, comparava os textos com os mapas, e certificava-se de que tudo que estava mencionado no manuscrito estava retratado com precisão no mapa. Dessa vez, a derradeira, ele percebeu que o restaurante 2 Fools and a Bull tinha ficado faltando no detalhe de Oranjestad. O resort Tropicana Aruba em Eagle Beach também estava faltando. Ele anotou esses erros com clareza, e então deixou o trabalho finalizado no edifício da Random House, entregando-o no balcão do lobby. Isso foi em agosto do ano passado, quinta-feira dia 15, à uma e meia da tarde.

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O que alguém na rua viu aquele dia? Um daqueles gays novaiorquinos cordiais, que envelhecem mas ainda não estão velhos, fora de forma mas não gordos, com mais ou menos 1,80 metros de altura, olhos azuis e algumas pitadas de ruivo na barba branca que emoldurava seu rosto. Mãos grandes de trabalhador, que mesmo assim exibiam uma aliança de ouro no dedo anelar direito. Correndo como alguém que tem muito trabalho a fazer ou lugares para visitar – pura fachada. Ele era freelancer em todos os sentidos: sem laços, talvez incapaz de formar laços. Acima de tudo ele era um sobrevivente, o que em seu caso significava não apenas ter sobrevivido mas ser especial. Ele fumava. Ele era amistoso com estranhos, encantador em coquetéis, sempre cultivando o ar do ricaço excêntrico apesar de viver de aposentadoria. Ele se vestia de maneira calculada: portava lenços, usava gorros, cordões de gravata, um colarinho levantado, meias interessantes. Ele tinha os dons verbais de Oscar Wilde se Wilde tivesse passado alguma vez por algum programa de recuperação. Ele chamava todos de “darling”. Ou, para dar apoio, “se joga!”.

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Os obituários erraram em muitas coisas, mas nisso eles acertaram: Stephen Lyon Crohn não morreu de Aids. Não ter morrido de Aids foi a razão por que, na verdade, ele chegou a aparecer nos obituários. Com certeza não foi por causa das centenas de obras de arte que produziu, apesar de serem belas; poucas pessoas já as haviam visto. Ser o sobrinho-neto do grande Burril Crohn – o médico que descreveu e emprestou seu nome à disordem inflamatória crônica – era um detalhe interessante mas não o principal. Não, era o prontuário médico do próprio Steve que lhe rendeu espaço no jornal Daily News: “O homem que não pegava Aids cometeu suicídio aos 66 anos“. Ou, como o Times de Los Angeles descreveu: “Imune ao HIV mas não a sua tragédia“.

É verdade: Steve era um dos pouquíssimos indivíduos da raça humana cujos corpos basicamente ignoravam o HIV. E ele pertencia ao grupo ainda mais reduzido dos que tiveram a oportunidade de descobrir isso. Nos idos dos anos 1980, numa época em que milhares de homens gays, inclusive dúzias de gays que Steve conhecia e amava, começaram a morrer, ele permanecia vivo. Certamente ele havia sido exposto múltiplas vezes, e mesmo assim, conforme ele esperava um ano, e depois vários, para se juntar a todos que ele havia perdido, ele veio a perceber que seu corpo não lhe daria essa oportunidade. Inquieto para descobrir a razão, ele passou de médico em médico, praticamente implorando para que alguém o estudasse; quando finalmente alguém fez isso, uma grande descoberta foi feita. Não só ele havia herdado uma mutação genética que o havia poupado, mas também esse conhecimento levaria ao desenvolvimento de uma droga que até hoje ajuda a manter a vida de pessoas que não eram tão afortunadas quanto ele. “Ele percebeu que podia oferecer uma peça do quebra-cabeça”, disse um pesquisador, “e ele estava certo”.

Steve, cuja história foi relatada em publicações médicas e num documentário em 1999, deveria ser conhecido como um dos heróis do esforço de se arrancar vida e conhecimento da morte e do desastre; quem sabe até ele se enxergou dessa maneira em alguns momentos. Ainda assim, depois de ter entregado seus mapas, depois de retirar o anel do dedo, pagar algumas contas, fazer algumas doações, e lidar com centenas de outros detalhes, ele se matou no dia 24 de agosto, sábado. Ter feito isso quase 30 anos depois da Aids ter lhe poupado forneceu o gancho aos redatores de manchetes. Todos os obituários mencionavam a culpa de ter sobrevivido, como se essa expressão, emprestada do Holocausto, servisse de explicação. Na verdade não passava de provocação. Um internauta comentou: “Se ele se importasse com os outros ele teria se mantido saudável para ajudar a encontrar uma cura”. Outro: “Um perdedor horrível, patético. Ele QUERIA pegar Aids… Egoísta… Ele não tinha problema ALGUM, então resolveu se matar”.

Mesmo suas duas irmãs ficaram atordoadas com as contradições implícitas em seu suicídio. Quando Amy – mesmo pai, mães diferentes – passou por crises médicas que por pouco não lhe custaram a vida em 1997 e 1998, Steve animou-a até que estivesse recuperada (“Nem pense em ficar para baixo”, ele dizia quando ela se entristecia). Como, então, o homem que havia lhe ajudado a sobreviver havia escolhido a morte? O que ser um sobrevivente significava, se isso lhe trazia ainda mais desespero? Sua irmã Carla – mesmo pai e mesma mãe – começou a se perguntar a quanto tempo ele já vinha planejando isso. (Quando ela ligou para sua psicoterapeuta para dar a notícia do suicídio, a recepcionista disse: “Não me surpreende.”) O cartão que Amy recebeu pouco depois do suicídio só fez aprofundar o mistério. Além do gatinho na frente (ela tivera um gato no passado), ele exibia, no lado de dentro, seus votos escritos à mão: “Feliz aniversário e aproveite presente”. Mas não havia presente.

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Steve, quase com 30 anos, em Fire Island

Steve, quase com 30 anos, em Fire Island

Houve um tempo em que ele tinha uma opinião muito elevada de si mesmo. Ele sabia que era um gênio (Ele entrou para a Mensa, uma organização para superdotados, para que todos também soubessem disso). Mas se durante a juventude ele havia sido um príncipe judeu, ele se enxergava como um príncipe fora de lugar, preso no galho errado de uma árvore genealógica complicada. Seu pai, Richard, era o espertalhão ovelha negra, filho de outra ovelha negra, o irmão do gênio médico dos Crohn, Burril. Os outros descendentes da família eram pilares endinheirados da sociedade judaica de Manhattan, não suburbanos de fundo de quintal como ele. Ainda assim sua família tentava manter as aparências. Eles conversavam sobre intelectualidades, às vezes em francês. Eles faziam escolhas sofisticadas. Quando Richard e sua esposa, Janet, se divorciaram, Richard, na faixa dos 35 anos, levou Steve, ainda criança, para morar consigo num apartamento pequeno na cidade. Não deu certo; poucos meses depois o pequeno esteta esnobe  voltou para Dumont, Nova Jersey, para morar com a mãe. Ele queria amar seu pai com todas as forças, mas sua mãe era quem sabia como amá-lo.

Apesar de que tanto seu pai como sua mãe eram liberais, a adolescência de Steve foi uma luta entre o desejo de ser popular e as implicações impopulares de sua sexualidade emergente. Durante o ensino médio ele tinha o hábito de ir até Manhattan com um amigo, começar a fazer compras na loja B. Altman’s, e visitar todas as lojas e livrarias até chegar na Saks. Ele comprava suéteres que nenhum outro jovem em Dumont sabia apreciar. As paredes de seu quarto eram cobertas com cartões postais de pinturas impressionistas, e depois expressionistas.. Mas conforme sua palheta expandia, seus gostos se tornavam mais específicos; eram poucos os adolescentes suburbanos no início dos anos 1960 que liam, como ele, a revista Mattachine Review, a precursora da revolução gay. Ninguém lhe dizia para não lê-la. Se alguém dissesse, ele também não daria ouvidos.

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O lado ruim de ser exigente é a frustração constante. Tende-se a deixar as coisas para trás sempre que possível. Antes de terminar seu primeiro ano na Universidade de Wisconsin, ele havia se unido à marcha da cidade de Selma até a cidade de Montgomery liderada por Martin Luther King; com isso, Wisconsin já era. Ele se identificava (como escreveu na época) com a luta de King para “aparar os chifres do preconceito”: ele mesmo já havia sido ferido por esses chifres. Dormindo com homens e ainda namorando mulheres, ele lutou com sua homossexualidade por anos, mesmo depois de se mudar para um apartamento no quinto andar de um prédio em Hell’s Kitchen em 1965. Esse foi o primeiro de seus paraísos, suas Utopias, seus Brigadoons.

Nova York parecia estar despertando de uma hibernação, assim como, aos 19 anos, estava ele. Ele deixou sua cabeleira ruiva e crespa crescer e se erguer. Ele saía para dançar no Dom. Os amigos que não se interessavam por maconha e LSD foram logo substituídos por novos amigos que se interessavam. Ele estudou em Cooper Union e na Art Students League, experimentou com o budismo, protestou contra a guerra do Vietnam, e não tinha pudores de, conforme corriam os anos 1970, expor sua irmã adolescente Amy a seus atos perniciosos. Ela entrava em órbita só de entrar em seu apartamento, por causa das paredes que ele tinha pintado de verde ácido. Quando ela perguntava sobre a promiscuidade dos homens gays, ele dizia que era assim que as coisas eram na cultura gay.

Sua liberação se derramava em sua arte, e as naturezas mortas e paisagens de sua juventude agora se desfaziam em algo mais abstrato. (Ele finalmente conseguiu se formar em Belas Artes no City College em 1972.) Steve até conseguiu acumular uma pequena reputação ao fim de seus 20 anos. Se ele tinha que fazer revisões para a revista Business Week para se manter, a Business Week retornava o favor, em 1976 listando suas obras como um bom investimento. Não que ele vendesse muito; ele cobrava preços excessivamente altos.

“Um dia ele começou a se sentir mal”, Steve escreveu em um conto chamado “A Jornada de Stephen”. “E nas semanas seguintes ele desenvolveu todo tipo de pequenas infecções, na garganta em particular.” Essa metáfora inquietante, anos antes da Aids, era parte de uma fantasia ilustrada sobre a busca heroica de um jovem artista por sua vocação. Nela, um cavalo branco puxando uma carroça cheia de carvão chega para levá-lo numa grande jornada. O carvão “começou a brilhar com uma familiaridade estranha”. Cada objeto  que o jovem carrega representa algo que ele deve deixar para trás: família, amigos, até mesmo as dúvidas sobre si mesmo. Ele joga todos na rua até restar apenas um: a pintura mais bela que ele já viu. (Ela carrega sua própria assinatura.) “Eu tenho que desistir disso também?” Ele tem: “A jornada é mais importante”. Suas infecções e dores desaparecem. Mas o cavalo desaparece também.

Numa noite fria de janeiro de 1979, Steve, então com 32 anos, encontrou Jerry Green numa “festa de apartamento informal, porém sexual” no Flatiron District. Jerry tinha “um corpo magro, muscular e flexível, consequência da ginástica que praticava”, ele escreveu posteriormente em memórias nunca concluídas, cujos capítulos tinham, em grande parte, canções dos Beatles por título. “Eu sempre pensei que ele tinha a aparência romântica de um príncipe árabe – em versão judia, claro – mas havia algo exótico sobre” – e aqui o capítulo dois (“Got to Get You Into My Life”) termina abruptamente.

Steve e seu namorado, Jerry Green.

Steve e seu namorado, Jerry Green.

Apesar de ter um mestrado em bioestatística, Jerry trabalhava com chef executivo no Whitney Museum. Ele tinha 32 anos. Tímido e contido, não podia haver contraste maior com alguém como Steve,tão bombástico, capaz de iluminar qualquer ambiente, que nunca deixava de falar o que pensava, uma característica que sua liberação gay só realçou. Ele e Jerry “davam-se as mãos discretamente” enquanto ouviam Montserrat Caballé cantar no Carnegie Hall, mas a discrição em qualquer outro ambiente seria hipocrisia: “Nós sentíamos júbilo na liberdade de nossos corpos”. Assim como, aparentemente, todo mundo. Ben e Marty, amigos de Jerry, eram abertos sobre seu relacionamento aberto; o próprio Jerry mantinha um amante num relacionamento a longa distância. No entanto, ele e Steve sentiram o estalo de uma conexão humana única entre eles. Eles se encaixavam. Para Steve, a prova veio com uma crise de hepatite poucas semanas depois de se conhecerem: Jerry cuidou dele com devoção até que ele voltasse a estar bem. Aqui estava um homem que ele queria amar, que também sabia como amá-lo. “Eu viveria apenas pelo seu prazer” era a frase que Jerry tinha grifado no programa do concerto de Caballé. Pela primeira vez na vida, Steve foi menos poético. “Dizem que quando você encontra alguém que tem um gosto bom…”, escreveu. “Bem, Jerry Green era delicioso.”

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Seu pai, buscando uma nova esposa, mal pôde reclamar quando Steve informou-lhe sobre seu novo amor. Para falar a verdade, ele estava encantado, apesar de não ter sido completamente informado. Ele “dançava pelo apartamento como se fosse um leprechaun” e disse “espero que um dia eu encontre ele/ela”.

Parece, no entanto, que eles nunca se encontraram. Steve e Jerry se mudaram para Los Angeles antes do final do ano, e as notícias da Costa Oeste eram esporádicas. Pelo que se sabe, Jerry logo abriu um restaurante chamado Eats, em Santa Monica Boulevard em West Hollywood. Steve criou o logotipo e desenhou os anúncios, que mostravam ítens do menu voando através de um céu noturno brilhante.

E eles trabalharam em sua casa em North Alta Vista: um bangalô de estilo espanhol de 1927, repleto de peças de arte, com telhado vermelho, jardim pequeno na frente, e cadeiras de jantar forradas com tecido pintado por Steve. Os amigos que o visitaram em 1980 o encontraram feliz como jamais esteve antes; finalmente, dizia, ele tinha encontrado sua “alma gêmea”. Mas todos do mundo gay de Los Angeles pareciam felizes na época: “nós tínhamos música, nós tínhamos a disco, nós tínhamos drogas”, Steve disse mais tarde, “e nós podíamos dançar a noite inteira e trepar o dia inteiro”. Fotos da turma no Eats mostram todos com seus bigodes obrigatórios e camisetas apertadas, tão repletos de possibilidades gays. Ninguém sabia que a bomba estava prestes a explodir.

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Parecia ser um resfriado, no começo: nada com o que se preocupar. Em janeiro de 1981 a Aids não era sequer o nome de uma doença, quanto menos de uma epidemia. (A contagem de óbitos nos Estados Unidos ainda não havia chegado aos dois dígitos.) Os médicos disseram que o que Jerry tinha era uma FOD: Febre de Origem Desconhecida. Seu rumo, no entanto, tornou-se evidente depois de um ano. A essa altura Jerry estava cego de um olho e tinha a pele coberta de lesões de Sarcoma de Kaposi; Steve acompanhava horrorizado conforme “o corpo daquele homem bonito… envelhecia 60 anos perante meus olhos”. “Parecia O Exorcista“, disse. Apesar de tentar cuidar de Jerry como Jerry tinha cuidado dele, Steve estava furioso e em pânico. Fazendo parte de uma família de médicos, ele achava que inteligência e conexões deveriam ser capazes de resolver o problema; sendo espiritualizado, ele pensava que Jerry poderia se curar com visualizações e pensamento positivo. Nada disso funcionou.

Em 4 de março de 1982 Gerald Edwin Green, 35 anos, filho de Max e Ann Green de West Newton, Massachusetts, operador de uma loja de alimentos (como dizia o atestado de óbito), morreu de pneumonia por citomegalovirus no Brotman Medical Center em Culver City. Seu estado civil, fornecido ao escrivão por seu pai, era “solteiro”.

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Steve dificilmente pintou um retrato ou natureza morta depois disso. Na década de 1980, um novo estilo emergiu: ele derramava cores sobre telas grandes, cobria partes com fita adesiva, pintava mais, colocava mais fita, arrancava a fita, pintava e colocava mais fita e arrancava mais fita. Era praticamente impossível que qualquer tipo de imagem sobrevivesse ao processo. Uma obra entitulada Parrot Garden (Jardim de Papagaios), de 1981, é quase totalmente preta: nada de papagaios, nada de jardim.

A essa altura Jerry já era; de certa maneira, parecia que ele jamais havia estado lá. Apenas três anos e dois meses haviam passado entre o a festa “informal porém sexual” no apartamento e o cadáver esquelético. E se era possível que alguém desaparecesse ainda mais completamente, isso aconteceu com Jerry. A família Green, que tratava Steve com “amargura e ódio e vergonha”, cortou todo tipo de contato, se negando a dizer sequer onde Jerry havia sido enterrado. E quanto tempo poderia demorar até que Steve seguisse o mesmo caminho? Conforme a FOD se tornava o “câncer gay” e esse se tornava a Aids, para então se descobrir que a Aids era sexualmente transmissível, Steve compreendia que isso era apenas questão de tempo.

E então, sem nada que o prendesse à Califórnia, e precisando, como ele disse, “de ser cuidado”, ele abandonou sua segunda Utopia em 1983. Um amigo chamado Ron Edwards o ajudou a fazer as malas para a viagem de um lado a outro do país; no caminho, ele visitou outro amigo, Kris Johnson, também pintor.

Johnson morreu aos 33 anos em 1985. Edwards morreu alguns meses mais tarde, com 47 anos. Ben e Marty, os outros amigos de Jerry, morreram em 1986 e 1989, respectivamente. Pelo final da década, quase toda turma das fotos do Eats provavelmente já estava morta também. (Danny Adams, o fotógrafo, morreu em 1989.) No fim das contas, quase 70 membros do círculo de amizades de Steve morreram de Aids. E ele continuava sem morrer. Ter sido um dos poucos sobreviventes do início da guerra não o deixou menos traumatizado. Ele chegava a se perguntar se, ao sobreviver, ele não havia traído seus amigos. Isso era o remorso do sobrevivente, e sua chama, sempre avivada por mais mortes e funerais, quase o enlouqueceu. Sua família o encontrou várias vezes alheio, falando estranhamente ou apenas “desligado”. Ele percebeu isso também. “A ferida aberta da perda requer tempo”, ele escreveu. “Se houver tempo.”

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Ao longo dos dez anos seguintes, de volta a Hell’s Kitchen, ele teve outros casos e namoros – praticando sexo “mais seguro” – mas nunca encontrou outro Jerry. No casamento de Amy em 1984 a família havia combinado que ele pegaria o buquê; ela exagerou na força e acabou acertando a janela. Apesar de estar cada vez mais hipocondríaco – qualquer pequena doença era um sinal de que o HIV finalmente havia encontrado uma brecha em suas defesas – ele continuava enfrentando seus temores. Ele participava de grupos de luto, de apoio, de assistência, de aconselhamento. (Ele se tornou Mestre em Assistência Social pela Universidade de Nova York em 1992.) Quando ele passou a trabalhar como voluntário com pacientes de Aids numa época em que muitos tinham medo de chegar perto deles, ele dizia: “Meu amor, se for para eu pegar isso, eu já peguei.” E já que ele estava, por enquanto, ainda vivo, ele tinha que viver. Ao visitar um antigo amigo em San Francisco em outubro de 1989, ele presenciou o terremoto de Loma Prieta; logo depois, ele colocou a cabeça para fora da janela e gritou para vizinhos de olhos arregalados e gatos de pelo eriçado: “Isso foi mara!”.

As mortes continuaram acontecendo, em quantidade menor; chegou o momento em que não havia restado mais ninguém. E algumas mortes foram desastres solitários, como o de sua mãe, vítima de câncer de mama aos 67 anos. Algum tempo depois, ele diria a Amy que não conseguia se imaginar querendo viver além daquela idade. Desse momento em diante ele passou a usar a aliança de casamento de sua mãe em seu dedo anelar direito.

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O Dr. William Paxton finalmente coletou seu sangue em 1994, depois de Steve passar anos dizendo a qualquer um que se dispusesse a ouvir que ele devia ter algum tipo de resistência natural. Em festas de família ele abordava os Crohns associados a pesquisas médicas, e todos diziam que sim, sim, alguém deveria examiná-lo. E no entanto, suas ligações não conseguiam fazer acontecer qualquer estudo sobre homens soronegativos. Ele se perguntava: por que os cientistas não estavam dando atenção às pessoas que passavam ilesas à doença, como faziam com todas as outras? Um dia ele descobriu que Paxton, no Aaron Diamond AIDS Research Center, estava em busca de “não-progressivos”; Steve foi o primeiro da fila, contou Paxton. E rapidamente sua hipótese foi confirmada. Apesar de bombardearem suas células imunológicas CD4 com doses de HIV 3000 vezes maior que o normal, Paxton não conseguia estabelecer uma infecção.

O motivo para isso levaria mais dois anos até ser desvendado. Assim como por volta de 0,1% da população mundial, Steve havia herdado duas cópias de uma mutação genética chamada Delta 32. Por consequência, suas células CD4 careciam de uma versão funcional de um dos dois receptores de superfície que o HIV tem que encontrar e “destrancar” para ganhar acesso aos mecanismos da célula. Sem esse receptor, chamado CCR5, o HIV passa batido e é eliminado da corrente sanguínea em questão de horas. Apesar de Steve odiar quando as pessoas afirmavam que ele deveria se sentir “abençoado” – ele dizia que isso soava tão narcisista – seu defeito realmente era uma bênção. Ou pelo menos ele torcia para que fosse uma para suas irmãs, que nunca teriam que perdê-lo como ele havia perdido tantas pessoas.

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Para o Diamond Center a combinação da sinceridade e loquacidade de Steve fizeram dele a ferramenta midiática perfeita. Para ajudar a chamar a atenção e angariar fundos para as pesquisas em andamento, ele contou e recontou a história de Jerry e seus 70 (seriam agora 80?) amigos mortos; ele disparava frases perfeitamente anódinas que ajudavam a colocar a pesquisa da Aids no mainstream da filantropia. “Sua vida fez uma retribuição muito pequena”, ele disse numa entrevista, como se falando sobre outra pessoa, “e isso pode afetar o bem-estar e a saúde de milhões de pessoas”. Ele não estava exagerando. A compreensão do papel do CCR5 levou ao desenvolvimento da droga maraviroc, que foi aprovada para a utilização geral em 2007. Sob o nome comercial Selzentry, ela hoje é parte do protocolo padrão para muitos soropositivos e também está sendo testada como forma de prevenção.

A atenção que seu sangue lhe trouxe foi, num primeiro momento, um conforto. Recebendo pedidos de entrevista de todo o globo, ele sentia que estava honrando a memória de seus amigos falecidos. E talvez ele também estivesse honrando sua própria necessidade de atenção. Ele foi o astro evidente de um documentário de 1999, que o apresentava em várias vinhetas encenadas: sentado em sua cozinha entre um par de velas, trabalhando numa colcha de retalhos sobre a Aids, pintando habilmente uma aquarela. Apesar de muitas vezes amargurado, ele conseguia armar um sorriso ao dizer que se ele pudesse ser útil para mais pesquisas, “estarei aqui a postos”. Em 2002, ao participar de um episódio de uma série lúgubre chamada Secrets of the Dead (Segredos dos Mortos), ele já estava completamente confortável ao interpretar o papel do guerreiro da ciência: alguém que havia oferecido seu corpo, que a morte era incapaz de levar, para a medicina, fazendo uma contribuição talvez equiparável à de seu tio-avô Burrill.

Mas a fama foi outra infecção da qual seu sistema rapidamente se livrou. Ele se cansou da atenção da mídia, que não chegava aos pés da atenção dos amigos de verdade.

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Steve em seu estúdio em casa, um ano antes de sua morte.

Steve em seu estúdio em casa, um ano antes de sua morte.

Mais de cento e cinquenta quilômetros rio acima de Manhattan fica o vilarejo de Malden-on-Hudson. Em 2006, Steve se mudou para um apartamento de primeiro andar recortado no que um dia foi uma grande mansão de três andares. Dentro, o espaço de três cômodos era amplo o suficiente para servir de casa e estúdio, mas os dois aspectos mal se distinguiam. Arte se espalhava por toda parte. Assim como Steve. Aos 60 anos, ele se assentou nas amizades fáceis de uma comunidade em que todos se conheciam, envolvendo-se com todas suas atividades: a biblioteca, o tour pelo estúdio, o comitê eleitoral. Muitas de suas novas amizades pensavam erroneamente, por causa de seu estilo e sua aura de nobreza, que ele era um milionário. Mas ele era apenas feliz. Ou, finalmente, mais feliz. O local era outra Utopia: uma Brigadoon, ele dizia sem ironia. E, como Brigadoon, ela logo desapareceu. Em 2012 os proprietários do edifício, considerando que precisavam lidar com seu estado avançado de deterioração, pediram que os inquilinos se retirassem.

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Assim como a vida adulta tende a empurrar as pessoas normais para situações de normalidade cada vez maior, ela tende a empurrar os excêntricos cada vez mais para as margens se não houver uma força no sentido contrário. Steve tinha amigos, em sua maioria distantes, e uma extensa e diversa família de meios-irmãos, primos-sobrinhos, e outros parentescos mais difíceis de definir. Mas ele não contava com um marido ou com filhos (apesar de haver desejado ambos) nem, tragicamente, com amigos próximos. Ele era capaz de combater o remorso de ser sobrevivente com terapia e visualizações e visitas a ashrams. Mas sobreviver era um problema mais complexo. Sobreviver significava encarar sua mortalidade, essencialmente, sozinho. E então, apesar da Aids ter lhe ignorado, as indignidades comuns de envelhecer (um pouco de neuropatia, alguns ataques de arritmia) o tiravam do sério. Ele entrava em pânico sem motivo, reclamava sobre como ele estava velho para pessoas mais velhas que ele. Quando precisou retirar a vesícula e Amy não pôde ajudá-lo como ele havia feito porque precisava cuidar dos dois filhos, Steve teve um ataque de fúria tão severo que os dois ficaram sem se falar quase até o fim de sua vida. O excêntrico amável havia de alguma maneira se tornado, Carla enxergava com tristeza, um velhaco ranzinza. Não foi a culpa que causou as mudanças, mas a decepção. O mundo, mesmo estando repleto de lugares maravilhosos, estava coalhado de erros. Não era bom o suficiente.

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Depois da semigrandiosidade de Malden-on-Hudson, a casinha charmosa em Catskill era uma derrocada terrível; e, de qualquer maneira, os vários degraus que levavam até o quarto eram demais para subir todos os dias. Depois de um ano ele cancelou o aluguel, em junho de 2013. Ele fez uma reserva de um mês, graças a uma bolsa de estudos, no ashram Ananda em Monroe, onde ele esperava restaurar sua saúde e atitude enquanto estudava sânscrito. Então, a partir do meio de julho, ele viajaria para Londres e para a França. Apesar disso tudo, ele soava muito agitado para suas irmãs. Uma noite, depois de comer fora, ele dormiu no volante quando voltava para o ashram. Ele tinha sido proibido de tomar álcool por causa dos vários remédios que tomava.

A viagem para a Europa foi interrompida antes da hora; ele não tinha dinheiro para ir até a França. Mas seus anfitriões em Londres (que haviam pagado por seu voo) dizem que ele estava feliz: ele entregou o quadro que havia feito para eles e, junto da filha adolescente do casal, gravou um vídeo emocionado cantando “Let It Be”. Quando retornou aos Estados Unidos no fim de julho, sem ter outro lugar para ir enquanto procurava por uma nova casa, ele se instalou no apartamento de um antigo amigo de Hell’s Kitchen que costumava viajar durante os verões. Ele já havia ficado por lá outras vezes e conhecia as regras: ele tinha que sair dali antes que o amigo retornasse no dia 26 de agosto. O amigo não estava interessado em alguém para rachar o apartamento.

Na quinta-feira, 15 de agosto, Steve terminou seu trabalho nos guias Fodor para Aruba e Turks e Caicos, lugares que ele jamais visitaria. Durante a semana seguinte ele buscou moradia com afinco, online e pessoalmente, mas não conseguiu encontrar um apartamento em conta perto de Malden que lhe agradasse – nem mesmo nas famigeradas moradias para idosos. Talvez quando os fãs de equitação fossem embora em setembro o mercado afrouxaria, mas ele não dispunha de tanto tempo. Claro, ele poderia contar com sua generosa prima Ruth Crohn no Upper East Side de Nova York, que já o havia recebido no passado; mas ela tinha quase 100 anos e estava resfriada, então ele achou melhor não pedir. A armadilha estava se fechando: “Um mapa do mundo que não inclui Utopia”, escreveu Wilde, “não vale sequer um relance”. Ainda assim, Steve tentou preservar uma aparência despreocupada. Ele almoçava com amigos, conversava com familiares, e enviava vários e-mails, confidenciando a algumas pessoas como ele estava exausto e indiferente, e dizendo para outras que tudo estava, ou logo estaria, bem. Na terça-feira, 20 de agosto, ele avisou Carla que iria para o interior do estado naquele final de semana para procurar um apartamento. Depois disso, quando ela tentou telefonar, sua caixa postal estava cheia.

Ele não foi para o interior como planejado, mas num e-mail enviado para um amigo de longa data na manhã de Sexta, aparentemente se referindo ao problema de moradia, Steve escreveu que “algo deve acontecer esse final de semana”. Não se sabe como ele passou o resto de seu dia derradeiro. Mas sabe-se como ele pôs fim a ele. Às 22:09h, de acordo com o histórico de seu computador, ele abriu uma foto de si mesmo na praia, de aparência bronzeada e feliz, vestindo shorts coloridos. Se já não havia feito isso antes, ele então retirou a aliança de sua mãe. Com seu 67º aniversário dali a 13 dias, ele não iria, afinal de contas, viver mais que ela.

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Alguém chamou a polícia às 6:45h da manhã seguinte. Um homem inconsciente e inerte estava no banco do motorista de um Chevrolet Equinox estacionado em frente à igreja Manor Community na rua West 26th em Chelsea. Os técnicos médicos de emergência declararam seu óbito no local. O escritório de exames médicos disse mais tarde que a causa da morte havia sido “intoxicação aguda devido ao efeito conjunto de oxicodona e benzodiazepinas”; parece que ele havia feito estoque de analgésicos e tranquilizantes. A maneira da morte – distinta de uma overdose acidental devido à quantidade enorme de pílulas que ele engoliu – era o suicídio.

E assim o amigo que retornaria para a cidade dois dias depois não teria que lidar com alguém em seu apartamento. (Ou com os pertences desse alguém: tudo que não havia sido deixado num depósito estava enfiado no carro.) Mas o resto dos amigos e familiares de Steve teriam o fardo de viver com dúvidas pelo resto de suas vidas. Poderiam ter feito mais? (Mas ele não havia pedido.) Poderiam ter adivinhado? (Mas ele havia se escondido em seu desespero, se isso havia sido desespero.) Ele estava doente? (A autópsia não revelou nada incomum para um homem de 66 anos.) Será que ele realmente havia se suicidado, portanto, por causa de um problema de moradia? Parecia impossível; pelo contrário, uma sensação tomou porte entre os sobreviventes de que o suicídio foi a solução ponderada e lógica para os problemas com os quais Steve estava simplesmente cansado de lidar. Certamente o bilhete de duas páginas que ele deixou não era nada irracional. Em grande parte ela providenciava informações práticas sobre coisas como o depósito onde guardou suas coisas, assim como instruções para que avisassem o comitê eleitoral do condado de Ulster que ele não poderia fiscalizar as eleições de setembro. Seja como for, ele morreu, ao contrário de tantos amigos seus, na hora e do jeito que escolheu. E, sabe-se lá, sendo uma pessoa que acreditava na vida após a morte, ele talvez tivesse a esperança de se reunir com sua mãe, ao lado de quem ele está enterrado agora; reunir-se com Jerry, que partiu 30 anos atrás; reunir-se com todos os outros que ele amou e, por causa de um defeito, sobreviveu.

Com o passar do tempo suas irmãs conseguiram provisoriamente encontrar indícios desse ponto de vista menos trágico, não só em sua mensagem de aniversário para Amy (“aproveite presente”), mas também na maneira como ele foi encontrado no carro pela polícia. Com o assento reclinado o máximo possível e um CD de cânticos budistas por perto, ele havia colocado os pés sobre o painel. Ele sorria.

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11 comentários

Tatiana

Adorei sua escrita. Estava lendo uma história interessante num livro bom de se ler. Nem percebi que era num blog

Alexandre

Parabéns pelo belo texto, muito bem redigido e realmente reflexivo durante toda a sua leitura. Encontrei seu blog por um acaso, para ler uma matéria em especial, mas essa já foi a matéria de número 15 que li hoje. Parabéns pelo trabalho e conquistou um fã de seu trabalho.

Abracao

Leiliano Reis

Olá Márcio,
Estou profundamente emocionado com a história, especialmente pela maneira como o texto foi escrito. Me deu conteúdo para refletir muita coisa, um filme me veio a cabeça enquanto lia!
Parabéns pelo talento colocado em prática!
Bjs
Leiliano

manuel

somente ser solidario com este Homem que foi um homem mto capaz de lutar pra o seu proprio bem! tardou chegar a medicação dos antitrovirais na epoca era antes da descoberta.

Economia brasileira – terceira dezena de maio de 2014 | Eurotestdrive

[…] Por que o homem que era imune à Aids se suicidou ano passado? Durante um almoço com o reitor da faculdade que havia cursado, ele colocou à disposição fotos que havia tirado durante a década de 1960 para uma exposição sobre o movimento dos direitos civis. Steve colocou no correio um cartão … Um daqueles gays … Read more on Lado Bi […]

Klesius

Lindo texto, parabéns pela tradução dessa história e por postar!

Andre Rocha

Uau !!! Que história de vida. Sempre tive uma opinião muito peculiar, talvez intransigente, sobre suicídio. Acreditava que tirar a própria vida era coisa de gente fraca sem amor próprio, além de desespero enlouquecedor, posso estar certo ou não. O fato é que a vida dele contribuiu para a luta e o combate de uma doença que a muito acreditava-se ser “a epidemia gay” e que, apesar do amplo conhecimento, muitos ainda brincam de “Roleta Russa” com suas vidas. Mas sem sombra de dúvidas esse homem não foi fraco nem desesperado, talvez apenas cansado ou com sua missão cumprida.

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