Laverne Cox e Carmen Carrera combatem transfobia velada

Em entrevista, as estrelas de “Orange Is The New Black“ e “RuPaul's Drag Race” põem apresentadora em seu devido lugar sem perder a elegância

por Marcio Caparica

Na segunda-feira passada a apresentadora norte-americana Katie Couric recebeu em seu programa Katie duas das figuras mais importantes do mundo trans no momento: a atriz Laverne Cox, conhecida por ter interpretado a personagem Sophia Burset no seriado Orange Is The New Black, e a modelo Carmen Carrera, que ganhou fama ao participar da terceira temporada do reality show RuPaul’s Drag Race. Poderia ter sido apenas mais um segmento de TV que faz circo da existência d@s trans, como tantos já foram feitos, mas acabou por se tornar uma mensagem contra a transfobia, graças à inteligência e assertividade das convidadas.

Katie é um programa de variedades diuno, no formato já consagrado aqui no Brasil por Sonia Abrão, Fátima Bernardes e etc. Convidada para falar de sua carreira e do abaix0-assinado de seus fãs para que ela fizesse parte do desfile da marca de lingerie Victoria’s Secret, não demorou muito para que Carmen se visse na saia-justa de ser indagada sobre detalhes íntimos de sua transição. Quando participou de RPDR, ela ainda se identificava como homem, mas desde então deu início ao processo de alinhar seu corpo a sua identidade sexual. A apresentadora Katie Couric quis saber sobre as cirurgias a que se submeteu Carmen, e se tinham sido doloridas (como se houvesse alguma cirurgia indolor). Carmen manteve a linha respondendo en passant sobre a plástica no nariz e as próteses nos seios, mas Couric queria mais:  “as suas partes íntimas estão… diferentes agora?”. Carrera cortou Couric na hora: “Isso é muito íntimo!”. E teve que lembrar o mundo de que as pessoas são mais que seus genitais, que ela tem carreira, vida pessoal, planos de formar família e projetos como todo mundo.

Laverne Cox foi a convidada do próximo bloco. Depois de alguns minutos comentando sobre sua participação no seriado da Netflix e como seu irmão gêmeo interpretou sua personagem nas cenas antes da transição, Cox também foi abordada sobre sua genitália pela entrevistadora – que tentou se justificar dizendo que o público cis tem curiosidade sobre esse aspecto dos trans, e que Carmen havia “fugido” da questão. A atriz então disse que sim, esse é um assunto íntimo, sim, é uma obsessão indevida, e cheia de elegância colocou Couric em seu lugar:

Essa preocupação com a cirurgia de mudança de sexo faz com que as pessoas trans sejam tratadas como objetos, e faz com que as pessoas não encarem a vida real que levamos. A verdade sobre as vidas de trans é que com muita frequência nós somos alvos de violência. Nós sofremos discriminação numa proporção muito maior que o resto da comunidade LGBT. Quando as pessoas focam em partes do corpo, elas passam a ignorar essa realidade de opressão e discriminação.

Cox evidenciou uma questão particular da vida dos trans: a de que por alguma razão considera-se que seus corpos são domínio público. Jornalistas não se sentem na liberdade de automaticamente perguntar para seus entrevistados cis se eles são circuncisados, aumentaram ou reduziram os peitos, se são depilados e aonde, se removeram o útero, fizeram vasectomia ou colocaram um piercing na genitália. Presumir que isso é assunto quando se trata de trans é mais uma discriminação tão comum que não se costuma ser considerada preconceito.

Essa hábito de se reduzir a vida e a experiência de ser trans às cirurgias cria uma cultura de que muitos tipos de comportamento que seria inaceitável aos cis são razoáveis quando aplicados aos trans. E assim se justificam atos de discriminação e violência absurdos:

  • Depois que veio a público que havia saído com uma transmulher, Romário foi rápido em negar o relacionamento, e a imprensa pródiga em disparar preconceitos contra a modelo Thalita Zampirolli, como reporta Neto Lucon: “Primeiro, o jornalista tratou do affair como se fosse o acasalamento da mulher macaca. Perguntas óbvias como ‘Rola beijo na boca?’ ou agressivas e insistentes como ‘Qual é o seu nome de batismo?’, ‘Mas você tinha um primeiro nome, não é?’, ‘Ninguém diz que você é transexual… Ou diz?’ foram despejadas em cima da modelo. Questões que certamente não teriam o menor cabimento se o jornalista não estivesse munido da ideia de que o relacionamento com uma trans fosse digno de piada”.
  • Na Austrália, em 2009, um homem foi apreendido pela polícia e, enquanto estava sob custódia, foi informado que sua namorada era trans. Tendo completado a transição a mais de 12 anos, ela havia revelado isso aos oficiais no passado quando havia sofrido ameaças. Quando voltou para casa, o homem passou a espancar a namorada com um cinzeiro a ponto de rasgar os lábios dela, e depois que ela estava desacordada a jogou pela sacada numa queda de dois andares. Os policiais que revelaram a informação sigilosa foram punidos apenas com serviços à comunidade.
  • Ano passado um transhomem na Escócia foi condenado por estupro e colocado na lista de criminosos sexuais do país por não haver contado para sua namorada sobre seu passado antes de se relacionar com ela. Todas as relações sexuais haviam sido consensuais.
  • Depois de apalpar as partes íntimas da garota que havia pegado numa danceteria, um universitário de Missoula, Montana, se sentiu no direito de espancá-la porque descobriu que ela havia nascido homem. Nos comentários da matéria, pode-se ver a opinião de muitos: a culpa por ter apanhado na verdade é da trans, que deveria ter avisado o rapaz, e portanto ela merecia a violência.

No Lado Bi das Trans, a modelo Carol Marra lamentou que os homens “se interessam por mim na hora da farra, mas apresentar para a mãe ninguém quer”. Situações como essa só vão parar quando todos entenderem que o que define o gênero das pessoas não são partes do corpo, e que o passado de alguém que passou por uma transição de gênero não deve ser motivo para vergonha. Somos todos igualmente humanos, construídos por todas as experiências que nos levaram ao dia de hoje. Todos merecem o mesmo respeito. Vai fazer uma pergunta impertinente? Pense se ela seria feita a alguém que não é trans.

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5 comentários

Valentina

Impressionante, como as pessoas nos “pré-conceituam” por sermos transexuais, e passamos a ser vistas não mais como pessoas e sim como objetos do fetiche sexual masculino, que não nos deixam em paz nem escolhendo cebolas num supermercado. Confesso, que já não tiro os óculos escuros, às vezes, chego em casa e demoro a me dar conta de que ainda não os tirei. Nunca pensei que olhares poderiam ser tão invasivos e intimidadores.

Diego

Perfeito comentário, mesmo sendo da comunidade , nunca havia parado pra pensar da forma com que você coloca a situação. Realmente essas perguntas íntimas deveriam ser irrelevantes para nos , se nossa sociedade fosse livre de preconceitos.

Valmir

Adorei!

As pessoas precisam aprender de alguma maneira o significado da palavra: RESPEITO. Isso vale pra tudo. E elas deram um show de elegância contra o desrespeito nas perguntas da apresentadora.

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