Gamer trans coloca em xeque a questão de gênero nos esportes eletrônicos

Sasha Hostyn, mais conhecida como Scarlett, é uma trans que chegou ao topo das competições de Starcraft - e revelou a intolerância de gamers

por Marcio Caparica

Adaptado do artigo escrito por Ryan Smith para o site A.V. Club.

“Desculpa, o que foi que você disse?”. A conversa que eu levava com o homem vestindo uma camiseta de Starcraft a meu lado foi soterrada pelos gritos de 2 mil outros espectadores, entoando “Scarlett! Scarlett!”. Esse tipo de fervor costuma ser reservado aos estádios, não aos salões. Em duas semanas, nesse mesmo espaço, o salão Hammerstein, haveria uma performance do Quebra-Nozes, mas, no momento, o alvo do afeto da multidão era Sasha “Scarlett” Hostyn. Quando a palavra “Victory!” surgiu no telão gigante atrás dela, a adolescente canadense arrancou os fones de ouvido da cabeça e saiu da cabine de vidro à prova de som no centro do palco, cumprimentando rapidamente a multidão antes de correr até dois comentaristas que estavam sentados ao lado. Ela se apoiou sobre a mesa dos dois, tremendo um pouco. Suas mãos cobriam sua boca, numa expressão de incredulidade. Ela tinha acabado de conseguir vencer, por pouco, Ji Sung “Bomber” Choi, um dos dez maiores jogadores de Starcraft II do mundo, e abocanhar o prêmio de 50 mil dólares do campeonato patrocinado pela Red Bull. Para quem tem o olhar treinado, a partida eletrizante que acabara de se encerrar foi como um balé brutal, mesmo se Tchaikovsky ficasse de cabelos em pé com a comparação.

O fã ao meu lado repetiu o que tinha tentado dizer alguns momentos antes. “Ela é a próxima esperança estrangeira”, disse. Scarlett, comemorando, se embrulhou com uma bandeira canadense sobre seu moleton verde.

Os campeonatos profissionais de Starcraft, um jogo de estratégia produzido pelo estúdio Blizzard há quinze anos, são completamente dominados por jogadores da Coreia do Sul. Nesse meio, os poucos jogadores de destaque que vêm de outro país são chamados de “estrangeiros”. Desde que, em 2013, quase derrotou Choi na final de um campeonato da liga regional e entrou no ranking dos 50 maiores jogadores do mundo, Scarlett vem sendo aclamada como a “esperança estrangeira”. Mas essa frase para ela carrega um significado adicional, já que ela é uma mulher transgênero lançada dentro de uma subcultura hipermachista, formada quase totalmente por garotos. Os entusiastas de Starcraft torcem para que uma jogadora consiga abalar o domínio sul-coreano, e cada vitória de Scarlett testa o quanto essa comunidade tão fechada está disposta a contestar seus próprios padrões.

A atitude com relação a homossexuais nos EUA mudou radicalmente nos últimos vinte anos, mas essa onda de empatia e aprovação está levando mais tempo para alcançar pessoas transgênero. Uma pesquisa feita em 2009 pela Gay, Lesbian And Straight Education Network (Rede de Educação Gay, Lésbica e Heterossexual) com 295 estudantes trans entre as idades de 13 e 20 anos descobriu um alto índice de vitimização. Noventa por cento deles ouvia com frequência comentários depreciativos por causa de sua expressão de gênero, 53 por cento deles já tinha sido empurrado, e 25 por cento já tinha sido agredido.

Atletas transgênero encaram uma marginalização ainda maior, já que atuam em esportes divididos por gênero. Em termos de estrutura corpórea, todos os seres humanos são essencialmente femininos nos primeiros meses de gestação, até que, com seis semanas, embriões com os genes masculinos desenvolvem testículos e as células responsáveis pela produção de testosterona. A disparidade atlética entre homens e mulheres aumenta durante a puberdade, quando a testosterona promove nos homens uma densidade óssea maior, massa muscular mais desenvolvida, e altura e pesos mais elevados.

Por causa de suas fisiologias distintas, atletas transgênero homem-para-mulher costumam receber críticas por terem vantagens injustas em embates contra oponentes do sexo feminino. Em março de 2013, quando a lutadora de MMA Fallon Fox revelou numa entrevista que havia nascido homem, ela se tornou o alvo de reclamações intensas e exigências para que fosse proibida de lutar contra oponentes que haviam nascido mulheres. Entre os comentários exaltados estiveram os comentários lotados de palavrões de Joe Rogan, comediante e comentarista de UFC, que defendia a desqualificação de Fox. O primeiro jogador transgênero da Liga de Basquete Universitário dos EUA, Kye Allums, caiu em depressão suicida depois de ter saído do armário em 2011, devido à invasão de sua vida provocada pela mídia.

Se a existência de atletas transgênero complica a questão de quem pode jogar com quem, seria de se supor que isso não seria um problema nos esportes eletrônicos, em que as vantagens físicas são muito menos importantes. Todo o frenesi do combate intergalático de Starcraft acontece por intermédio do mouse e do teclado, aproximando-o mais de, digamos, palavras cruzadas que lutas de MMA.

Quando, no entanto, Hostyn venceu  em 2011 e 2012 o campeonato Iron Lady, uma competição de Starcraft voltada apenas para mulheres, sua vitória gerou reclamações similares àquelas que Fox teve que enfrentar. Tanta repercussão levou Scarlett a se defender num blog de fãs, deixando claro que ela havia sido convidada a participar do evento por um organizador que estava ciente de sua situação.

“É verdade que eu sou transgênero [homem-para-mulher], e eu até espero uma reação como essa. Eu nunca tentei chamar a atenção para nada em mim que não fosse minha habilidade no jogo, e não considero então que esse deva ser um problema”, escreveu Scarlett. “A maior parte das meninas que eu conheço já sabiam, e não julgam nem se importam com isso. No que diz respeito ao jogo em si, não há (que eu saiba) qualquer vantagem ao se nascer homem ou mulher. Mas mesmo que houvesse, ser transgênero quer dizer que você nasceu com o cérebro do sexo oposto; ou seja, eu não teria qualquer vantagem ou desvantagem. Tudo que eu peço é que as pessoas tenham respeito e se refiram a mim como ‘ela’.”

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Ainda assim Scarlett tem que suportar comentários maldosos, mesmo quando joga contra homens no circuito profissional, e a anonimidade da internet permite que seus detratores encontrem facilmente lugares onde se expressar. Isso acontece com intensidade ainda maior no mundo dos esportes eletrônicos, onde mesmo os jogadores profissionais ocultam suas identidades reais atrás de apelidos de grafia curiosa, e em que o site Reddit funciona como o ponto de encontro para fofoca desse meio. Em sites que fazem streaming de partidas de Starcraft, como o Twitch, a configuração padrão joga os telespectadores automaticamente numa sala de bate-papo com outros desconhecidos.

Os entusiastas de Nova York anunciaram com todas as letras seu apoio a Scarlett durante o Red Bull Battle Grounds, mas assistir o campeonato online era uma experiência completamente diferente e desconcertante. Quase metade da transcrição do chat se atém à ação do jogo, enquanto o resto dos espectadores se mantém obcecada com a sexualidade, partes do corpo, e aparência de Scarlett. “a scarlett viajou para a tailandia pra cortar seu pipi fora”, afirmou um usuário com o nick Paoloone. “pau dela é grande?”, perguntou Sb_vintage. Alguns dos presentes expressava sua aceitação: “Eu aceito a escolha dela”, escreveu Wowcookiez. “Eu acho ótimo, assim como a maneira que ela joga. Quer saber, que se dane. Eu vou deixar os fãs descobrirem quando eles abraçarem ela/ele.”

A polêmica acabou ofuscando a ascensão espantosa de Scarlett ao olimpo dos jogadores de Starcraft, o que motivou uma bronca do famoso comentarista de jogos eletrônicos John “TotalBiscuit” Bain. Quando questionado sobre a atenção negativa que Scarlett recebe regularmente, ele só lamenta. “Não há dúvida de que Scarlett se tornou um alvo de transfobia e ódio aos trans. A ignorância alimenta a intolerância, e quando você adiciona a anonimidade da internet e a covardia típica de quem costuma ter esse tipo de atitude, você acaba formando um ambiente altamente venenoso. Ser um jogador profissional já é difícil. Você está sempre sendo criticado. Eu mal consigo imaginar a quantidade de gente que vigia uma jogadora transgênero, bem-sucedida e estrangeira. Qualquer errinho que ela faça vai ser usado como arma para atacá-la. Isso me deprime.”

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Starcraft é um jogo de estratégia e ficção científica – tente imaginar uma versão do xadrez com dúzias de alienígenas e humanos em trajes espaciais no lugar das poucas peças de madeira – desenvolvido pelo estúdio de games Blizzard, no sul da Califórnia, no meio dos anos 1990. Nessa mesma época, a infraestrutura  de internet supermoderna da Coreia do Sul estava sendo construída, e os coreanos tomaram gosto pelo jogo, já que conseguiam se digladiar em partidas de múltiplos jogadores com quase nenhum atraso na conexão.

Nos últimos quinze anos, Starcraft e sua bem-sucedida continuação (lançada em 2010) têm ocupado o trono do esporte nacional dessa pequena nação. Há canais a cabo que se dedicam a transmitir campeonatos, que acontecem em grandes arenas lotadas por torcedores aos berros. Nesse ambiente artodoante, os jogadores profissionais se enfrentam em duelos que são batalhas de reflexos – os melhores conseguem realizar 300 comandos por minuto nos teclados do computador – e táticas improvisadas no calor do momento.

Sendo a melhor jogadora da América do Norte, Scarlett ganhou por volta de 35 mil dólares em prêmios de campeonatos no último ano, menos de um terço do dinheiro arrecadado por um campeão coreano como Lee “Jaedong” Jae Dong. Jogadores como Jaedong e Choi são pequenas celebridades nacionais em Seul. Eles contam com patrocinadores, fã-clubes, e às vezes até tietes – consequências de se estar entre os melhores. A Força Aérea da Coreia do Sul montou um time profissional de Starcraft há alguns anos, para que os jogadores conseguissem manter suas habilidades no jogo afiadas durante o serviço militar obrigatório de dois anos.

Faz todo sentido, então, que os jogadores profissionais que vêm de fora da península coreana sejam chamados de “estrangeiros”, ainda mais quando se leva em conta que 19 dos 20 melhores jogadores de Starcraft do ano passado vêm da Coreia do Sul, segundo o ranking oficial da Blizzard. Depois de ter massacrado Scarlett no primeiro round do campeonato Red Bull Battle Grounds, Won “PartinG” Lee Sak, campeão mundial de 2012, encarnou um personagem que parecia uma versão nerd de um vilão de luta livre durante uma entrevista. Fez pouco caso da jogadora, dizendo que ela era “bonitinha”, e mandou avisar o público norte-americano que ele não sentia a menor ansiedade porque ele “nunca perde para estrangeiros”.

“Peraí, você já está gravando? Quanto tempo vai levar?” Apesar de sorrir com facilidade, Scarlett é uma entrevistada relutante. Durante o dia de imprensa da Red Bull Battle Grounds ela escapuliu de uma entrevista com o New York Times, e houve momentos durante nossa breve conversa em que eu tive a impressão que Scarlett estava prestes a sair correndo. Seu jeito meio bronco, meio desajeitado, não parece petulância, mas sim timidez extrema. Isso acontece com grande parte dos jogadores profissionais – as inúmeras horas gastas sozinho, treinando no computador, não costumam preparar uma pessoa para falar em público. Scarlett lembra que costumava ser ainda mais tímida. “Eu estou muito mais à vontade agora que há um ano e meio. Eu era muito, muito tímida naquela época”, ela conta. “Então, tipo assim, isso tudo foi bom para mim, eu passei a ficar mais segura de mim.”

Se as críticas constantes são parte da razão para sua desconfiança da mídia, ela não revela. Ela admite que lê sim muito do que se escreve a seu respeito – algo comum entre os jogadores profissionais de Starcraft – mesmo que muito disso seja “horrível”. “É, eu leio pra ver o que estão dizendo, mas não estou nem aí para o que dizem. Depois de um tempo lendo a mesma coisa todo dia, você acaba se acostumando”, ela constata. “Só te faz pensar que são todos um bando de idiotas.”

Scarlett não teve escolha em seu gênero e, pode soar estranho, também não fez uma escolha consciente por jogar Starcraft. Ela nunca teve como objetivo jogar videogames profissionalmente. Durante o início do ensino médio os games não passavam de um passatempo. Mas depois de entrar em alguns torneios online no começo de 2011 por pura diversão, ela descobriu que vencia muitas partidas com pouco esforço. A carreira profissional então surgiu naturalmente.

Seus pais falam mais de Starcraft que ela. Scarlett também não costuma falar disso com os amigos mais próximos. O ano de 2013 foi decisivo para a carreira de Scarlett nos jogos eletrônicos: ela ficou em segundo lugar depois de perder para Jaedong nas finais. Ela também alcançou a 21ª posição no ranking mundial do esporte. Apesar de tanto sucesso, ela pensa em abandonar o jogo, ou pelo menos fazer dele uma ocupação em meio-período. Ela está entediada, e muitas vezes seus pulsos doem devido a lesões por esforço repetitivo – um problema comum entre os programadores. “Sério, eu estou ficando cansada desse jogo”, ela confessa. “Jogar o tempo todo me cansa.”

E o que a jogadora, apelidada de “Rainha das Lâminas”, faria ao invés de comandar seus exércitos Zerg com seus cliques? Assim como a maior parte das pessoas em sua idade, ela não tem certeza. “Eu nunca soube muito bem o que eu quero fazer”, admite Hostyn. “Eu entrei nessa assim que eu saí do ensino médio, e tenho apenas 19 anos. Tipo, eu posso fazer qualquer coisa depois disso.”

Pode-se dizer sem muito medo de errar que Scarlett é a gamer transgênero mais famosa do mundo, mas ela não demonstra muito interesse em se tornar militante. Nem parece preocupada em cumprir a fantasia dos fãs norte-americanos de Starcraft de se tornar a “esperança estrangeira”. Ela prefere seguir o próprio compasso.

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