O que está por trás da fibra de uma menina de 12 anos que enfrentou o fanatismo religioso islâmico no Paquistão unicamente porque queria ter o direito de estudar?
Esta e outras questões são discutidas no documentário “He Named me Malala” — ou apenas “Malala” no título em português — dirigido pelo cineasta Davis Guggenheim que será exibido pela segunda vez no canal pago NatGeo neste sábado (5).
Para quem não se lembra em detalhes, no dia 9 de outubro de 2012 Malala Yousafzai entrou em um ónibus para ir para a aula quando foi abordada por um soldado Talibã que a chamou pelo nome e disparou três tiros contra ela. Um deles atingiu o lado esquerdo de seu crânio e ela ficou em coma por vários meses.
Sua luta pelo direto à educação de meninas no mundo todo apenas começava, e o reconhecimento de seu trabalho como ativista culminaria com o prêmio Nobel da Paz, fazendo com que Malala fosse a pessoa mais jovem a receber tamanha honraria.
O Lado Bi teve oportunidade de conversar com o pai de Malala e com o diretor do documentário, Davis Guggenheim, no início deste ano sobre suas impressões a respeito da família Yousafzaj e por que eles se diferenciam em um mundo em que a religião oprime mais que liberta. Leia:
LADO BI — Quando vi e ouvi Malala pela primeira vez, ficou claro que ela tinha tido uma educação diferente. Vendo o documentário, a gente percebe que o pai dela teve papel preponderante nisso. O que há de especial neste homem que, em um ambiente tão hostil às mulheres, resolveu agir de forma oposta?
Davis Guggenheim — Não acho que haja uma resposta clara para isso. Talvez porque ele não tenha podido ser um clérigo como seu pai. Em seu livro, ele conta que, na juventude, ficou tentado a ser um talibã, especialmente pela ideia de morrer em nome de Deus. Então ele aprendeu sobre Martin Luther King. Inspirado pelas suas ideias de igualdade ele, em minha opinião, virou um tipo de hippie. Sua filha seguiu seus passos…
Você faz uma provocação a Malala em certo ponto do filme. Você pergunta o quanto de suas ideias são dela mesmo ou de seu pai… Por que você perguntou isso a ela?
Porque eu gosto de fazer perguntas que provoquem as mentes das pessoas. E aí eu pergunto se ele não a programou para ser do jeito que ela é. E ela me responde: “Não, ele me deu o nome Malala, mas ele não me fez Malala.
Mas você acha que ela foi moldada em alguma medida?
Esta é a questão essencial do filme. E eu a mantenho aberta, para que o público tire suas conclusões. Você tem filhos?
Não.
Bom, eu tenho. E quando você os cria, você pensa: “Será que eu os estou empurrando para serem algo?” Então, obviamente que ela foi influenciada pelo pai, mas quando você a conhece você vê que ela tem suas próprias vontades.
Malala quase morreu supostamente em nome de Deus. Também ela sobreviveu, para muitas pessoas, por um milagre de Deus. Qual a ironia por trás disso?
Pra começo de conversa eu não acho que ela quase foi morta em nome de Deus…
Mas os homens que querem sua morte dizem que estão defendendo a palavra de Deus…
Dizer que se está agindo em nome de Deus não é necessariamente agir em nome de Deus. Ela foi quase morta por ideologia. Mas sim, é perfeito que ela tenha sobrevivido. Há um mito em torno de seu nome: a menina que irá nos liderar [a história de onde veio o nome Malala é a introdução do filme]. E parece haver uma razão por que ela fala com tanta clareza e é ouvida por tantas pessoas.
Diante dos discursos de Malala você se sente pequeno, inspirado, vulnerável… Me sinto uma criança ouvindo-a. Aconteceu isso contigo?
Sim, ela parece muito mais madura e sábia que eu. Eu tenho 52 anos e perante ela eu me sinto como um garoto.
Toda vez que vejo pessoas como ela eu penso: “o que há de diferente nesta pessoa?” Você se perguntou sobre isso enquanto fazia esse filme?
Sim, porque tem algo muito extraordinário no modo que ela é. E eu acho que ela é um produto da mãe e do pai. O pai é a inspiração para o ativismo, mas o que ninguém fala é do papel de sua mãe. Ela é muito forte e espiritualmente inspiradora. E simples. Mas eu acho que o fato de ela ter estado tão próxima da morte também faz parte disso. Porque ela sabe que esteve perto da morte. E pessoas que estiveram próximas da morte se agarram à vida de maneira diferente. Passam a se preocupar com o que é importante. Acho que nós passamos a vê e ouvi-la de modo diferente também, porque todos temos muito medo de morrer.
Em uma das cenas você tenta encontrar uma vulnerabilidade nela.
Sim, falar de seu sofrimento…
Por quê?
O que você acha?
Eu perguntei primeiro… (risos)
Ela não gosta de falar disso. E acho que ela sofreu tanto, viu tantos amigos morrendo, viu escolas sendo explodidas, homens sendo decapitados, sentiu o terror. Ela estava lá…
Para nós o terror é algo cinematográfico apenas…
Sim. Por exemplo, quando você fala com soldados que foram à guerra, eles não falam disso. Acho que quando você sobrevive a algo tão aterrador assim, você se pergunta: “quem sou eu para reclamar”? É algo cultural também. Nós ocidentais falamos demais sobre tudo.
Eu sou de uma país onde homens não atiram em mulheres que vão para a escola. Mas eles as espancam, as estupram… E há muitos homens que acham que as mulheres devem ser mantidas “em seu lugar”, servindo-os. Mesmo aqui nos EUA tem homens assim… Por que uma menina tão jovem quanto ela ameaça tanto os homens?
Porque ela os desafia. Seu poder. Existe uma ordem no mundo que depende do subjugo das mulheres. E Malala ameaça essa ordem de coisas. Este é um filme que todas as garotas precisam ver. E que todos os pais precisam ver. Porque quando eles virem do que elas são capazes, grandes coisas podem acontecer. Quando garotas são educadas, não muda apenas a vida delas, mas das famílias como um todo. A economia muda.
O que você aprendeu com Malala?
Eu tenho duas filhas e um filho. Eu aprendi que posso ser um pai melhor. Que tenho meus preconceitos…
Quais?
Eu ainda… Veja, quando algo de interessante acontecia nas filmagens, eu comentava com meu filho. Por que eu não comentava com minhas filhas? Eu tenho uma conexão natural com o filho à qual eu tenho que resistir… Veja, o pai de Malala acredita que a filha dele é igual. E eu também acredito que minhas filhas seja iguais perante aos homens. Mas ele vai além. Ele age em prol disso. Só acreditar que uma pessoa é igual e não agir para que ela efetivamente seja igual não adianta. Isto é grandioso.