Chelsea Manning está cumprindo uma pena de 35 anos de prisão por ter vazado informações confidenciais do exército norte-americano para o site Wikileaks. O material que ela tornou público em 2010 continha, entre vários documentos diplomáticos e registros de combate, vídeos em que o exército americano lança bombas sobre fotógrafos da agência Reuters e vários afegãos inocentes, confundidos com tropas inimigas. Um dia depois de sua condenação, Manning anunciou que é uma mulher trans e passou a exigir que lhe chamassem de Chelsea.
Desde que foi confinada, Manning vem sendo tratada com grande severidade na prisão de Fort Leavenwoth, no Kansas. Em 2015, seus carcereiros consideraram colocá-la indefinidamente na solitária depois que ela foi pega com itens perigosos como uma cópia da revista Vanity Fair com Caitlyn Jenner na capa e um tubo de pasta de dente vencido. Ela não tem acesso à internet na prisão e só pode receber visitas de pessoas registradas antes de sua condenação – nunca para jornalistas.
Em julho de 2016 Manning tentou suicidar-se e foi retirada às pressas da prisão. Sua vida foi salva. No dia 9 de setembro ela entrou em greve de fome, ingerindo nada além de água e remédios para exigir que se realizasse o processo médico de transição de gênero. Durante seis anos de confinamento, afirmou, seus pedidos de ajuda foram “ignorados, retardados, ridicularizados, e recebidos com descaso pela prisão, pelo exército, e pelo governo”. No dia 14 de setembro a greve de fome chegou ao fim, depois de Manning receber garantias de que teria acesso aos procedimentos de transição de gênero.
Traduzido do artigo publicado por Chelsea Manning no jornal The Guardian
Semana passada eu recebi a “boa notícia” de que o Departamento de Defesa concederá meu pedido de ser consultada por um cirurgião para ser tratada com relação a minha disforia de gênero. Apesar de não ter recebido nada por escrito, mostraram para mim um memorando com meu nome que confirmava que o exército está dando andamento ao meu pedido. Tudo o que me mostraram faz com que eu creia que vão me oferecer os cuidados médicos que foram recomendados pelo meu médico. Eu venho pedindo isso há quase um ano. Na mesma semana, eu recebi a “má notícia”: eu posso vir a ser punida por uma tentativa de suicídio em julho.
Na última semana eu tenho me ocupado me preparando para o comitê disciplinar que vai me ouvir. Esse comitê administrativo ftem o poder de me condenar indefinidamente à solitária. Preparar-se para defender-se perante um comitê disciplinar demanda tempo. Pesquisar, reunir indícios e organizar uma defesa leva tempo. O processo é muito estressante. Eu estou encarando isso sozinha. Eu não tenho permissão para ter um advogado ou qualquer outra pessoa comigo.
Semana passada escoltaram-me para que eu conferisse as provas utilizadas no processo antes de encontrar o comitê. Agora são quase 100 páginas. Eu não tenho acesso facilitado. Eu não tenho cópias. Eu só tive acesso ao material por uma hora. Rever os indícios utilizados no processo contra mim e fazer anotações apressadamente é muito estressante.
Dentre as provas, eu encontrei uma fotografia de mim pouco depois de minha tentativa de suicídio. A visão dessa foto me assombrou durante a última semana. Ela me perturbou. Ela me dá calafrios. Ela me machuma mais do que quaisquer danos físicos ou comiserações que tive que viver. Esse processo me forçou a reviver um dos piores momentos de toda minha vida.
Na foto, vi o rosto de uma mulher que havia desistido. Vi o rosto de uma mulher que, por anos, pediu educadamente por ajuda, então pediu formalmente, e então implorou desesperadamente.
Eu não estou sozinha nesse embate. O suicídio é algo recorrente na comunidade trans. O risco de suicídio entre nossos irmãos e irmãs trans que vivem sem tratamento ou com tratamento inadequado é atordoante. Quando comparado com a população em geral, o risco de suicídio é muitíssimo maior. Apesar de não haver estatísticas sobre a taxa de suicídio dentre prisioneiros trans, estima-se que ele é ainda maior que aquele da comunidade trans em liberdade.
Eu não tenho como descrever o quanto meus familiares e amigos estão preocupados com esse comitê. Eu não tenho como descrever como é doloroso ter que me submeter a esse comitê e como dói que o governo dedica-se tão agressivamente a me punir. Como explicar isso para minha família? Como explicar isso para as gerações futuras, quando olharem para trás e perguntarem por que eu fui punida pelo meu próprio desespero? Eu não sei. Eu não sei mesmo como explicar isso tudo.