Rapidamente o Oscar de 2016 está entrando na história como o que mais trouxe polêmicas por causa da falta de diversidade. Depois das polêmicas sobre a falta de indicados não-caucasianos nas categorias de atuação, agora a Academia de Cinema vai ter que lidar com a ausência de sua única candidata trans, a cantora e compositora Anohni, indicada à categoria de Melhor Canção.
Vocalista e líder do conjunto Antony and the Johnsons (que tem álbuns lindíssimos, trate de ouvir já), Anohni foi indicada pela canção “Manta Ray”, composta em parceria com o músico J. Ralph para o documentário Racing Extinction. Apesar da indicação, no entanto, Anohni jamais foi convidada para se apresentar na noite da entrega dos prêmios. Frustrada com o desprezo da Academia (que perdeu uma oportunidade de ouro de promover a diversidade e premiar o mundo com uma das vozes mais lindas do mundo), ontem Anohni publicou em seu site uma carta aberta em que explica por que não comparecerá na cerimônia da premiação, esse domingo:
POR QUE NÃO ESTAREI PRESENTE NA PREMIAÇÃO DA ACADEMIA por Anohni, indicada à categoria de melhor canção (“Manta Ray”, com o compositor J. Ralph)
Sou a única cantora transgênero a já ter sido indicada ao Oscar, e por isso eu agradeço os artistas responsáveis por minha indicação. (Houve uma compositora trans indicada, chamada Angela Morley, no início dos anos 1970, que realizou trabalhos excelentes nos bastidores). Eu estava na Ásia quando eu soube da notícia. Eu fui correndo para casa para preparar algo, caso fosse necessário que os indicados se apresentassem na cerimônia. Todos estavam me ligando felizes, dando os parabéns. Uma semana mais tarde, anunciou-se que Sam Smith, Lady Gaga e The Weeknd se apresentariam na noite da premiação, e outros artistas “seriam anunciados em breve”. Confusa, eu esperei sentada. Alguém entraria em contato? Mas o tempo passou e eu ninguém me deu notícia. Eu estava sob um cerco de pessoas que me perguntavam se eu me apresentaria.
Minha ansiedade cresceu com o passar das semanas. Lentamente percebi que as implicações positivas da indicação estavam sendo recolhidas. Parecia que os produtores haviam decidido colocar no palco apresentações apenas por artistas que eles consideravam ser comercialmente viáveis. A canção “Simple Song #3”, composta por David Lang e interpretada pela soprano sul-coreana Sumi Jo, também foi omitida.
Foi degradante ver surgirem artigos na Variety, The Daily Telegraph, Pitchfork, Stereogum etc. Eclipsando notícias anteriores que davam os parabéns, agora esses veículos estavam apontando para mim como uma das duas artistas que haviam sido “cortadas” pela Academia por causa de “limitações de tempo”. Na frase seguinte, anunciava-se que Dave Grolh, que não havia sido indicado para qualquer categoria, havia sido adicionado à lista de pessoas que se apresentariam na noite.
Todos me disseram que eu ainda deveria comparecer, que caminhar pelo tapete vermelho seria “bom para minha carreira”.
Ontem à noite eu tentei me forçar a entrar num avião e voar para Los Angeles, para todos os eventos dedicados aos indicados, mas a sensação de constrangimento e raiva me impediram, e eu não consegui subir no voo. Imaginei como eu me sentiria, sentada entre todas aquelas estrelas de Hollywood, quando algumas das mais valentes se aproximassem com rostos tristes e condolências. Lá estaria eu, sentindo uma pontada de vergonha que me lembraria das primeiras afirmações de meu país de que eu era inadequada por ser uma pessoa trans. Eu dei meia volta e retornei para casa.
Como se fosse para piorar a situação, na manhã seguinte a organização do Oscar adicionou em seu website, na página de curiosidades, que eu sou transgênero.
Eu quero deixar claro – eu sei que não fui excluída da apresentação diretamente porque sou transgênero. Eu não fui convidada para me apresentar porque eu sou praticamente desconhecida nos Estados Unidos, cantaria uma música sobre ecocídio, e isso provavelmente não venderia muita publicidade. Não sou eu quem escolhe os artistas que se apresentarão na noite, e eu sei que não tenho automaticamente o direito de ser convidada.
Mas se você acompanhar o rastro que foi deixado, é impossível ignorar a verdade mais profunda. Assim como o aquecimento global, esse não é um evento isolado, mas uma série de eventos que ocorrem ao longo dos anos para criar um sistema que tentou me desqualificar, primeiramente como uma criança feminina, depois como uma mulher trans andrógina. É um sistema de opressão social e oportunidades reduzidas para as pessoas trans que tem sido empregado pelo capitalismo nos EUA para esmagar nossos sonhos e nosso espírito coletivo.
Quando eu tinha 20 e 30 anos, me diziam que não havia possibilidade de alguém como eu jamais ter uma carreira na música, e essa perspectiva foi reforçada por tantos “profissionais” da indústria e veículos de mídia que eu já perdi a conta. Eu quase desisti. Felizmente, artistas companheiros como Lou Reed lutaram por mim com tanta intensidade que eu consegui algum espaço, apesar das piores intenções de outros. Nesse sentido, eu sou uma das pessoas mais afortunadas do mundo.
Eu sinto prazer naquela alegria selvagem e ousada que vem de declarar minha verdade no melhor das minhas capacidades; é o que Nina Simone teria chamado de “dádiva”. A verdade é que eu não fui preparada para o estrelato e não fui diluída para sua apreciação. Como artista transgênero, eu sempre ocupei um lugar fora do mainstream. Eu paguei com alegria o preço de falar minhas verdades perante o asco e a imbecilidade.
Aos 35 anos eu ganhei o Mercury Prize no Reino Unido. Todos os indicados foram convidados a se apresentarem naquela noite. Eles me elevaram da obscuridade e me celebraram, desencadeando uma série de eventos que transformaria para sempre minha vida.
Agora, dez anos depois, eu já cantei para milhões de pessoas em alguns dos teatros mais belos do mundo, da Royal Opera House em Londres até uma pequena cabana repleta de anciãs aborígenes no deserto da Austrália Ocidental. Eu alcancei tantos de meus sonhos. Eu colaborei com músicos e artistas que respeito profundamente. Eu abri espaço para o feminismo, para a consciência ecológica, e para a militância trans por duas décadas. Eu ganhei uma plataforma sobre a qual posso participar da conversa cultural.
Eu trouxe meus ganhos de todo o mundo para meu lar em Nova York e paguei meus impostos. Esse dinheiro foi gasto pelo governo dos EUA na prisão de Guantánamo, em bombas jogadas por drones, em programas de vigilância, em penas de morte, no aprisionamento de quem faz denúncias, em subsídios corporativos e resgate de instituições bancárias.
Nos Estados Unidos tudo é uma questão de dinheiro: quem tem e quem não tem. As políticas de identidade costumam serem usadas como cortina de fumaça para nos distrair dessa cultura viral de extração de riqueza. Quando não estamos extraindo riquezas da natureza, estamos extraindo-a das classes trabalhadora e média.
Portanto eu decidi não comparecer à Premiação da Academia nesse ano de eleição. Eu não serei ninada até me tornar submissa por mais algumas baladas bem manufaturadas com a intenção de fazer com que nos sintamos bem, e a boa e velha exposição dos corpos. Vão tentar nos convencer que fazem tudo com a melhor das intenções quando agitam suas bandeiras em prol das políticas de identidade e questões morais falsas. Mas não se esqueça que muitas dessas celebridades são os troféus de corporações bilionárias cuja única intenção é manipular você, para conseguirem seu consentimento e o que resta de seu dinheiro. Elas foram pagas para ocupar você com um pouco de sapateado enquanto Roma pega fogo. Esses são os últimos dias da grande enganação americana, patrocinados por Exxon Mobile, Walmart, Amazon, Google e Philip Morris. América, um país que não é mais contido por fronteiras físicas, só almeja mais poder e controle. Eu quero maximizar minha utilidade e militar pela preservação da biodiversidade e a busca da decência humana dentro de minha esfera de influência.
O Oscar é tão branco. E tão cis. Mas isso a gente já sabia.