A tradição do casamento não passa de balela

Casamento, uma instituição imutável? Apenas para quem não conhece história. Ele já mudou e vai continuar mudando

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Sara Boboltz para o site Huffington Post

Conforme mais e mais países aprovam o casamento gay, os oponentes do casamento igualitário insistem em argumentar que a instituição do casamento é um monolito estático que seria destruído se passasse por uma redefinição. Há um furo gigante nessa lógica. Sim, o casamento existe como um dos elementos centrais da vida em praticamente todas as culturas de que se tem registro no globo. Mas sua definição já foi alterada. Várias vezes.

Antes dos sistemas legais e economias internacionais existirem, a nobreza e as classes dominantes se utilizavam do casamento para estabelecer laços diplomáticos e comerciais ao invés de tratados. “Estabelecia-se relações pacíficas, relações comerciais e obrigações mútuas entre as partes unindo-as em matrimônio”, escreve Stephanie Coontz, autora de Marriage: A History (“Casamento, uma história”). Até recentemente – na escala maior das coisas, pelo menos – o casamento era praticamente definido por essas parcerias de benefício mútuo, até que a sociedade começou a questionar isso.

Você, que insiste que o casamento gay vai conspurcar o legado histórico e imutável do matrimônio “tradicional”: continue lendo e descubra algumas outras maneiras em que o casamento já foi revisado ao longo dos séculos.

Grécia Antiga: o casamento serve para fazer filhos

Assim como na maior parte dos governos da Antiguidade, Atenas não definia legalmente o casamento para seus cidadãos. Multiplicar a prole era basicamente a única razão por que as pessoas se uniam – como afirmou um homem, “nós mantemos hetaerae (cortesãs) para o prazer, concumbinas para o cuidado diário de nosso corpo, e esposas para gerar filhos legítimos e manutenção do lar” – já que o Estado controlava a movimentação das riquezas por meio das heranças. Manter a propriedade dentro da família era tão importante, escreveu Coontz, que podia-se obrigar uma garota a se casar com o parente homem mais próximo caso seu pai morresse sem deixar filhos homens. Mesmo que para isso ela tivesse que se divorciar do marido atual.

O casamento não era sequer considerado a união ideal, pelo menos de acordo com os membros da elite da sociedade. Essa honra cabia à – presta atenção – parceria homossexual, já que não se esperava que homens e mulheres casados dessem apoio emocional um ao outro.

Povos indígenas: a vida é dura demais, então case-se com quem você tiver que se casar

Em algumas culturas homens desposavam várias mulheres para que elas pudessem ajudar-se umas às outras em todo o trabalho necessário para se sustentar a família. No Botsuana as mulheres tinham um ditado: “sem coesposas, o trabalho de uma mulher nunca termina”, cita Coontz. Nos ambientes hostis da Austrália, os aborígenes combinavam os casamentos dos filhos baseando-se na estratégia de acesso às terras, de maneira que o clã tivesse comida e água para onde quer que viajasse.

Algumas tribos indígenas tinham alto respeito por indivíduos de “dois espíritos”, ou seja, aqueles eram capazes de realizar trabalhos de homens e de mulheres. Pessoas de dois espíritos podiam casar-se com alguém do mesmo sexo, já que todas as tarefas intrínsecas a se manter o lar poderiam ser realizadas com facilidade. O casamento era mais uma questão de divisão de trabalho que de divisão de gênero.

China Antiga: por que restringir o casamento aos vivos?

Filósofos confucianos argumentavam que os laços familiares mais fortes aconteciam entre pais e filhos, ou entre irmãos,  explica Coontz. Os laços matrimoniais ficavam bem atrás dos familiares, tanto que um filho poderia ser espancado por não tomar o partido do pai, mas sim o da esposa (que, aliás, tinha que se mudar para junto da família do marido).

Uma das tradições matrimoniais mais estranha já criada por uma sociedade é, sem dúvida, a prática dos “casamentos fantasmas” na China. Para evitar que solteiros já falecidos passassem a eternidade sozinhos, membros de sua família os celebravam seu casamento – com outro morto. Os dois eram unidos por um ritual ao lado do túmulo, e as novas famílias passavam a manter contato depois disso. Apesar de estarem proibidos na China de hoje, casamentos fantasma ainda acontecem.

Egito Antigo: casamento para conseguir uma pureza de sangue a toda prova

Os governantes do império fragmentado de Alexandre, o Grande, usavam o matrimônio como ferramenta política, lembra Coontz, tomando mais de uma esposa para garantir alianças com outros reis. Diferentemente das coesposas do Botsuana, as coesposas helênicas costumavam odiar-se mutuamente, já que cada uma via a outra como uma ameaça a sua ascensão ao poder. Os filhos tramavam com suas mães contra suas madrastas. Irmãos tramavam contra irmãos. A fim de gerar herdeiros legítimos sem qualquer sombra de dúvida, algumas vezes se irmãos e irmãs se casavam.

Como não tinham muita riqueza em jogo, os membros das classes inferiores desfrutavam de um pouco mais de liberdade na hora de escolher um parceiro. Mas os casamentos ainda eram vistos em maior parte como contratos de negócios, já que viver solteiro era praticamente impossível devido a todo o trabalho que cultivar os campos e manter a casa exige. Os escravos eram proibidos de se casar, já que não podiam formar lares.

Roma Antiga: vamos usar nossas esposas como moeda política

O objetivo final do casamento romano, assim como em tantas outras culturas, era geral filhos legítimos. Os homens eram vistos mais como gerentes das famílias romanas do que membros delas, considera Coontz. O estado só exigia que seus patrícios pedissem permissão para se casarem com estrangeiros – tirando isso, não estava preocupado em quem se casava com quem. Políticos chegavam até a dar suas esposas em casamento para outros governantes para forjar alianças – Marcus Porcius Cato fez exatamente isso quando se divorciou de sua esposa Marcia e arranjou que ela se casasse com seu amigo Hortensius. Imagina como Marcia se sentiu.

Primeiros cristãos: o sexo dentro do matrimônio é um mal necessário

“Muitos dos primeiros cristãos”, escreveu Coontz, “acreditavam que o casamento minava o rigoroso autocontrole necessário para que se alcançasse a salvação espiritual.” O celibato era preferível ao casamento, mas o sexo era tolerado com o propósito da procriação – desde que você não se casasse com seu primo, seu primo de segundo grau, madrasta, enteada, viúva do seu tio ou irmão, ou qualquer pessoa a menos de sete graus de separação de você. (Boa sorte para tirar isso a limpo.)

Europa Medieval: a vida ainda é difícil, e casamento faz sentido comercial

Para os ricos, mais uma vez o casamento era um acordo político entre duas famílias que desejavam solidificar seus laços e unir seus bens. Rainhas combinavam casamentos para seus irmãos, parentes e damas de companhia a fim de criar para si redes internacionais de apoio. Nos séculos 12 e 13 as pessoas acreditavam que “o amor não deve exercer seus poderes entre duas pessoas que estão casadas entre si”, como escreveu a condessa de Champagne. Relações adúlteras, por outro lado, eram o ápice do romance.

Para a igreja Católica o casamento consistia em nada mais que um homem, uma mulher, consentimento mútuo, consumação e – muito importante – aprovação dos pais. Os pais tinham tanto controle sobre as negociações de matrimônio que, em 1413, dois pais em Derbyshire assinaram uma certidão de casamento em que o nome da noiva foi deixado em branco, pois um dos pais ainda não havia decido qual das duas filhas daria em casamento.

Os plebeus usavam o casamento como maneira de agregar terrenos, que eram distribuídos em lotes aleatórios. Idealmente você teria vários lotes próximos entre si, para então acalentar as esperanças de que sua filha se casaria com o filho do vizinho. Comerciantes e artesãos nos mesmos ramos de negócio muitas vezes se casavam para compartilhar as mercadorias.

Século 16: o matrimônio agora é um sacramento

Em 1563 a igreja Católica decretou que o casamento era um ritual sagrado a ser realizado dentro de uma igreja. Considerou-se fazer isso alguns séculos antes, lembra Coontz, mas isso invalidaria um número muito grande de casamentos, porque ninguém se casava na igreja.

Enquanto isso, os protestantes afirmaram o direito dos sacerdotes de se casarem, enquanto alertavam para que não se amasse muito o cônjuge. Muitas pessoas ainda achavam esquisitíssimo o conceito de afeto dentro do casamento – um dos colonizadores na Virgínia escreveu que uma amiga sentia “mais afeição por seu marido que talvez permita a presente boa educação”. Em toda a história da Europa pré-industrial, no entanto, o casamento “é melhor descrito como um repertório de sistemas adaptáveis do que como um padrão”,  explica o historiador E. A. Wrigley.

Iluminismo: o amor dentro do casamento até que também é importante

Os pensadores de salão começaram a ruminar sobre o casamento e decidiram que parceiros apáticos eram uma coisa lamentável. Dois pombinhos deveriam ter a liberdade de escolher com quem se uniriam, consideraram, ao invés dos pais tomarem as decisões matrimoniais por eles, elevando então a importância do companheirismo e da cooperação. O casamento começou a se tornar essa espécie de parceria privada que nós hoje reconhecemos.

Os críticos, claro, bradaram que esse tipo de igualdade entre os parceiros era a destruição do casamento e a derrocada da civilização, pois enfraquecia a autoridade masculina que mantinha os lares unidos. Mulheres, essas tolas!

Era Vitoriana: esposas boas pertencem ao “culto da pureza”

Quando a rainha Vitória chegou ao altar em seu vestido de renda branco e virginal, ela contribuiu para que a mulher deixasse de ser vista como o sexo mais “devasso” e passasse a ser considerado o gênero mais inocente e assexuado. O casamento ideal acontecia entre um homem e uma mulher das morais mais firmes. Quando o sexo em si começou a ser considerado algo indecente demais para as damas de bem, que aprendiam a reprimir seus desejos lascivos a todo custo, os homens decidiram que era menos estressante simplesmente se deitarem com prostitutas.

Começo do século 20: pessoas casadas deveriam transar bem

Os jovens, em seu desejo de se revoltar contra seus pais vitorianos e rígidos, passaram a exibir sua juventude e sua beleza. Um casal ideal da virada do século, então, além de se casar por amor, deveria também ter uma vida sexual satisfatória. No final dos anos 1920, aponta Coontz, a intimidade entre duas pessoas casadas passou a ser mais importante que os laços que tinham com seus pais. Na mesma época críticos publicavam colunas em jornais sob o título “O casamento está falido?”, e previam que o foco cada vez maior no sexo levaria ao fim da instituição em menos de 50 anos.

Década de 1950: a família de margarina é a melhor família

Os anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial presenciaram uma “febre de casamentos” nos Estados Unidos que resultou na obsessão pela família como núcleo da sociedade vista logo depois do conflito. Os casamentos consistiam, em geral, de um homem responsável pelo sustento, uma esposa dona-de-casa, e alguns filhos. Essas uniões estavam durando mais, em média, do que em qualquer outro período da história. Mas ainda havia leis que proibiam brancos de se casarem com negros, mongóis, hindus, indianos, japoneses, chineses ou filipinos. Quem sofria de tuberculose e pessoas com problemas mentais, no entanto, ganharam permissão legal para se casarem nos Estados Unidos depois de 1950.

Fim do século 20: o casamento é um direito humano

Grupos feministas lutaram para que se aliviasse a pressão sobre as mulheres para que encontrassem logo um homem e subissem no altar, o que ajudou a fortalecer a ideia de que o casamento é uma parceria entre iguais. O estupro dentro do casamento se tornou ilegal. Leis em estados dos EUA que proibiam alguns tipos de casamento começaram a ir por terra – a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou em 1967 que proibições de casamentos interraciais eram inconstitucionais, e o casamento para detentos foi legalizado por lá em 1987. A ideia do casamento perfeito se tornou, cada vez mais, uma empresa multimilionária.

Em 2001, a Holanda se tornou a primeira entre um número crescente de nações a garantir aos casais homoafetivos o direito de se casarem.

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3 comentários

Gustavo Souza

Casamento só se for pra sair do aluguel… (Maria de Fátima feelings!). Mas na boa, o modelo hetero e monogâmico que prevalece na nossa cultura (também importado por gays e lésbicas em suas relações) é um troço no mínimo estranho. Imagina só você conhecer uma pessoa e ter que morar e transar apenas com ela por um tempo indeterminado? Não precisa ser mãe Diná pra perceber que isso não vai dar certo. Os próprios héteros confirmam: a internet está povoada de homens casados em busca de outros caras; as travestis que se prostituem têm como clientela majoritária homens casados (ou com noivas, namoradas) e ainda tem os caras – também casados – que saem com outras mulheres ou mantêm uma amante. Enfim, esse modelo é problemático. Mas, como aponta o texto, casamento não é imutável e quem sabe no futuro tenhamos outras configurações. Minha esperança é que os gays consigam construir um modo próprio de conceber as suas relações afetivas. Já estabelecemos esse jeito próprio com o sexo (gays e heteros lidam com ele de forma bem diferente, eu acho), agora falta o casamento.

Rafael Costa

Ainda hoje tenho a impressão de que o casamento é um negócio muito rentável kkkk. Tenho só 27 anos e não sei se pretendo me casar, sinto que estaria entrando num sistema milionário com um mil interesses, porém , quero ter a opção de escolher. Sou um canceriano tonto e romântico mesmo kkkkkk

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