Traduzido do artigo de Katelyn Burns para o site The Establishment
Há algumas experiências que são compartilhadas por uma imensa gama de pessoas trans. Perder amigos por declarar-se trans ou por realizar a transição é uma constante, e alguns de nós perdem até as famílias por completo e seus empregos.
E também há as experiências que nós muitas vezes temos com aqueles que se descrevem como aliados trans. Apesar desse grupo de pessoas dizer que nos apoia, elas muitas vezes dizem coisas que são verdadeiras grosserias. Por exemplo, é comum fazerem perguntas sobre a situação cirúrgica de nossas partes íntimas ou entrar em discussões sobre como é razoável tratar a pessoa trans pelo gênero errado. Referências a nossos gêneros ou nomes “de verdade” também persistem. Essas afirmações são causadas por ignorância, e a maioria dos responsáveis por essas microagressões não estão sequer cientes de como essas perguntas e afirmações podem ser ofensivas.
No final de julho, uma amiga minha começou a hashtag #GoodCisPeople (#pessoasCisdoBem) no Twitter para expressar sua frustração com as coisas ofensivas que aqueles que se definem como aliados trans dizem para nós. Eu participei dessa hashtag logo no começo, listando várias das perguntas mais recorrentes que alguns de meus bons amigos cis já me fizeram até agora durante minha transição. A hashtag ganhou força, e logo parecia que todes is trans do Twitter entraram no jogo.
Já tarde da noite no domingo, #GoodCisPeople havia entrado nos trending topics. Quando eu acordei para ir ao banheiro à meia-noite, eu tinha 178 notificações do Twitter. Nossa hashtag havia se tornado viral. Eu fiquei com medo de olhar, e, como era de se esperar, havia muitas menções ao meu username vindas de conservadores de direita, neonazis, machinhos dos videogames e toda essa patota horrorosa. O que havia começado como um exercício em se contar histórias sobre as vivências das pessoas trans havia se transformado num ataque sem limites contra transexuais, em menos de 24 horas. Aquelas velhas acusações de sempre foram lançadas em massa mais uma vez, com tuítes afirmando que pessoas trans sofrem de transtornos mentais e que o gênero é definido pelos cromossomos, e pessoas afirmando que se “identificam como um helicóptero” e regurgitando que “nem todos os cis” são asism.
A resposta veloz e brutal para a hashtag #GoodCisPeople demonstra exatamente por que essa hashtag é necessária. As respostas das pessoas cis iam do levemente incomodado até o completamente enfurecido. Eu fiquei com a impressão de que muito poucas pessoas cis sequer se deram o trabalho de realmente ler as histórias sendo contadas pela hashtag, partindo direto para tentativas de nos fazer pensar que estamos louques, dizendo que sofremos de “cisfobia”. Reclamaram e ameaçaram deixar de serem aliades em resposta a alguns dos comentários mais mordazes.
A troca de farpas mais violenta veio quando eu eu apontei que qualquer cachorro na rua tem seu gênero mais respeitado que as pessoas trans. A comparação com cachorros é bastante adequada porque na imensa maioria das vezes as pessoas não conseguem distinguir o sexo dos cães a não ser que cheguem bem perto para examinar seus genitais. O que costuma acontecer é que as pessoas costumam supor que o cachorro é macho, uma clara consequência da misoginia da sociedade. O feminino é inferior ao masculino, então seria rude supor que um cachorro macho é fêmea, mais do que supor que uma cadela é macho. E, no entanto, quando se corrige a pessa que faz o comentário, a maioria das pessoas não confunde mais os pronomes que devem usar com esse bicho.
“Que cachorro lindo! Como ele se chama?”“Ela é menina.”“DESCULPA! Isso não vai acontecer de novo!” #GoodCisPeople
Um homem cis que afirmava “não ter nada contra pessoas LGBT” não entendeu meu tuíte, e explicou que as pessoas simplesmente utilizariam os pronomes corretos para o cachorro dali para frente.
@closettransgirl mas eu suporia que ela é macho, mas depois de dizer qual é o sexo eles simplesmente diriam ok ou nem sequer comentariam só usariam ela dali em diante
Quando eu pedi que as pessoas trans recebessem o mesmo respeito e dignidade com relação a nossos gêneros que são dadas aos cachorros, o homem resolveu generalizar a aparência de todas as pessoas trans para explicar por que os cachorros merecem serem tratados de maneira melhor.
Seria bom se todos fizessem o mesmo para pessoas trans, né?@closettransgirl Então, o problema é que, diferente dos cachorros, que em geral são todos meio iguais, as pessoas trans não parecem serem homens ou mulheres.
Mais tarde ele chegou a explicar que pessoas trans sofrem de transtornos mentais e que precisam de terapia, não de transições. Isso vindo de alguém que diz “não ter problemas com pessoas LGBT”.
Eu fiquei impressionada por como pessoas cis ficam ofendidas por receberem o rótulo de cis. Mais de uma vez, pessoas cis enfurecidas tuitaram que “não são ‘cis’, são apenas ‘normais’.” Cisgênero simplesmente quer dizer “o oposto de transgênero”, e “cis” vem do latim, e também é usado na química. É um termo inócuo que funciona como um diferenciador importante, e no entanto algumas pessoas cis simplesmente não conseguem lidar com esse rótulo. Eu já vi pessoas transfóbicas e feministas radicais que excluem pessoas trans argumentarem que “cis” é tão ofensivo como chamar uma pessoa trans de “traveco”.
Desculpe, mas eu simplesmente não vejo como isso é possível. Pessoas trans podem reclamar das pessoas cis, mas ninguém jamais foi perseguido ou discriminado por ser cisgênero.
Assim como a hashtag #ShitCisPeopleSay (#MerdasQuePessoasCisFalam) ou os comentários em qualquer artigo relacionado a pessoas trans, mais uma vez isso obrigou as pessoas trans a gastarem energia emocional na defesa de sua própria existência. É cansativo, além de desanimador, pensa que é demais pedir da sociedade a mais básica das considerações.
Nesse contexto, é especialmente importante que exista algo como #GoodCisPeople. Retornando ao verdadeiro propósito dessa hashtag, o que é que as pessoas cis podem fazer para realmente apoiar a comunidade trans? Bem…. muito.
.o0o.
É só fazer o melhor que puder com o básico: a crença de que nós somos do gênero que nós dizemos que somos. Só isso.
Nós não somos “na verdade” do gênero com aquilo que está entre nossas pernas. Nossos nomes de registro – os nomes que nos foram dados por nossos pais, e que nós muito intencionalmente mudamos – não são nossos nomes “de verdade”. Não é demais pedir que nossos gêneros sejam tratados com o mesmo respeito que os gêneros dos cachorros; tudo que estamos pedindo é que vocês nos tratem da mesma maneira que tratariam qualquer outra pessoa que compartilha de nosso gênero. Trate-nos no gênero que nós dizemos que somos, não no gênero que aparentamos ser. Eu compreendo a curiosidade, entendo mesmo, mas nós não somos um reality show. Nós não devemos quaisquer explicações, e não temos que alcançar qualquer padrão arbitrário de aparência ou comportamento para merecer seu respeito.
Também é crítico que você seja agressivo com seu apoio. Muitas vezes nós, pessoas trans, vemos os aliados ficarem parados quando algum tipo de abuso é cometido contra nós. Se você se deparar com uma pessoa trans sendo atacada, seja online ou pessoalmente, nos defenda da melhor maneira possível. Intrometa-se, e diga para o agressor que você acredita em nossos gêneros verdadeiros, e nos defenda. Não pense que essa briga não é sua só porque você não é muito informado quanto à vivência transgênero. Os valentões só dão importância à força, e há força nos números. Se muitas pessoas cis usarem seus privilégios para realmente lutarem ao lado das pessoas trans, os transfóbicos vão perder seu poder.
Por fim, leia, escute, assista nossas histórias. Contrate-nos para todos os empregos – nós somos capazes de realizá-los, e muito bem! Há tantes de nós erguendo suas vozes no momento. Não se limite a ler as memórias de mulheres trans brancas e famosas; leia sobre homens trans, ouça o que dizem as mulheres trans negras, veja pessoas não-binárias. Todas as pessoas trans têm um ponto de vista próprio sobre como o gênero atua em tantas partes da vida cotidiana. Prometo que você vai aprender algo conosco, se você parar para escutar.
#GoodCisPeople começou como uma maneira das pessoas trans compartilharem suas vivências em comum causadas por pessoas cis bem intencionadas, mas ignorantes, e transformou-se num exercício em abuso pelos intolerantes. As pessoas trans já são marginalizadas o suficiente sem serem o alvo de agressões online de gente horrorosa. Mas quando esse tipo de agressão acontece apesar de tudo, muitas vezes nós temos que combatê-lo sozinhes. Apesar de muitas vezes as pessoas trans não admitirem, seria bom ter bons aliados por perto.
A verdade é que as pessoas trans são uma pequena minoria, e muitas vezes necessitamos de auxílio. Nós estamos em busca das #pessoasCisDoBem.
