Traduzido do artigo de Jen Richards publicado no site NewNowNext
Meu coração batia um pouco mais veloz enquanto eu percorria o corredor do hotel. Eu já tinha feito isso várias vezes, mas a voz de Mark transpirou uma nova energia nervosa, diferente do que eu estava acostumada. Ela estava cortando com tensão.
Geralmente eu sou a primeira mulher trans com quem um cara se envolve. Eu sou branca, pareço uma mulher cis, sou tranquila, confiante, e completamente passiva – na maior parte do tempo, eu não passo de uma garota gostosa com quem eles fazem sexo anal. Eu aprendi a gostar dos marinheiros de primeira viagem. Tornou-se minha especialidade. Eu curto sua ansiedade inocente, o alívio que recai sobre eles quando eles me veem e percebem que eu sou ainda mais bonita do que esperavam. Eu sei como deixá-los tranquilos, deixá-los excitados, faço questão de que nós dois fiquemos satisfeitos, e inevitavelmente eles ficam querendo mais. Eu me orgulho de ser meio que uma embaixadora do sexo trans.
Mas, para mim, isso vai muito além do sexo.
O que eu realmente busco é afirmar que sou mulher, e essa é a maneira mais fácil de fazê-lo. Não há criatura mais ansiosa com relação à própria sexualidade que o homem hétero cis, ninguém com mais medo de ser chamado de “gay”. Isso se aplica principalmente para os novatos. Sair com um deles é como lidar com um explosivo altamente volátil – e eu gosto desse risco. Eu preciso desse tipo de intensidade. É a única coisa que mantém distante o ruído da dúvida e da aversão a mim mesma. O desejo que eles sentem por mim é a prova de que necessito sobre quem eu sou.
Não consigo descobrir ao certo o que há de diferente com Mark, no entanto. Minha intuição me diz que eu não deveria visitá-lo, mas a essa altura da minha vida eu não conheço outra maneira de acalmar meus demônios interiores. Ele abre a porta e minha dúvidas imediatamente são eclipsadas pelo desejo: ele é alto, musculoso, incrivelmente bonito. A escuridão que escutei em sua voz agora se torna, a meu ver, um descontentamento sensual. Eu embarco no meu ato: a gente conversa, começa a se pegar, vai para a cama e começa a tirar a roupa. Ele está distante, mas eu ignoro, beijando seu peitoral liso e abrindo seu cinto. De repente ele agarra meus braços com suas mãos fortes e me empurra para longe, senta-se no lado da cama segurando a cabeça com as mãos. Eu pergunto se está tudo bem. Ele começa a ofegar.
Eu conheço bem esse som. É algo animal: a maneira como os homens respiram quando estão prestes a explordir num ato de violência. Eu pulo da cama e pego minhas roupas e minha bolsa – segurando-as contra meu corpo nu com uma mão, enquanto a outra busca a maçaneta da porta. A adrenalina invade meu corpo e o tempo para. Estou tentando escutar outros sons ao redor, rezando para que haja outros hóspedes por perto que escutariam meus gritos, porque eu sei que não conseguirei fugir se necessário. Eu já consigo vê-lo me agarrando, me jogando na cama e abafando meus gritos com um travesseiro. Essa pode ser a maneira como eu vou morrer.
E eu sei qual será a história que vai ser contada caso meu corpo sem vida seja encontrado mais tarde, caso Mark seja preso. Ele dirá que eu não contei que sou trans. Que eu bati na porta de seu quarto de hotel e foi apenas quando estávamos na cama que ele descobriu que eu “na verdade era homem”. Que ele entrou em pânico e, quando deu por si, eu não estava mais respirando. Se o caso for a julgamento, seus advogados vão usar a defesa do “pânico trans”, algo aceito em 49 dos 50 estados dos Estados Unidos. A única pessoa capaz de contradizê-lo obviamente não terá como: eu. Eu me tornarei mais um comprovante de uma narrativa que insiste em permear nossa sociedade: a do homem que se veste de mulher para enganar um homem. Nossa sociedade decidiu que esse tipo de trapaça justifica um assassinato. Ele pode até ir para a cadeia por homicídio culposo – quem sabe – mas, sem dúvida, vão se compadecer dele. Que horror você pensar que está com uma mulher e descobrir que está pegando um homem. (O subtexto silencioso aqui é que “a bichona mereceu”.)
Ninguém jamais vai saber que foi Mark quem me buscou em um fórum dedicado a homens que procuram mulheres trans. Que ele é um dos muitos homens heterossexuais que assistem pornografia trans, contratam acompanhantes trans, vasculham sites de anúncios à busca de encontros “discretos”, visitam clubes conhecidos por serem frequentados por mulheres trans, ou frequentam as ruas (presentes em todas as cidades) conhecidas por abrigarem profissionais trans do sexo. NInguém jamais vai saber que eu não engano homens, porque eu não preciso.
Naquela noite eu consegui escapar ilesa, mas muitas mulheres como eu não têm a mesma sorte.
Mulheres como Mercedes Williamson, uma garota trans de 17 anos que vivia no Alabama, nos EUA. Quando seu corpo foi encontrado em outro estado, no Mississippi, ela havia sido espancada até a morte a golpes de martelo, e Joshua Vallum foi conectado ao crime. Em um primeiro momento ele contou à polícia que só descobriu que Williamson era transgênero quando colocou a mão dentro das calças dela, e que ficou fora de si e não se lembrava de tê-la matado. Mais tarde descobriu-se que os dois namoravam. Depois que seu relacionamento terminou, quando um amigo de Vallum descobriu que Williamson era trans, ele a matou. Vallum fazia parte dos Latin Kings (“Reis Latinos”), grupo que proíbe atos homossexuais, e ele ficou com medo de que a notícia se espalharia.
Essa história é particularmente trágica porque depende da crença de que, quando um homem faz sexo com uma mulher trans, ele está agindo de forma homossexual.
Ao que tudo indica, Vallum não é gay. Esse fato é a base de toda sua defesa, e é corroborada por testemunhos de outras pessoas, principalmente de sua mãe. Não há qualquer indício de que Vallum tenha se envolvido com homens, e há vários indícios de que ele já havia se relacionado com mulheres. O relacionamento entre Vallum e Williamson só é homossexual se você considerar que mulheres trans são homens.
No dia 15 de maio de 2017 Vallum tornou-se a primeira pessoa a ser condenada por um crime de ódio nos Estados Unidos por matar uma pessoa transgênero, e foi condenado a 49 anos de prisão. Eu confesso que fico triste por ele. Não há perdão para suas ações, mas ele vivia cercado por pessoas que julgavam inconcebível que um homem heterossexual pudesse se envolver por vontade própria com uma mulher trans. O tal amigo, outro membro dos Latin Kings, que denunciou Williamson, foi quem criou a situação. A mãe de Mercedes Williamson também parece culpar a própria filha por sua morte, e só se refere a ela com pronomes masculinos. Essa mãe trata Williamson como um homossexual vivendo em pecado, deixando implícito que ela merecia o que aconteceu. Vallum, no entanto, consistentemente se refere à garota no feminino e expressa um remorso profundo por suas ações.
Vallum não é gay e sentiu que precisava matar sua namorada para comprová-lo, mas apenas porque outras pessoas se recusam a acreditar que mulheres trans são mulheres.
É comum acusarem pessoas trans de serem sensíveis demais, de estarmos buscando razões para nos sentirmos ofendidos. Foi essa a resposta que obtive quando tirei sarro de Bryce, um dos competidores da próxima temporada do reality show The Bachelorette. Em sua entrevista de apresentação, Bryce afirmou que seu maior medo é estar num encontro e descobrir que “a mina na verdade é um mano”. Eu respondi: “Querido Bryce, em prol das mulheres trans eu posso garantir para você: nenhuma de nós quer sair com um vilãozinho de filme adolescente dos anos 1980 sem sal como você. Bj.”.
Dear Bryce, on behalf of trans women I can assure you: none of us want to date your bland preppy 1980's teen movie villain rhombus ass. xo https://t.co/VbcN4bya4s
— Jen Richards (@SmartAssJen) May 19, 2017
Eu fiquei mais ofendida pelos comentários de Bryce do que fico quando um supremacisa branco apoiador de Donald Trump me chama de traidora da raça. Temos que considerar a fonte do comentário, afinal de contas, e o que não falta hoje em dia são alvos para minha revolta. Acontece que eu já fui a garota no pesadelo fictício de Bryce. Na verdade eu criei toda uma série online, Her Story, apenas para contar o lado trans desse tipo de história.
Muito mais do que qualquer ofensa pessoal, o que me preocupa é como esse tipo de “piadinha inocente” feita por tipos como Bryce contribui para uma narrativa perigosa. Comentários como esse são atalhos para as dinâmicas que levam ao assassinato de mulheres trans como Mercedes Williamson. Bryce tem a certeza de que seu público vai rir dessa tirada, de que vai soar como um garotão charmoso. A emissora aparentemente concordava quando compartilhou o comentário (apesar de já tê-lo removido da página de elenco do programa). Imagina qual seria a reação se ele afirmasse que seu maior medo era descobrir durante um encontro que a garota é judia? Será que a emissora teria aprovado essa observação?
Os preconceitos raramente são colocados em prática da maneira clara. Dizemos que não somos racistas porque não estamos queimando cruzes em frente de casas, que não somos homofóbicos porque temos um amigo gay. Não querer sair com uma mulher porque ela tem um pênis não é ser transfóbico, dizemos; é só uma questão de preferência. Mas cada vez que fazemos uma piada sobre uma mina “que na verdade era mano”, ou rimos desse tipo de piada, cada vez que aplaudimos a performance de um homem cis interpretando o papel de uma mulher trans, cada vez que ridicularizamos um homem famoso quando é pego com uma profissional do sexo transgênero, estamos contribuindo para a ideia de que mulheres trans na verdade são homens, e que portanto é pelo menos um pouquinho gay quando um homem faz isso.
Todos os caras com quem eu me envolvo são heterossexuais. Eles não são gays no armário, e em sua grande maioria não são bissexuais. Eles não têm interesse em homens, e nunca se interessaram. Eles sentem desejo por mulheres, e algumas demas mulheres calham de serem trans. Assim que comecei a realizar minha transição de gênero os homens gays perderam completamente o interesse por mim (triste, mas é verdade). Eu sei disso, os homens com quem me envolvo sabem disso, e inúmeras outras mulheres trans e seus parceiros sabem disso também.
Mas não importa o que dizem as pessoas que realmente vivem esses relacionamentos, o público acredita em outra coisa.
Eu anseio pelo dia em que um homem famoso, masculino e heterossexual se apaixonar por uma mulher trans e a beije em público – um homem que seja tão forte que, ao ser acusado de ser gay, simplesmente responda “para mim ela é uma mulher, e eu a amo”. Será necessário apenas uma, e então as outras celebridades vão seguir pelo mesmo caminho. Mais cedo ou mais tarde essa atitude de descaso vai chegar até a subcelebridades de terceiro escalão como Bryce, e quem sabe até a gangues de rua hipermasculinas como os Latin Kings. Esse tipo de transformação não vai acabar com todo tipo de violência contra mulheres trans, é claro, porque todos os tipos de mulheres sofrem nas mãos daqueles que detêm mais poder. Mas vai ajudar, e a violência não será um ato de performance heterossexual realizado para aliviar a ansiedade de outrem.
Minhas esperanças são modestas: eu espero que homens como Mark sejam capazes de dizer, “eu sei que eu estava afim, mas não tenho certeza de que estou pronto ainda.” Eu espero que homens com Bryce não vão mais ter medo de descobrir que a mulher com quem estão saindo é trans, ou que se tiverem esse medo, que uma emissora de TV não considere mais esse tipo de afirmação como algo inócuo. Eu espero que homens heterossexual como Joshua Vallum possa se envolver com mulheres trans sem o medo de serem ridicularizados, ou sem que isso acabe com a morte dessas mulheres. Mas eu não vou esperar sentada até que isso tudo aconteça. Eu vou continuar a apontar sempre que alguém, intencionalmente ou não, contribuir para essas narrativas que representam riscos às vidas de mulheres trans. E vou continuar a contar nossas histórias.
Joshua Vallum amava Mercedes Williamson, e foi condenado por um crime de ódio por assassiná-la. A tragédia é que o ódio sequer era dele; era de todos nós.
Jen Richards é atriz, escritora e produtora, residente em Los Angeles.
Acho que preciso rever minhas classificações. Até então eu entendia “mulheres trans” como pessoas nascidas biologicamente pertencentes ao sexo masculino, mas que já haviam concluído sua transição por meio do processo de transgenitalização. Portanto, a proposta da escritora de classificar mulheres trans como mulheres que possuem um pênis para mim é diferente. Nunca pensei assim. E acredito que a reação de seus companheiros se deva ao fato de não conseguirem lidar com o objeto de seus desejos: é um homem? Uma mulher? O filósofo Zygmund Baumann já alertava que operamos a partir da ordem taxonômica e aquilo que não conseguimos classificar é passível de extermínio.