Pergunte a qualquer amigue quem é seu poeta LGBT favorito, e a resposta certamente será um grande ponto de interrogação. Peça para qualquer gay lembrar de um verso homoafetivo que o comove, e o resultado há de ser reticências. Isso porque, numa cultura como a brasileira, que já dá pouco valor à poesia, a influência de escritores gays, lésbicas, bissexuais e trans foi sistematicamente apagada da literatura. Hoje, numa época que qualquer versinho vira meme assinado por Clarice Lispector, não temos um mísero poema gay que viralize e ocupe a ponta das línguas dos leitores brasileiros. Mas, como heroínas de um poema épico, as pesquisadoras Amanda Machado e Marina Moura estão batalhando para mudar esse cenário. Elas organizaram o livro Poesia Gay Brasileira, com previsão para ser lançado em dezembro, no qual resgatam autores e poemas escritos por – e sobre – LGBTs.
“Acreditamos que já era hora de um livro destes ser organizado no Brasil,” explicam as organizadoras em release. “Outros países já fizeram. É uma dívida literária. Compilamos poemas, desde o século 19, reunindo uma produção que estava dispersa e desconhecida ou nunca havia sido agrupada com este recorte da temática homossexual”. O projeto está sendo alavancado por uma campanha de financiamento coletivo. Em entrevista por e-mail, Machado e Moura explicam por que a presença LGBT na poesia brasileira foi praticamente ignorada até agora, por que as mulheres têm menos espaço na literatura e o que leitores de todas as orientações sexuais podem ganhar ao lerem uma antologia de poesia LGBT.
LADO BI É verdade que os estudiosos de literatura no Brasil tendem a ignorar – ou até apagar – a homossexualidade de romancistas e poetas de nosso país? Qual seria o principal exemplo dessa tendência?
POESIA GAY A homossexualidade foi um aspecto amplamente ignorado e apagado tanto das obras quanto dos autores brasileiros. Durante muito tempo, os estudiosos não reconheceram a presença dela nem de personagens gays em nossa Literatura.
Mas ela esteve presente por meio de poetas que fizeram questão de tratar a homossexualidade em suas obras e utilizar a poesia como meio de transportar a causa e narrar experiências de suas vidas.
Felizmente isso está mudando por iniciativa de grupos que se debruçam sobre o tema, como a Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (Abeh), e fazem o reconhecimento de obras e autores que falaram do gay no país e no mundo. Também há o mérito de estudantes que produziram teses sobre o tema dentro de universidades, de maneira mais “solitária”. Acreditamos que todos que se dedicam a estes estudos são, de fato, corajosos. Especialmente porque já ouvimos falar de boicotes ao tema em universidades do Brasil…
A tendência de ignorar e apagar a homossexualidade dos escritores existe. Um dos casos mais famosos é Mário de Andrade, que teve uma parte de sua correspondência com Manuel Bandeira omitida por falar sobre isso. Somente agora, depois de tantos anos de sua morte, que a Casa Rui Barbosa liberou acesso a essa parte da correspondência.
Em suma, os estudiosos podem ignorar, mas não apagam essas obras. O que pode acontecer é não darem relevo. Deixam o fato do tema da obra ser a homossexualidade, ou de seu autor ser homossexual, em segundo plano. O complicado é quando você tem uma obra evidentemente gay e o pessoal tenta disfarçar, não é? Aí fica claro que é boicote.
Mas estamos avançando. E que tudo isso possa ser matéria de registro e estudo, sim. O gay não pode ficar na marginalidade nem na clandestinidade.
Quais foram as descobertas mais surpreendentes que vocês fizeram em sua pesquisa sobre a poesia LGBT do Brasil?
O mais surpreendente foi perceber que um sem fim de autores, gays ou não, (re)trataram a homossexualidade em suas obras desde sempre, desde que livros começaram a ser impressos no país. E das mais diversas formas. Temos um escritor-monge em nossa antologia, o Junqueira Freire, que em 1850 dedicou um poema belíssimo a um moço loiro. Chama-se “A um moçoilo”. Mais recentemente ficamos sabendo por meio de Renata Pallottini, escritora lésbica que tem 86 anos, também presente na antologia, de um poema lésbico escrito nas ruínas do que antes era um convento. Quer mais do que isso? A dualidade da culpa e do desejo. A religião, o amor irreprimível.
Além disso, nos surpreendemos ao notar que, ao fim da pesquisa, todos os dados indicavam que os autores que trataram da homossexualidade na poesia brasileira eram na maioria homens. Continuamos pesquisando porque sabíamos que as mulheres lésbicas viviam experiências e as narravam via poema. Porém as encontramos em número menor. Acreditamos que isso seja devido a um espaço editorial reduzido para mulheres que falam sobre a homossexualidade – para mulheres escritoras em geral, infelizmente. Situação que está se revertendo. Mas elas existem, só não são encontradas com facilidade se comparado aos homens.
Como a evolução da compreensão da sexualidade e sua aceitação na sociedade se refletem na poesia, ao longo das décadas?
A compreensão e aceitação da sexualidade ainda andam a passos lentos se você pensar que todos os dias gays ainda morrem, vítimas da homofobia. A poesia, com potencial que tem de refletir o tempo em que cada autor e obra estão situados, pode entregar alguns detalhes, contextos históricos e repercussão.
A maior diferença desta década com relação às anteriores é que hoje se escreve mais sobre homossexualidade, se fala mais, e as editoras têm percebido que há publico consumidor, por isso também abrem espaço para o tema.
Ao contrário do que se pode pensar, não notamos que “a poesia de hoje” seja mais transgressora, por exemplo, do que a do passado. A entrada da mulher nessa possibilidade de transgredir, isso sim é fato mais recente.
Em termos de liberdade de escrita frente a conteúdos mais explícitos, temos autores que tocaram nestes pontos tabus no século 19, e hoje a retratação do tema vai de cada um. Com relação à aceitação, ah, isso é mais complicado. Cada época tem seus valores, seus critérios de escolha. Infelizmente não notamos uma época em que pelo menos algum dos personagens não fosse questionado ou reprimido por sua sexualidade.
Quem são os principais talentos contemporâneos da poesia brasileira?
Consideramos relevantíssimo e importantíssimo, assim, no superlativo, o trabalho de todos autores contemporâneos que selecionamos para a antologia – se não acreditássemos, não estariam lá. São eles: Alessandra Safra, Amador Ribeiro Neto, Angélica Freitas, Antônio Cícero, Aymmar Rodriguéz, Beatriz Regina Guimarães Barboza, Elierson Moura, Glauco Mattoso, Glória Horta, Reis Barcelos, Horácio Costa, Ítalo Moriconi, Lisa Alves, Luís França, Neil de Castro, Nívea Sabino, Paula Taitelbaum, Paulo Augusto, Paulo Azevedo Chaves, Renata Pallottini, Rosane Castro, Rui Mascarenhas, Sergio Godoy, Simone Teodoro, Vange Leonel e Waldo Motta.
Como as pessoas em geral, e LGBTs em particular, podem se beneficiar com a leitura de poesia?
A poesia faz parte do campo da literatura e da arte. Ela é matéria sensível, extrato de mundo, apuração de visões, de impressões, do belo, do horrendo. Uma forma de expressão que “contamina” o leitor e tem potencial de transformá-lo.
As pessoas em geral se beneficiam da poesia homo porque, ao conhecerem mais as realidades e nuances de relações diferentes das suas, podem sentir mais empatia por outras formas de afeto. Por meio da poesia o leitor em geral perceberá sentimentos, relações e vivências que não são diferentes de suas próprias, o que pode contribuir para a diminuição do preconceito.
Já o público LGBT se beneficia ao ver questões que fazem parte de seu universo, em nuances e detalhes, retratadas poeticamente. Além de conhecer de forma ampla e panorâmica poetas brasileiros que falaram sobre a homossexualidade em suas obras. Nosso livro com certeza será uma boa referência para aqueles que têm interesse em conhecer mais sobre o mundo homossexual e para aqueles que querem conhecer mais da poesia brasileira. Por isso ele não se restringe ao público LGBT. A ideia é que agrade a todos, especialmente quem ama a boa literatura.
É ótimo nos ver representados na história, ainda mais pela poesia que é tão profunda e transformadora.